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Peter Wächtler: A Vida no Palco 

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José Marmeleira

 

Em certo sentido, trata-se de uma exposição de dialécticas, de sobreposições, de palimpsestos para os quais contribuem uma série de conceitos, ideias e noções: arte e diversão, cultura não massificada e cultura pop, trabalho e prazer, melancolia e ironia, realidade e ficção, narrativa e objecto, ideia e experiência.

 

Nem sempre sincronizada com os grandes debates que têm predominado na Culturgest, em particular aqueles mais derivados do presente, a programação de artes visuais de Bruno Marchand vai trilhando o seu caminho singular, livre e coerente. Há uma liberdade inscrita no trabalho do curador que exprime uma pluralidade de universos, questões e obras. Resumindo, afirma-se nela um dos elementos constitutivos da arte contemporânea: a sua heterogeneidade irredutível apenas a um discurso ou a um conjunto de discursos. A Vida no Palco do artista alemão Peter Wächtler (Hannover, 1979) é exemplar desta característica, reunindo, sob a curadoria do próprio Bruno Marchand, um conjunto de obras realizadas nos últimos dez anos por um artista pouco conhecido e comentado entre nós. Aliás, a exposição anuncia-se, justamente, na condição de estreia.

Composta de referências inesperadas e familiares, bem como de técnicas e linguagens visuais pouco comuns, trata-se de uma exposição que articula sensibilidade poética com interrogação conceptual, emoção com intelecto. E tem — é importante sublinhá-lo — o condão de, sem sair da história e do território da arte, recolocar o espectador, porventura, na memória de experiências com um determinado tipo de imagens: referimo-nos especificamente às do cinema de animação ou do cinema fantástico. Esse recolocar nada tem, contudo, de nostálgico ou celebrativo. Nada tem que ver, também, com a mera citação ou com o exercício gratuito do pastiche. O que vemos são, de facto, obras trabalhadas a partir de uma origem com técnicas aplicadas pelo artista. Evidencia-se uma opção pela produção manual e artesanal (dir-se-ia até oficinal), num diálogo profundamente informado pela história da arte contemporânea. Em certo sentido, trata-se de uma exposição de dialécticas, de sobreposições, de palimpsestos para os quais contribuem uma série de conceitos, ideias e noções: arte e diversão, cultura não massificada e cultura pop, trabalho e prazer, melancolia e ironia, realidade e ficção, narrativa e objecto, ideia e experiência.

A escultura Untitled (Dog), pelo seu título, evoca a presença de uma forma ou de uma figura, mas essa evocação não é mimética. Está mais próxima de uma corporalização fantasmática que utiliza a gravidade como forma de composição. E, todavia, a escultura procedeu de um trabalho de moldagem à mão: a deformação foi realizada pela intenção do artista na busca de uma determinada forma. É plausível concluir que sob essa intenção tenha estado o desejo de analogia ou alegoria: de facto, a escultura, assim tombada no chão, embora não reproduza a imagem associada à palavra dog, reconduz-nos a uma experiência de solidão, fragilidade ou abandono. Já as esculturas de animais antropomorfizados remetem mais claramente para fontes ou referências partilháveis no campo das culturas visual e literária. Aludem a personagens de literatura infantil, vindas de livros ilustrados de fábulas ou de contos. E, ainda assim, persiste nelas uma certa opacidade que é da materialidade da escultura: quase tangível, tão bruta quanto delicada. Numa primeira aproximação, de facto pensamos em personagens, mas são personagens “abstractas”: se representam algo, representam ânimos, estados de alma, sentimentos, emoções.

