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Entrevista a Guilherme Blanc

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Eduarda Neves

Batalha Centro de Cinema:

Transformação, conexão e permeabilidade

 

Guilherme Blanc é director artístico do Batalha Centro de Cinema. Entre 2017 e 2021 foi director artístico da Galeria Municipal do Porto e do Fórum do Futuro, tendo sido responsável pelos programas de apoio à prática artística e ao cinema no município do Porto. Trabalhou ao longo dos anos como curador independente de cinema, colaborando com instituições como Institute of Contemporary Arts ou o Barbican Centre. De 2014 a 2018 foi Adjunto do Vereador e do Presidente da Câmara do Porto para a Cultura. Lecciona, desde 2017, nos cursos de Cinema, Licenciatura e Mestrado, da Universidade Católica Portuguesa — Escola das Artes. Integra, como personalidade externa, o Conselho Geral da ESAP — Escola Superior Artística do Porto.

 

 

Eduarda Neves (EN): No âmbito da programação do ano de 2023, que pode ser consultada no site do BATALHA CENTRO DE CINEMA, é manifesta uma perspectiva não apenas disciplinar mas, fundamentalmente, transdisciplinar e internacional sobre o cinema e o filme, sobressaindo o lugar estratégico que estes cada vez mais ocupam no campo das artes visuais e da imagem em movimento. Podemos esperar que este renovado espaço venha contribuir para atenuar a lacuna existente, a este nível, não apenas na cidade do Porto mas talvez no país? 

 

Guilherme Blanc (GB): Creio que sim. O nosso interesse é, aliás, diluir interrupções entre o que se pode considerar ‘filme de artista’ e cinema. Estamos a tentar criar espaços de programação nos quais diversas linguagens convivem, ligando-as mais por questões discursivas do que formais. Vemos artistas altamente interessados em cinema comercial (cinema popular, até) que enforma hoje práticas artísticas; simultaneamente, existem inúmeros festivais de cinema (inclusivamente os chamados “A Festivals”) a mostrar cinema de artista, mais ou menos experimental. Nesse sentido, vive-se um momento interessante de produção na área da imagem em movimento, cabendo-nos interpretá-lo e servir de interlocutores destes processos, junto a diferentes públicos.  

 

EN: Tendo em conta algumas particularidades desta estrutura — que julgo subtrair-se a fronteiras temporais, geográficas e outras categorias fixas, além de incluir projectos expositivos, uma filmoteca e biblioteca —  foi já considerada uma eventual política de aquisições ou a criação de um arquivo fílmico, videográfico e fotográfico? 

 

GB: Desenvolvemos um projecto de “filmoteca” que se traduz num arquivo de cinema, de acesso livre, na biblioteca. Com uma particularidade: colige filmes que explicam a produção fílmica no Porto; ou seja, obras que documentam a cultura da cidade ou que, em si, ilustram práticas de cinema relevantes na produção do Porto ao longo do tempo. É um projecto relativamente maximalista. O objectivo é documental e arquivístico, incluindo cinema que pode ir de práticas amadoras, a filmes premiados, integrando também cinema de artista. Não é, em rigor, uma colecção. E não são, por regra, adquiridos filmes. Adquire-se antes a permissão para, durante um período de dez anos (renováveis), estarem disponíveis ao público neste espaço de visionamento. Pontualmente — como aliás irá acontecer no 25 de abril, com a obra Porto 1975, de Filipa César — desenvolvemos programas de cinema a partir deste arquivo.      

 

EN: O cinema português e a sua história ocupa um lugar fundamental na programação apresentada. Que singularidades destacaria neste extenso ciclo anual? 

 

GB: Propõe-se uma visão curatorial específica, com as idiossincrasias inerentes ao gosto e conhecimento dos dois curadores (Paulo Cunha e Daniel Ribas). O ciclo é longo e por isso tem alguma abrangência histórica; consegue cruzar obras estranhamente obscuras — por exemplo, Guerra Civil, de Pedro Caldas, nunca antes mostrado na cidade e julgo que não mais do que quatro ou cinco vezes a nível nacional — com obras fundamentais e algo divulgadas mas que continuam a ter um público fiel ou que encontram agora novas pessoas interessadas. Foi surpreendente ver o público no Bobo, de José Álvaro Morais, no Xavier de Mozos, no Glória de Manuela Viegas... Não é um ciclo indiferente a releituras ou recontextualizações, o que para nós seria fundamental, também.

