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Cindy Sherman: Metamorfoses

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Isabel Nogueira

A alteridade do auto-retrato que, afinal, não o é

 

É uma das mais relevantes artistas da contemporaneidade. Serralves dedica-lhe uma exposição que engloba algumas das suas mais icónicas peças e que abrangem o leque temporal e conceptual de toda a sua carreira. Cindy Sherman (n. 1954) aparece sob o título Metamorfoses. De facto, e idependentemente de apreciarmos mais ou menos as suas propostas, Sherman desenvolveu um trabalho único e inconfundível que parte, como se sabe, do seu próprio corpo. Este corpo não desemboca, contudo, num auto-retrato mas, na verdade, numa alteridade de um Outro corpo. Ou seja, numa alteridade que a artista — fotógrafa e realizadora — produz a partir da concretude da sua fisicalidade, que transforma — sendo ela própria autora da maquilhagem, dos figurinos e dos cenários — ao construir uma outra entidade, por vezes francamente complexa, sofisticada e inquietante. 

Os primeiros trabalhos mais relevantes de Cindy Sherman pertencem à série Untitled film still (1977-1980), presentes nesta mostra. Trata-se de imagens fotográficas irónicas, evocativas do universo feminino no cinema clássico de Hollywood (década de 30 ao final da década de 50). Aliás, qualquer uma desta fotografias evoca o fora de campo cinematográfico, levantando, além de questões sobre a condição da mulher, problemáticas ontológicas da própria imagem fixa. Logo neste ponto encontramos uma conexão de Sherman com um feminismo de fundo, que precisamente teve nova vaga de impacto no contexto de um pós-modernismo emergente, desconstrutor e provocador. Foi precisamente no sentido de advertir para a escassa representatividade das mulheres no mundo da arte que, em 1985, apareciam em Nova Iorque as “Guerrilla Girls”, mas também a própria obra de Sherrie Levine, de Louise Lawler, de Barbara Kruger, de Hannah Wilke, evidenciam um ressurgimento, mais subversivo, do feminismo na arte dos anos 70 e 80.

Uma outra série chama particularmente a nossa atenção. Trata-se daquele momento em que a artista decide assumir inúmeras personagens e citações da história da arte ocidental, num notável conjunto de trabalhos conhecido como History Portraits (1988-1990). A impressão é de grande escala, dando precisamente a ideia de um retrato clássico exposto num qualquer Salon. Ou seja, trata-se de um retrato que convoca a dimensão imponente e tradicional do mesmo. O jogo agora é já não o do cinema, mas o da pintura, materializado num dos seus três géneros tradicionais de representação, a par da paisagem e da natureza-morta. As cores são vivas e luxuriantes, como o classicismo, o barroco ou o maneirismo apreciam. Entre Rafael, Botticelli, Caravaggio ou Jean Fouquet, o espectador envolve-se num universo visual pleno de referências historicistas, sublinhadas pelas paredes pintadas ou com papel de parede texturado, evocando o intimismo de uma sala de estar ou a imponência de um espaço museológico. Ambos lugares perfeitos para a exposição de um retrato, claro.

Outras séries, a seu modo inquietantes, olham o espectador, tais como os assustadores Clowds, as réplicas da capas de icónicas revistas de moda (The Cover Girls), ou ainda os sinistros Society Portraits, representativos de mulheres poderosas que carregam as marcas do tempo que procuram disfarçar, sem notório sucesso. Qualquer uma destas fotografias comporta um estado de assumida encenação, aliás, como precisamente sucede num clássico retrato. Na perspectiva de Hans Belting (Antropologia da imagem: para uma ciência da imagem, 2014): «Na fotografia preferimos encontrar um mundo engenhosamente encenado. Não como uma estratégia artística, mas sim porque esse passou a ser o padrão perceptivo que os espectadores aplicam perante a fotografia exibida. Desejam nela descobrir um enigma que se esquive à percepção apressada e superficial a que habitualmente estão votados». O enigma aqui é outro ponto relevante. Na verdade, apesar de muitos retratos citarem a história da arte, muitos outros não o fazem, constituindo-se como peças misteriosas e de difícil localização. E neste sentido a sala inunda-se de mistério e até de perplexidade que se julgava, afinal e num primeiro olhar, não suceder.

De facto, a obra de Cindy Sherman consegue convocar a atenção do espectador, mesmo quando este acredita já ter visto tudo; já ter contactado diversas vezes com este universo visual e conceptual. Mas, o intimismo — bem conseguido, de resto, neste espaço expositivo — faz tudo voltar ao início. Um retrato, histórica e ontologicamente, é considerado o género mais complexo de representação bidimensional. A primeira imagem fotográfica — uma prosaica paisagem de Niépce nas traseiras de sua casa, corria o ano de 1826, conhecida como Vue du Gras à SaintLoup de Varennes — muito rapidamente abrangeria o retrato, que prolifera na Europa — em Londres, mas principalmente em Paris — e nos Estados Unidos da América, nos anos 50 e 60 do século XIX. E o mundo não voltaria a ser o mesmo. Sherman propõe um retrato que já é um Outro indivíduo que não o retratado. Trata-se de um empréstimo corporal para construir uma outra camada de representação claramente subversiva ao, afinal, desafiar o retrato, mostrando que este pode, na verdade, não o ser.

 

Cindy Sherman

Museu de Arte Contemporânea de Serralves 

 

Isabel Nogueira [n. 1974]. Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte [Universidade de Lisboa] e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem [Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne]. Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014]; "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015]; "Théorie de l’art au XXe siècle" [Éditions L’Harmattan, 2013]; "Modernidade avulso: escritos sobre arte” [Edições a Ronda da Noite, 2014]. É membro da AICA [Associação Internacional de Críticos de Arte].

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

 

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Cindy Sherman: Metamorfoses. Vistas gerais da exposição no Museu de Arte Contemporânea de Serralves. Fotos: Filipe Braga. Cortesia da Fundação de Serralves.

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