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Strange Attractor

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Susana Ventura

 

Do outro lado da matéria

(ou do outro lado do pensamento)

 

Existem horas mágicas. O crepúsculo é uma delas, assinalando o intervalo, a passagem, a diferença entre estados, que acreditamos serem físicos, da nossa existência aqui neste lugar, que ainda não compreendemos totalmente, e aqueles outros que revestimos com palavras evocativas, capazes de acordar diferentes emoções. Os símbolos só funcionam quando conhecemos os seus significados, como dizia Louise Bourgeois. No entanto, há essa particularidade inegável do crepúsculo que advém da variação luminescente fugaz, muito breve, de um azul claro (naquele dia era azul limpo de sol de Inverno) a azul escuro, muito escuro, logo a seguir, até se eclipsar em negro de noite. Acabou por ser uma coincidência ter visitado a exposição Strange Attractor, com a curadoria de Margarida Mendes, no Pavilhão Branco sob esta luz crepuscular. Encantada pelo som dos pavões já no cimo das árvores na sua canção de embalar, demorei a entrar, quando notei que fora à hora precisa para a descobrir. O percurso pelo jardim e o prenúncio do sono dos pavões funcionaram como um prelúdio perfeito, reverberando nas paredes de vidro do pavilhão a sua presença evanescente enquanto estas se transformavam em panos pretos. Será, completamente, diferente visitar a exposição durante a luz clara do início da tarde, quando as paredes de vidro desaparecem e as obras adquirem essa profundidade virtual, transformando o próprio intervalo num campo energético que nos envia e reenvia, sempre uma e outra vez, às obras e à Natureza, num jogo contínuo de sedução e perplexidade.

Independentemente de se reconhecerem as razões, somos sempre estranhos seres no meio da Natureza. Nem poderia ser de outra forma: a já demasiado longa tentativa de nos apoderarmos dela e a dominarmos, de a compreendermos como propriedade, nasceu no Ocidente unicamente pelo medo (face indiscernível do poder). No Oriente, a relação do ser humano com a Natureza é, completamente, distinta (sendo relevante a presença de duas artistas de origens orientais, Nobuko Tsuchiya, do Japão, e Geum Beollae, da Coreia do Sul). Nas expressões artísticas japonesas, por exemplo, encontramos, frequentemente, uma relação visceral com a Natureza e os seus elementos, em que o corpo é compreendido como um vaso que recolhe, em si, as intempéries ou o que de mais profundo a Natureza dá a ver. É fácil deleitarmo-nos com o espectáculo das cerejeiras em flor, com a fragrância das ameixieiras ou com a suave brisa do vento (motivos recorrentes na pintura e na poesia japonesas); mais difícil será recolher na obra de arte a beleza da erupção das forças violentas da Natureza: as chuvas intensas, o vento forte, a escuridão absoluta, o nevoeiro, que são igualmente motivos recorrentes. Mas foi, precisamente, através deste pulsar violento e inconstante da Natureza que os japoneses desenvolveram uma sensibilidade que, ao longo dos séculos, ter-se-á tornado intrínseca à sua própria natureza, para a mutação e a evanescência das coisas, para a impermanência e a vulnerabilidade da vida. Ideias opostas à visão ocidental mais comum, que tende a olhar e a pensar o mundo a partir de uma imutabilidade, que é senão aparente (e é esta perspectiva que continua, também, a bloquear a transformação de um certo modo de pensar sobre a coexistência do ser humano, de todas as formas vivas não-humanas e da Natureza).

Esta exposição tem início, segundo as palavras da curadora, na “impermanência da matéria, que sempre muda de estado e se transubstancia, circulando em constante mutação”, em que as diferentes obras “exploram o pendor transformador do mundo natural”.[1] A impermanência da matéria, que traduz tanto a beleza transitória natural, como a própria fragilidade humana, permite requestionar toda a tradição do pensamento ocidental, que assenta na ideia de propriedade da Natureza, o que implica imiscuir a ideia de impermanência (que encontramos na Natureza e em todos os seus metaestados) no pensamento e nas nossas relações com o Mundo (e não apenas com a Natureza). Em “The Past is Yet to Come”, Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski[2] colocam o problema da transcendência — característica do pensamento e da civilização ocidentais — no centro do problema da relação do homem com a Natureza, contrapondo com a ideia de imanência, existente, por exemplo, nas comunidades primitivas e, ainda hoje, nalgumas comunidades indígenas. Ao alterar o pensamento, incluindo aquele transcendental, as nossas relações alteram-se não só com a Natureza, como também com os objectos, uma outra ideia que encontramos na exposição, desvelada, aliás, nos últimos dois versos do poema de Ursula K. Le Guin, escritos, precisamente, do ponto da imanência: “All earth’s dust / has been life, held soul, is holy”.[3]

Será neste sentido que poderemos compreender a presença do sagrado em várias das obras como evocação dessa primeira (e última) matéria que impregna todos os corpos, fazendo-os ressoar entre si.

