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Francisco Tropa: O Coração e Os Pulmões

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João Sousa Cardoso

 

A Lição de Anatomia

 

 

 

 

Fotografia: François Doury. Cortesia do artista e Galerie Jocelyn Wolff. 

 

 

1. O Teatro de Guerra

 

A exposição O Coração e Os Pulmões de Francisco Tropa no Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, programada no âmbito da Temporada Portugal-França 2022 é uma ampla paisagem que se vai desdobrando em sentidos, à medida que a atravessamos, atentos à leitura dos sinais equívocos e das linhas de fuga.

O percurso reúne trabalhos de Francisco Tropa realizados em diversos suportes, no campo da escultura e da instalação, desde 2015, e inclui Gradiva [1978] um filme experimental da cineasta francesa Raymonde Carrasco, solicitando ao espectador um estado de alerta que associo — erradamente, por certo — à vigília própria do caçador na savana sondando as pistas do animal, mas exposto e tornado alvo em potência da presa que procura abater. A desorientação dos sentidos em jogos de perceção que constantemente baralham as referências culturais e desmontam a cronologia, as causalidades e as categorias disciplinares na acomodação de um brinquedo de espelhos, são procedimentos característicos do universo poético de Francisco Tropa e confirmam-se de novo no projeto expositivo de Paris.

Na descida da escadaria art déco do Musée d’Art Moderne que conduz à exposição, observamos O Sonho de Cipião [2015], com título emprestado ao IV livro de Da República de Cícero [54 a.C] em que a personagem de Cipião descreve o seu encontro com os ancestrais que lhe revelaram os enigmas do universo e da imortalidade do espírito. Um grupo composto por três sólidos geométricos [duas semiesferas de diferentes dimensões e uma espécie de cubo] remetendo para as posições relativas da Terra, do Sol e da Lua no entendimento da organização planetária da Antiguidade, três monocromos de intenso colorido, cada um de sua cor [citando o suprematismo russo], suspensos do teto, giram sobre si mesmos, acima do olhar do espectador.

 

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O sonho de Cipião [2015]. Vista de exposição no Musée d'Art Moderne de Paris. Fotografia: François Doury. Cortesia do artista e Galeria Jocelyn Wolff. 

 

 

 

As três figuras surgem planas, recortadas contra o branco da galeria, mas logo se transmutam, num efeito cinético durante a lenta rotação, em diversas faces, ora côncavas ora convexas, revelando gradualmente volumes de leitura ambígua entre a bi e a tridimensionalidade, produzindo renovadas sombras próprias, enquanto assistimos à metamorfose das três sombras projetadas na parede e ao diálogo em contínua recomposição que elas vão negociando entre si. A memória do circo em Alexandre Calder assalta-nos de imediato como se o mistério e o lúdico se confirmassem as duas faces da única moeda com que se cobra um espetáculo popular [e o seu encanto sem quebra] nas quatro partidas do mundo. O campo da arte urbaniza e reflete estes saberes que brotam dos fenómenos naturais e da sabedoria milenar que prestou atenção à revolução dos astros e da terra e à influência dessa mecânica celeste sobre as emoções e a imaginação das sociedades.

Se, na descida das escadas, o nosso olhar se eleva na direção das esculturas dispostas em altura como se fossem estrelas num céu de meio-dia; logo a seguir, na primeira sala, de reduzida dimensão, o olhar cai, diante de uma pequena torneira dourada de onde corre um fio de água sem princípio nem fim, dentro de um balde azul pousado no chão que nunca chega a transbordar. Ao hipnotismo da rotação dos sólidos suspensos de O Sonho de Cipião responde Panta Rhei [2018] com o ilusionismo da queda ininterrupta da água. Depois da resistência à lei física da gravidade, somos devolvidos à suspensão do tempo, no elogio do instante que invoca o pensamento de Heráclito de Éfeso [550 a.C. — 450 a.C.], o filósofo pré-socrático ocupado em demonstrar como “tudo flui” [Panta Rhei] na impermanência da vida, no universo em movimento, no infinito devir.

 

 

Panta Rhei [2018]. Vista de exposição no Musée d'Art Moderne de Paris. Fotografia: François Doury. Cortesia do artista e Galeria Jocelyn Wolff. 