 

EN: Estão delineados programas de residências nacionais e internacionais para cineastas, artistas e curadores ou mesmo entre instituições? Já pensou em formatos e condições? 

 

GB: Existem projectos que comissariamos e que implicam alguma permanência na cidade. Não estamos a dar esse enquadramento, de “residência”. Mas, pensando nisso, em certa medida aproximam-se dele. Por exemplo, a última exposição de 2023 apresentará uma obra nova do artista Jonathas de Andrade. Será, na verdade, a primeira obra que desenvolve fora do Brasil. Estamos expectantes! O projecto parte de um convite para desenvolver uma obra a partir da praça da Batalha e em torno do bairro, de certa forma absorvendo alguns princípios que trabalhou no último filme O Olho da Rua, apresentado em Veneza na exposição Penumbra. A praça é possivelmente dos locais mais confusos, ricos e complexos do Porto, a nível social e cultural… Trabalhamos também de forma prolongada com curadores, nacionais e internacionais; com artistas, para o desenvolvimento de novas obras, como aconteceu com Tomás Paula Marques e ainda colaboramos com instituições, como o WIELS, por exemplo (num projecto de cinema-performance de James Richards e Billy Bultheel). Mas não exactamente em residência. Para já.  

 

EN: É evidente a atenção ao presente, à diversidade de públicos, tanto ao nível da programação fílmica e expositiva como nos domínios da mediação, escrita, formação e investigação. De que forma estas valências mutuamente se potenciam, assim tornando visível que o projecto de requalificação do Batalha não se limita ao edifício?

 

GB: Potenciam-se mutuamente e potenciam a instituição — especialmente uma cultura de participação e experienciação cultural mais aprofundada, mais ligada e sensível. Acreditamos que o Batalha pode construir espaços de relação com o cinema e a imagem em movimento que não se esgotam num filme visto dentro de uma sala. Isso não é suficiente ou, pelo menos, não é suficiente para o projecto público que queremos construir. Quando dizemos que o Batalha é um centro de cinema, um “film centre”, pretendemos explicar que estamos a desenvolver um projecto que propõe diversas formas de relação a partir do cinema; formas de conhecimento e de expressão através da imagem em movimento. E, nesse sentido, encontramos modos de programação que potenciem estas ideias e espaços. Mas também espaços de relação entre pessoas. No fundo, estamos a trabalhar para que o Batalha possa ser um lugar aberto, social, disponível para contribuir para relações — pessoais e fílmicas — em todas as idades.    

 

EN: As relações com o Cineclube do Porto, salas de cinema da cidade e outras cinematografias, plataformas, festivais, as escolas, pequenas produtoras e outras interacções de vizinhança e comunitárias, enunciam uma vontade de compromisso. Quer falar sobre a importância do cinema enquanto ferramenta de mobilização e o lugar que ocupa neste seu projecto de abertura e cidadania?

 

GB: É a nossa área. Se fosse outra, deveríamos fazer o mesmo. Não creio que o cinema traga consigo uma particularidade disciplinar a esse nível. Não somos um projecto privado, somos mais do que uma iniciativa pública: somos também uma instituição municipal. As instituições culturais, públicas ou privadas (tendo ferramentas públicas para levarem a cabo a sua missão), não se podem alhear de uma responsabilidade de potenciar o sector em que trabalham, mas também o lugar — político e cultural — onde se situam. Temos de ser cuidadores dos agentes, dos nossos vizinhos, sem sermos vampirescos, impositivos, dominadores. Às vezes corre-se esse risco, e é importante revê-lo de forma quase permanente. O Batalha é, no fundo, o resultado de muitas coisas, materiais e simbólicas, construídas ao longo de anos, a partir do empenho de agentes do cinema e da arte, mas também de todas as pessoas que não queriam ver este espaço colapsado, ou entregue a um hotel, bingo ou restaurante, e que sonhavam com uma instituição pública para o cinema no Porto. Ilustrativamente, estamos neste momento a trabalhar com pessoas do Bangladesh, nossas vizinhas, num programa de cinema que vai decorrer em finais de fevereiro. Mas que serve também de veículo para as conhecermos e explicarmos que o Batalha é um vizinho de porta aberta. Antes de o Batalha ser reabilitado, a associação do Bangladesh já fazia aqui sessões de cinema e comemorava o seu Dia da Língua Materna. É um património que deve ser valorizado e respeitado. Convidámo-las, por isso, a fazer uma jantar de celebração nesse dia, 22 de fevereiro. Se não é para isso que serve uma instituição cultural, para que será?    