A ressonância é, também, ela matéria da exposição nas ligações entre obras tão díspares, intensificada pelo som inaudível liberto pelas linhas serpenteantes das esculturas de Joana Escoval ou o plim que ecoa cadencialmente pelo espaço a partir de uma das instalações de Geum Beollae, tornando-se presença (corpo). A escuta (expressa de forma muito clara na escultura It arises not from any cause, but from the cooperation of many, de Joana Escoval) faz-se atenta na delicadeza do pormenor, recordando, uma vez mais, a ideia japonesa presente em muitos haikus: não se trata de intuir no pormenor uma totalidade cósmica ou a eternidade, mas desvelar na singularidade, na exactidão e brevidade, a beleza transitória e a mutação. É através da contemplação do ínfimo pormenor (e todas as obras, independentemente da sua escala, concentram esta delicadeza) que se consegue apreender o inevitável, o inaudível que se transforma em som, o invisível (as forças invisíveis, as forças da terra, as forças aéreas, as forças de germinação, etc.) que se transforma em linhas, linhas de bronze, de latão, de cabelo, de crina de cavalo, povoando o espaço inteiro de uma energia cósmica, energia sagrada (de salientar que o espaço é utilizado em todas as suas dimensões, com esculturas em umbrais, quase suspensas, no chão, em recessos das paredes, etc.). O primitivo, o ritual, a divinação, evocados na exposição através das memórias da artista Geum Beollae, expressam esta energia cósmica imanente, presente tanto nas coisas tangíveis como nas intangíveis (no caso específico da memória, esta é tornada tangível através da obra, tanto formal como materialmente), tal como o fogo (símbolo, para certas comunidades, do sagrado, sendo, igualmente, expressão de evanescência, ou ainda força que vive nas profundezas da terra) nas esculturas de Isabel Carvalho, feitas de gesso pintado, previamente moldado em matrizes de barro com vestígios de incenso queimado e pó de ouro, que ardem e permanecem, durante algum tempo, incandescentes.

Em todas as obras encontramos outra ideia que reforça as mencionadas previamente e que poderemos compreender através do modelo de modulação de Gilbert Simondon (relevantemente proposto como oposto ao modelo hilemórfico tradicional — característico do pensamento ocidental — que opõe forma e matéria). No modelo de modulação, não existe separação entre forma e matéria, pelo contrário, ambas formam-se e são formadas simultânea e continuamente no plano de forças que se gera entre ambas. Pensando num dos exemplos recorrentes de Simondon: o tijolo não resulta da imposição de uma forma sobre uma matéria inerte, mas sim das qualidades e potencialidades particulares da própria argila que lhe conferem uma estrutura moldável. É este potencial de deformações e variação no interior da argila que permite a sua transformação, enquanto o molde, que determina a forma, é apenas um limite imposto a essas potencialidades. Será necessário advertir que a individuação não é um modelo de moldagem, mas sim de modulação (e Simondon insiste nesta distinção). Enquanto o primeiro é estático, o segundo é um processo dinâmico contínuo. Considerando a teoria da individuação de Simondon, as potencialidades pré-individuais do barro sofrem uma individuação particular, cujos limites são determinados pelo molde. Quando olhamos para as várias obras em exposição, vemos como todas elas continuam em mutação. Algumas de forma mais acentuada e visível (a água que borrifa os cogumelos, que crescem e alteram a sua forma constantemente), como por exemplo, as que contêm materiais perecíveis ou frágeis, outras que incluem logo na sua composição a deterioração, utilizando, como material, o bolor ou a ferrugem. São obras que resultam desse processo de modulação contínuo, em que forma e matéria se tornam indiscerníveis, como por exemplo, as esculturas de Isabel Carvalho em gesso, que, nas palavras de Margarida Mendes, passaram “por uma relação com o corpo humano como parte do processo da sua modelagem, deixando impresso no gesso a gestualidade do seu toque”.[4] E, ao mesmo tempo, parecem evocar um tempo longínquo de organismos híbridos fossilizados. A incerteza, a indefinição e o acidente são potencialidades pré-individuais das diferentes matérias, como nas esculturas de Nobuko Tsuchiya, nas quais a forma forma um conjunto flutuante e intensivo de diferentes forças em acção, criando simbioses onde se pressentem as potencialidades ocultas. A utilização do metal por Joana Escoval terá razão no mesmo princípio. O metal passa por diferentes processos alquímicos, encontrando-se sempre em constante mutação, dilatando, contraindo, ressoando no nosso corpo. O corpo como caixa de ressonância será a última matéria de composição das diferentes obras. Pois esta é uma exposição para sentir ou qual infinitésima partícula do Cosmos: ressoar. Learning to mix metals in specific proportions to produce I see a sound pleasant to all creatures… (Joana Escoval, 2018-2021).

 

Galerias Municipais

Margarida Mendes

 

 

Susana Ventura (Coimbra, 1978) Arquitecta de formação (darq-FCTUC, 2003), contudo prefere dedicar-se à curadoria, à escrita e à investigação, cruzando diferentes áreas do conhecimento. Gosta de pensar sobre arte, arquitectura, fotografia, cinema e dança, e ensaiar, ora em textos, ora em exposições, outras possibilidades de pensamento. (Por isso, também, doutorou-se em Filosofia, na especialidade de Estética, FCSH-UNL, 2013, sob orientação científica de José Gil). Foi co-curadora de Utopia/Distopia, no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia de Lisboa (MAAT). Recentemente, foi curadora da exposição Corpo Radial de Mariana Caló e Francisco Queimadela na Galeria da Boavista, em Lisboa.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

 

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Strange Attractor. Vistas gerais da exposição no Pavilhão Branco. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia de Galerias Municipais de Lisboa / EGEAC.

 

 


Notas:

[1] Margarida Mendes, Folha de Sala Strange Attractor

[2] O ensaio pode ser consultado no link.

[3] O texto de Margarida Mendes da folha de sala abre com o poema “Come to Dust”, de Ursula K. Le Guin, que termina com estes dois versos.

[4] Margarida Mendes, Folha de Sala Strange Attractor

 

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