 

 

Mas será a instalação O Coração e Os Pulmões [2018] — o título que dá nome a toda a exposição, recuperado de um livro de medicina encontrado pelo artista ao acaso —, a experiência mais demorada, apresentando uma série de módulos distribuídos na maior galeria. Num exercício de variação em torno de um motivo, descobrimos um reportório limitado de  vocábulos que remete para a iconografia do passado colonial europeu [paliçadas de madeira, gambiarras de campismo alimentadas por botijas de gás, campânulas de cerâmica com a morfologia do capacete colonial] tanto quanto para as teorias da biopolítica assentes no primado da tecnologia, da ciência e da contenção social pelo ideário da saúde [afixação de cartazes de propaganda médica], numa estratificação de temporalidades que estabelece um estranho horizonte ficcional.

Cada módulo apresenta capacetes sustentados por paus; os mesmos tampos assentes em tripés [pequenos estrados, mesas de campanha, estiradores de improviso, simultaneamente]; as mesmas tábuas toscas de pinho numa organização vertical que cria barreira e delimita um território; placas acrílicas num ritmo de bandas de cor [e num isomorfismo da disposição das tábuas] que, a intervalos certos, se interpõe à visão; enquanto que nos paus com os capacetes se enredam réplicas de ramos de eucalipto em chapa de latão identificando as bandeiras nacionais dos países europeus com uma história colonial. Que lugar ficcional é este? Um acampamento de uma expedição científica? Uma cena na guerra colonial? Um hospital de campanha? Uma série de cabanas feitas por náufragos na praia deserta?

Cada habitáculo de O Coração e Os Pulmões encontra-se ocupado por dois capacetes, sendo que cada capacete exibe duas pequenas incisões na superfície que o antropomorfizam e o aproximam da síntese formal das máscaras tradicionais africanas que as vanguardas elegeram contra a saturação da cultura europeia. A sombra do primeiro cubismo e da escultura de Constantin Brâncuși espreitam no espanto destas figuras sumárias. Ao mesmo tempo, os capacetes descrevem um movimento de rotação sobre si próprios [à semelhança dos três sólidos geométricos de O Sonho de Cipião], em intervalos de tempo aleatórios, movidos pela eletricidade de um motor visível.

Ainda em cada célula [como não recordarmos as celas místicas de Fra Angelico ou as células psicanalíticas de Louise Bourgeois?] surge uma peça de carne dependurada, mimetizando uma parte específica do corpo do animal retalhado [o pernil, o naco ou o piano], passada a bronze e pintada a óleo, num trompe l’oeil tosco citando iscos de caça grossa. É o frémito da carne e o fantasma da carnificina duma genealogia que atravessa a história da arte desde o Boi Esfolado [1655] de Rembrandt [desenvolvimento sem ciência de A Lição de Anatomia do Dr. Tulp de 1632] aos corpos mutilados de Francisco de Goya, à carne convulsa em Chaïm Soutine, Francis Bacon, Louise Bourgeois [ainda], Paul McCarthy ou à produção recente de Anish Kappor sob a renovada ameaça nuclear.

A construção precária de cada módulo, os materiais de recurso, a delimitação de um espaço interior sem privacidade, vigiado pelo espectador e por duas personagens antropomórficas, uniformizadas e animadas de movimento mecânico, levantam uma pequena cenografia monstruosa, repetida nos vários módulos, como uma cena do mesmo pequeno teatro. Mas em que dramaturgia se organizam este teatro de guerra e o drama sem pathos do teatro de objetos?

 

 

O Coração e os Pulmões [2018]. Vista de exposição no Musée d'Art Moderne de Paris. Fotografia: François Doury. Cortesia do artista e Galeria Jocelyn Wolff. 

 

2. A Sombra de Duchamp

 

Toda a exposição é atravessada pelo espírito da charada sem solução, na disposição anti-narrativa e na inclinação neodada para o non-sense que recordam Impressions d’Afrique de Raymond Roussel [1909], a patafísica e alguns aspectos do legado de Marcel Duchamp. Aliás, as fontes de energia presentes em cada um dos habitáculos de O Coração e Os Pulmões ecoam as fontes de energia presentes em Étant donnés : 1° la chute d'eau 2° le gaz d'éclairage… [1946-1966], a obra testamentária de Duchamp, instalada também ela numa cave [como O Coração e Os Pulmões na cave do Musée d’Art Moderne], mas de um outro museu, o Philadelphia Museum of Art.