 

EN: Sabemos que é importante em estruturas complexas desta natureza um conjunto de recursos humanos especializados e dotados de competências que assegurem um funcionamento profissional. Tem a equipa necessária e suficiente para a missão que este Centro de Cinema se propõe desenvolver? 

 

GB: Creio que preciso de mais tempo de projecto para responder a essa questão. Às vezes acho que sim, outras vezes acho que não, e que a equipa deveria ser em alguma medida reforçada em algumas áreas que demoram muito a estabilizar — como, por exemplo, as de produção e gestão executiva, que estão a construir, em colaboração com a própria empresa municipal, inúmeros modelos sem precedentes a nível de operação administrativa (ao mesmo tempo que têm de garantir que tudo no presente funciona e corre sem perturbação). Continuamos a ser uma equipa pequena no universo da cultura da empresa municipal Ágora — atualmente, o número de pessoas no Batalha é menos de metade do que no Teatro Municipal do Porto, por exemplo. Estamos também num processo de aprendizagem sobre o nosso processo de produção interna, o nosso volume de trabalho, as complexidades burocráticas a que estamos sujeitos, e que afectam muitíssimo a decisão artística. Fomos muito expostos ao processo de obra, o que seria inevitável em certa medida; mas isso traduziu-se num esforço hercúleo de toda a equipa, que retirou tempo expressivo a áreas “core” do nosso trabalho. Estamos ainda a sair desse processo. Julgo que seis meses deverão servir para medir de forma mais ponderada necessidades e recursos. Uma coisa é certa, a Ágora, e nós, não vamos ter pessoas irregular ou precariamente contratadas; nem uma equipa que não nos permita ter projectos educativos, projecção adequada, programação própria, acolhimento correto a parceiros, acessibilidades com legendagem e tradução. Não se pode apenas sonhar com oportunidades culturais. Tem de se perceber o que isso implica a nível de recursos, humanos e financeiros.

 

EN: Aproveitando para recordar o saudoso João Paulo Seara Cardoso e o Teatro de Marionetas do Porto, diria que até agora ficamos a saber o que “vai no Batalha”. Que viagens podemos esperar a partir de 2024?

 

GB: É engraçado falar no João Paulo. Um dos projectos que finaliza o ano de 2023 é um filme-musical dos ‘Amigos do Gaspar’. Estamos literalmente a ressuscitar as marionetas, com o apoio do Raúl Constante Pereira — marionetista e filho do co-autor Jorge Constante Pereira — e vamos fazer um filme novo a partir do álbum do Sérgio Godinho, com a realização do Duarte Coimbra. Em 2024 iremos continuar a desenvolver as nossas principais linhas curatoriais actuais: focos de cinema, programas discursivos, performances, grupos de encontro, exposições. Sendo 2023 um ano de início e de semeio, 2024 será de fermentação, de ideias e programas que lançámos. Pode ser por isso um ano de alguma transformação, mas também maior conexão e permeabilidade.     

 

 

Guilherme Blanc

Batalha Centro de Cinema 

 

Eduarda Neves. Professora, ensaísta e curadora independente. A sua actividade de investigação e de curadoria articula os domínios da arte, filosofia e política.

 

A autora escreve segundo o anterior acordo ortográfico.

 

BCC_2023-01-17 - T.J. Demos-palestra_Paulo Cunha Martins
BCC _2022-12-22 Grupo Clube de Leitura_Paulo Cunha Martins
BCC_Juliana Huxtable_djset_10-12-22_Paulo Cunha Martins
BCC_2023-01-14 - Performance-Sky Hopinka_Paulo Cunha Martins
BCC_Conversa_Luas-Novas_Tomas-Paula-Marques_Paulo Cunha Martins
BCC_Escolas_Paulo Cunha Martins
BCC _2022-12-22_Brazil_Sessao-especial-Natal_Paulo Cunha Martins

Imagem de capa: Instalação de Agnieszka Polska (Paulo Cunha Martins). Restantes imagens: Palestra de T. J. Demos; Clube de Leitura (Paulo Cunha Martins); DJset Juliana Huxtable (Paulo Cunha Martins); Performance Sky Hopinka; Conversa Luas Novas; Visita de escolas; Brazil, sessão especial Natal Paulo Cunha Martins. 

 

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