Vistas de uma certa perspectiva, serão formas que se afundam na matéria da escultura ou que estão prestes a ser por ela engolidas: encontram-se num limiar que não conseguimos apreender completamente. Não nos contam nada, não vêm de qualquer história, mesmo quando, num primeiro encontro, é isso o que nos parecem prometer. No fim, deixam-nos com a sua presença muda, petrificada. É essa presença que também se manifesta na prosaica e intensa série, Sem título, de bustos, realizada em 2014. São verosímeis, quase realistas — na sua fidelidade à representação mimética parecem alheios aos choques que a modernidade trouxe à escultura — mas devolvem-nos uma incompletude, uma falta qualquer que se torna tanto mais angustiante quando percebemos que ela os assombra. A nossa, porventura? A de todo e qualquer espectador? E ainda assim não deixamos de sorrir, se não mesmo de rir, embora contrariados.

 

 

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Um sentimento fértil de melancolia repousa no gosto de Peter Wächtler por técnicas seculares e manuais e no modo como esse gosto se exprime no trabalho. No caso das esculturas, a técnica de cera perdida e o uso de argila e gesso; no caso dos filmes de animação, no emprego de técnicas 2D, stop-motion e cloud tank. Certamente que esse uso obedece, sobretudo, à necessidade de adequação dos meios às ideias. E, no entanto, o modo como artista toma como sua a animação, algures entre a actividade oficinal e o pendor conceptual de uma teoria crítica, deve ser assinalado. Em certo sentido, Peter Wächtler opera no seu próprio tempo. Em Untitled (Rat), de 2013, vemos aquele rato — ou ratazana — a levantar-se da cama, a sair do plano e depois voltar. Avivam-se memórias de desenhos animados, memórias talvez felizes, mas aquele loop fá-las implodir. Ouve-se uma sucessão de frases que lembram momentos vividos por alguém. Memórias felizes e infelizes, confusas e límpidas, alegres e tristes. O trabalho, a vida, a amizade ou o amor desfilam num fluxo lento que hipnotiza sem anestesiar o espectador. Com a entrada de interpretação à la capella da canção The River de Bruce Springsteen, o torpor é interrompido e nas vozes imperfeitas, quase desafinadas, fora de tom, que cantam a canção, somos trazidos à nossa imperfeição e vulnerabilidade num mundo desencantado. Ao tédio junta-se a ironia e a esta um sentimento de inquietação que o desenho animado vem intensificar. Vemo-nos, de novo, naquela criatura, agora sem a doçura da memória, sem o prazer da melancolia.

Pela exposição de Peter Wächtler vamos caminhando na condição de seres privados (introspectivos, ruminando nos seus mundos interiores) e públicos (espectadores que vêem e são vistos por outros espectadores) — o artista não nos deixa esquecer essa dialéctica: as esculturas Main Actress 1 e Main Actor 2 recebem-nos numa vénia dolorosa pela qual passamos desconfortáveis e envergonhados. Se alguma redenção existe na exposição, ela cintila nos filmes Untitled (Clouds) e Untitled (Vampire): no primeiro, onde o artista recorre à stop-motion e à cloud tank, começamos por observar uma criatura viscosa e voadora num desconcertante monólogo. A dada altura, voará confiante e eufórica. Para onde vai? Não temos a certeza, mas o sentido da narrativa talvez não seja fundamental: o que vemos e retemos é o movimento horizontal de um ser numa paisagem apocalíptica. Peter Wächtler demonstra um talento raro na apropriação da capacidade empática do cinema de animação e do fantástico, colocando-os em diálogos subtis, ora com a escultura, ora com a pintura. Próximo da experiência pictórica, encontra-se precisamente Untitled (Vampire) um dos trabalhos mais impressionantes da exposição e, ao mesmo tempo, um dos mais literários e cinematográficos: deixa-nos com paisagens e vinhetas de um vampiro que se expõe na sua vulnerabilidade humana. É um ser que, preso na eternidade da sua tumba, sonha com música e com os amigos. Lemos e ouvimos que o ele nos diz, o artista, o vampiro, o espectador. 

 

Peter Wächtler

Culturgest

 

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon, suplemento do jornal Público, Contemporânea e Ler].

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

 

Imagens: Peter Wächtler: A Vida no Palco. Vistas da exposição na Culturgest Lisboa. © Fotos António Jorge Silva. Cortesia do artista e Culturgest. 

 

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