A rotação da queda de água na pequena cascata e a lâmpada de gás sustentada pela personagem nua e modelada por Marcel Duchamp em Étant Donnés são aqui evocadas pelo mecanismo da rotação [e antes dela, pelo fio de água corrente em Panta Rhei] e pelas lâmpadas acesas alimentadas pelas botijas de gás. Mas o que em Duchamp é a brutalidade de um corpo feminino de sexo exposto, possivelmente violado e atirado numa giesta agreste contra uma paisagem característica do renascimento, cálida, solar e a perder de vista, na instalação de Francisco Tropa é gabinete médico de remedeio, estirador de engenheiro, estúdio de artista, num ambiente de concentração técnico-profissional à meia-luz, sem enredo aparente, na gestão de uma tensão controlada que nunca chega à nota da violência.

Étant Donnés provoca o espectador confrontando-o com o plano de uma porta encerrada embutida na parede [numa inversão da célebre definição da pintura proposta por Leon Battista Alberti como “uma janela aberta sobre o mundo” tanto como da sua própria porta-irremediavelmente-aberta Door: 11, rue Larrey, de 1927] onde nada parece existir para ver. E incita o espectador a abandonar a passividade da relação retiniana com a arte, a disponibilizar-se totalmente para a experiência estética na necessidade de colocar todo o corpo em contacto físico com a superfície da velha porta da madeira. Só espreitando por uma fresta da porta encerrada — e ocupando o lugar transgressivo do cobarde, do espião, do voyeur —, poderá encontrar o que existe para além dela. O interior surpreende o espectador com a imagem radical de um exterior: uma paisagem infinita, a sombra de um crime e a figuração do momento fugaz da agonia de um corpo de tez macilenta entre a vida e a morte que segura, — com firmeza, ainda —, a lâmpada acesa de gás. Se a personagem morrer e deixar cair a candeia [o mais certo, na ausência de sinais de transcendência que antecipem o milagre ou duma presença que prometa o socorro], o mato seco a que o corpo está preso incendiar-se-á como palha e a figura feminina arderá na fogueira. Sugerindo a eminência do acidente, Duchamp recorda outras mulheres noutras fogueiras e convoca todas as fogueiras da modernidade, isto é, uma certa história bárbara de uma Europa donde fugiu.

Mas se em Duchamp, mesmo que com todo o corpo convocado na experiência dos sentidos, nós permanecemos exteriores à obra, em O Coração e Os Pulmões circulamos livremente entre as várias células, como se — e repito — em cada câmara assistíssemos in medias res à variação de uma mesma cena em diferentes instantes ou a cenas próximas de um único drama.

Neste noturno de Francisco Tropa, ocupado por figuras atadas à folhagem do eucalipto como camuflagem nos combates de guerrilha, diante de elementos de um funcionalismo que os confunde com destroços [o artista sempre se interessou pela arké e investigou o imaginário associado à arqueologia] e de uma luz própria, branda, de qualidade espectral em cada habitáculo, acompanhada do som quase impercetível do corrimento do gás e dos rolamentos mecânicos no movimento de rotação dos capacetes, subsiste um sensível gesto de desapego e uma ironia. No texto do catálogo, Manuel Castro Caldas resume assim a instalação: “De uma forma simultaneamente concisa e cómica, O Coração e Os Pulmões responde ao imperativo moderno de criar objetos esotéricos através da reinvenção conjunta do craft e da alegoria.”, num sistema reconhecível [familiar, aliás] de precedentes e continuidades.

Se, a par dos capacetes coloniais, das ramagens, das paliçadas e das lâmpadas de campanha, também a tecnociência [e um arremedo de consultório médico] é convocada pela reprodução de cartazes de divulgação médica [readymade retificados, com a alteração do esquema cromático de imagens apropriadas de revistas da especialidade], será também o bios como campo de batalha que O Coração e Os Pulmões pretende convocar. Mas com a nonchalence, a tal capacidade “concisa e cómica” apontada no texto do catálogo. E que traz ao espírito uma outra conversa portuguesa anterior, a das aguarelas de Eduardo Batarda, realizadas em plena guerra colonial [ou guerra de libertação], quando a pop art explodia na arte contemporânea portuguesa em cor e em riso para discorrer sobre a boçalidade, a derrota inevitável do opressor e a desordem nacional. Mas o que em Eduardo Batarda é revolta, urgência, acidez e obscenidade [que perduram até hoje numa das obras mais cultas e intrépidas da arte portuguesa do último meio século] em O Coração e Os Pulmões sofre o entorse de uma distância clínica. Que pouco tem que ver com a indiferença estética da anti-arte dos Dada ou da an-arte de Duchamp. Como se a instalação oferecesse um diagnóstico exato e sem comentário, sem motivação nem mobilização de perspetivas, como um ato impassível no rigor da observação.

No entanto, se Duchamp estabeleceu em contrato com Walter e Louise Arensberg — o casal de mecenas de uma vida — e com o Philadelphia Museum of Art que Étant Donnés fosse revelado ao público na condição de obra póstuma é porque estava ciente da afronta nele contida à história europeia e da crítica severa que lançava ao novo mundo que lhe garantiu asilo, no exílio. Tudo em Étant Donnés é incómodo e afronta: o confronto com uma porta fechada, a posição a assumir pelo espectador, o episódio imoral que nos aguarda. A mulher moribunda e sem rosto — desindividualizada e por isso personificação em latência de uma ideia ou de uma comunidade —, que segura com a força que lhe sobra a lamparina não pode deixar de invocar a estátua da Liberdade caída e lesada. Étant Donnés é sobre o estado da América.

 

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O Coração e os Pulmões [2018]. Vista de exposição no Musée d'Art Moderne de Paris. Fotografia: François Doury. Cortesia do artista e Galeria Jocelyn Wolff. 

 

3. As Máquinas Celibatárias

 

O Coração e Os Pulmões de Francisco Tropa, apesar de iluminar os referentes da história social e das ciências, evita uma reflexão política. A exposição aposta, antes, numa poética do paroxismo da perceção, numa ordem de pensamento confirmada no último momento do itinerário.

Ágata [2022] apresenta uma lâmina da pedra instalada num projetor de diapositivos, expondo a imagem ampliada na parede [como um fotograma] da superfície mineral na sua morfologia atravessada pela iluminação, no pormenor de todos os seus acidentes de formação, colocando em jogo a microescala da matéria do mundo ctónico e o hors-échelle do cosmos.

Mas se O Coração e Os Pulmões não é um ensaio político, a exposição não evita uma reflexão sobre a energia erótica mesmo que em estados de isolamento, retenção ou recalcamento. Os capacetes em O Coração e Os Pulmões na ponta de um pau não constituem afinal um símbolo fálico que roda sobre o próprio eixo na alusão à masturbação dos celibatários representada pelos tambores circulares girando sobre si mesmos na máquina de produção de chocolate de La mariée mise à nu par ses célibataires, même [1915-1923], também de Duchamp? A repetida presença das máquinas na arte moderna — de Marcel Duchamp, Francis Picabia e Fernand Leger [presentes nas coleções do museu, nas salas contíguas à exposição como Francisco Tropa sublinha no texto da folha de sala], entre outros — são a representação mordaz do mundo industrial que acelera a quebra das ligações e inibe todas as formas de contacto que conhecerão desenvolvimento até às máquinas-celibatárias [ou máquinas desejantes] da anti-psicanálise de Gilles Deleuze e Félix Guattari.

E não será Ágata além da projeção da superfície geológica, a sugestão da genitalia feminina exposta à projeção mental da imaginação do nosso olhar? A pedra e a carne sempre se irmanaram na mundividência arcaica conotando fendas rochosas a lugares de culto da fertilidade da mãe-terra. No pretexto científico da incursão pela geologia e na convocação de uma tecnologia obsoleta [o projetor de diapositivos], não reconhecemos a mesma crueza do olhar de Gustave Courbet sobre o sexo feminino em L’Origine du Monde [1866] tomando de empréstimo a mesma objetividade das práticas científicas [e denunciando os evitamentos do conservadorismo neo-clássico da academia] para defender uma conceção realista da arte, o mesmo olhar que Marcel Duchamp recuperaria, com insolência e acrimónia, em Étant Données, um século depois?

 

 

Ágata [2022]. Fotografia: François Doury. Cortesia do artista e Galeria Jocelyn Wolff. 

 

 

O penúltimo trabalho na exposição de Francisco Tropa versa justamente sobre a inelutável erótica entre o cientista e o objeto observado ou a atração que toma por inteiro o desejo do estudioso.  A projeção em contínuo de Gradiva [1978], filme em 16mm da cineasta experimental Raymonde Carrasco [1939-2009] parte do famoso conto de Wilhem Jensen publicado em 1903 que relata o olhar encantado de um arqueólogo sobre a representação de Gradiva num baixo relevo  neoático romano, da primeira metade século II, figura que o irá assaltar em sonhos. O conto de Wilhem Jensen influenciou toda a cultura europeia, motivou um ensaio de Sigmund Freud em 1907 e conheceu, posteriormente, um extenso lastro no movimento surrealista. No filme, assistimos à passada em câmara lenta dos pés descalços de uma figura feminina [Gradiva significa em latim, "aquela que avança"], numa sequência reiterada sucessivamente, na senda dos princípios do estruturalismo, dando-nos consciência do fotograma, do movimento aparente e da superfície da película [mas também da pedra ou da parede] na mesma suspensão narrativa constatada em O Coração e Os Pulmões ou Ágata ao mesmo tempo que onírica e circular como em O Sonho de Cipião e Panta Rhei.

A exposição termina com O Firmamento [2017], uma delicada semiesfera em vidro soprado de tom azulado realizada em conjunto com mestres vidreiros, evocando a cúpula celeste, os seus mitos e as interpretações sobre o sistema planetário na evolução humana. A campânula de vidro eletrificada por um motor realiza um movimento de rotação quase impercetível [à semelhança do dos capacetes] como o movimento dos ponteiros de um relógio sob o olhar desaparelhado.

O Coração e Os Pulmões, marcada pelos ritmos da rotação, da revolução e da passada adiante [a do espectador e a de Gradiva], aparentando discorrer sobre a autonomia do espírito por via do conhecimento, recupera o tempo fantástico do mundo arcaico cadenciado pelos ciclos naturais em que os mitos procuraram a sua matriz. Contra o tempo linear do progresso introduzido no Ocidente pelo cristianismo e consolidado na modernidade com a cultura científica, a indústria, o expansionismo colonial e todas as declinações mudas, privilegiadas e prometeicas de que somos descendentes.

A exposição desinvestida da dimensão política [no contexto de um território cultural como França, onde tudo é político], mantém, pelo contrário, uma suspensão da tensão erótica, sondando o limiar entre estados a que Marcel Duchamp chamou inframince. É no fio de Ariadne desta qualidade ínfima ou impercetível em que Francisco Tropa procura manter-se, jogando quase invariavelmente entre o concreto [e o patético] do local ou do dado particular, a eloquência das grandes tradições narrativas e a historicidade da compreensão humana sempre aproximativa e fissurada relativamente ao sistema imprevisto em que se organizam a carne e as cosmogonias. De algum modo, O Coração e Os Pulmões é uma boa lição de anatomia dos pressupostos, terrenos, desejantes e astrais, do estado da arte.

 

 

O Firmamento [2017]. Vista de exposição no Musée d'Art Moderne de Paris. Fotografia: François Doury. Cortesia do artista e Galeria Jocelyn Wolff. 

 

 

 

 

 

 

Francisco Tropa

 

 

 

Musée D'Art Moderne de Paris

 

 

 

 

 

João Sousa Cardoso. Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Paris Descartes [Sorbonne]. Defendeu a tese L’imaginaire de la communauté portugaise en France, à travers les images en mouvement [1967–2007], orientada pelo sociólogo Michel Maffesoli. Integrou o Centre d'Études sur l'Actuel et le Quotidien da Universidade Paris Descartes. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian entre 2005 e 2009. Encenou Sequências Narrativas Completas, a partir de Álvaro Lapa, com estreia no Teatro Nacional D. Maria II, em 2019. Dirigiu o TEATRO EXPANDIDO!, no ano de reabertura do Teatro Municipal do Porto, de janeiro a dezembro de 2015, projeto que atravessou a dramaturgia do século XX, levando à cena 11 peças em 12 meses. Publicou os livros Sequências Narrativas Completas [prefácio de António Guerreiro] e A Espanha das Espanhas [prefácio de Jacques Lemière] pela Book Cover, em 2020. Professor na Universidade Lusófona. Escreve regularmente ensaio para o jornal PÚBLICO.

 

 

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