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Samson Kambalu conversa com Gisela Casimiro

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Gisela Casimiro

 

Nem sempre temos a oportunidade de ter um artista e professor a guiar-nos pela sua exposição, conversando candidamente sobre o seu trabalho e motivações. Tive essa sorte com Fracture Empire, de Samson Kambalu e curadoria de Bruno Marchand, patente na Culturgest até 6 de Fevereiro. Dias antes, assisti à sua palestra sobre a questão da dádiva, sempre presente no seu trabalho. O seu trabalho artístico é encarado como uma dádiva, na verdade, e aí começa a problematização desse acto. Para Kambalu, é importante ser-se competente e subtil enquanto doador, é importante que quem recebe quase não perceba que algo está a ser-lhe oferecido, algo que compara com o que se percepciona depois de ler Nietzsche. Devolver uma prenda é amaldiçoá-la. Devemos dar uma prenda sem que alguém repare. Enquanto artistas ou poetas, devemos criar e partilhar evitando a vulgarização da nossa oferta. Fico a saber que é considerado rude agradecer, no Malawi. Agradecer é reconhecer a prenda, quando o propósito da prenda é não ser percepcionada como tal. Samson fala da questão da troca na religião, e é inevitável pensar em como começaram os primeiros contactos entre colonizadores e os povos por eles explorados, até a troca se tornar demasiado desequilibrada e inquantificável. Alguns exemplos desta questão da dádiva são os donativos religiosos; amar o próximo directamente pode causar raiva e humilhação, daí as dádivas serem feitas à igreja, que depois as distribui. Ou numa vernissage, onde as pessoas comem e bebem sem o peso de uma conta que tem de ser dividida ou de alguém a quem agradecer por suportar o custo, como aconteceria num bar. A dádiva como uma dívida, como um factor de distanciamento e não de aproximação. Quem pode receber e quem pode dar, quem perde quem ganha? As máscaras ajudam neste processo, elas geram trocas sem obrigações, funcionam como mediadoras. Limitar-se  a aceitar um presente, isso sim, é estabelecer um laço. Ainda assim, agradeço o seu tempo. Não se ofende.

A visita começa pela profunda admiração de Kambalu pelo controverso herói nacional John Chilembwe, pastor e político falecido em 1915 e  responsável pela malograda primeira revolta malawiana. O ponto de viragem que originou a revolta contra o sistema colonial liderada por Chilembwe terá sido o forçar de malawianos a lutar pelo coroa britânica na Primeira Grande Guerra, contra os tanzanianos que, por sua vez, lutavam pela colonizadora Alemanha. Explica Kambalu: “Esta foto de John Chilembwe foi tirada meses antes de ele morrer, ainda em 1914. Na altura, era ilegal para os africanos usarem um chapéu em frente a um homem branco.” Ainda assim, a foto na qual se baseia a escultura “Antelope” (que é o que Chilembwe significa), de Kambalu, retrata precisamente isso: Chilembwe ao lado de John Chorley, um missionário europeu. As diferenças maiores entre a foto e a maquete que foi co-vencedora do Fourth Plinth, em Trafalgar Square, são de proporção e posicionamento. Os dois homens, negro e branco, africano e europeu, já não estão lado a lado e virados de frente, mas de costas voltadas um para o outro, obrigando o público a circundar a estátua e a deixar-se espantar pela sua desproporcionalidade. A de Chilembwe, diga-se, é extrapolada, para tornar visível o homem negro, o africano. Chorley, por seu lado, é representado numa escala mais realista, aparecendo assim bem mais pequeno do que o amigo. O trabalho provocador altera as escalas. Samson eleva o homem negro, na escultura. O mesmo homem que, na foto que a inspira, está lado a lado e é da mesma estatura e constituição física do que o homem branco que o acompanha. O sentimento surgiu muito antes da forma de concretização. Uma proposta que foi feita antes do impacto mundial que a morte de George Floyd teria no mundo. Uma estátua para acolher, admirar e não derrubar. Um teste à aceitação e verdadeira legitimação de Samson enquanto cidadão britânico cujo coração permanece malawiano. O aprofundar das questões coloniais a partir da perspectiva africana e não europeia.

Na escultura, os homens não se olham. Recordo-me do dueto de David Bowie e Al B. Sure!, Black Tie White Noise, uma canção sobre aliança mas sempre com uma desconfiança latente, subliminar, um risco. Sobre o virar costas sabendo que, se houver sangue, pelo menos não haverá morte. Mas nunca fiando. “Ter um aliado não o impediu de ser morto. A luta pelo reconhecimento ultrapassa a disparidade do tamanho, complica o seu lugar. Significa que, sendo negro, sempre nos destacamos, para o bem e para o mal. Godzilla, King Kong, divindades. A estátua equilibra e iguala”, prossegue Samson. Pergunto a Kambulu se usa sempre chapéus, ao que responde, rindo, que sim. “Cresci com dandies e o que no início do século era ilegal, agora é um símbolo de liberdade.” Sabemos o quanto o estilo está ligado à black excellence e ao Sunday best, constituindo ainda hoje um factor de contínua apropriação cultural, quando muitas vezes, nas representações coloniais, as pessoas negras eram representadas sem roupa ou sapatos. “Ele, Chilembwe, segura um livro também e óculos, que esconde. O chapéu guarda um segredo, está virado de lado. A questão é aparentemente sobre chapéus, mas algo nos obriga a mudar a perspectiva, a posição de um objecto. Começa a brilhar como um halo”, diz o artista, sem nunca perder o sorriso. A sala tem ainda fotos de uma igreja antes e depois da construção. A catedral é uma obra de Chilembwe, e torna-se impossível rondar a maquete sem vê-la. As árvores foram cortadas antes, e os soldados fotografados nesse cenário agora desértico. Foi apanhado quando tentava escapar para Moçambique. Cortar as árvores é um acto de crueldade específica, de modo a que o regresso não seja possível, destrói-se o edifício e também o ambiente em seu redor. Um edifício demora sempre menos a ser reconstruído do que a natureza. As árvores são a vida, o corpo. Uma destruição niilista, de desprezo e raiva profundas. Não é apenas uma guerra, é uma extinção da possibilidade de a próxima geração se alimentar, ter sombra e madeira daquelas árvores, um atrasar da própria vida. São diferentes fases da destruição, retratadas em fotos, como uma performance de guerra dentro da própria guerra ou guerras que se sobrepõem, mundial, colonial, civil.

Prosseguimos. “Estes disfarces eram por vezes usados por um ou dois homens, dentro, mesmo representando uma mulher, ou o seu útero. Os meus filmes são uma forma de disfarce. Eu nunca me preparo para os meus filmes, apenas caminho e eles acontecem quando encontro lugares de interesse. O mundo transforma-se magicamente quando o vejo pelos olhos do cinema. Posso atravessar paredes, voar. Posso decidir polir uma bomba atómica ou tentar arrefecê-la. Tornamo-nos parte deste Cinema Nyau, como lhe chama, a partir da tradição de máscaras (feitas de madeira e palha) com o mesmo nome. O povo Chewa usa precisamente o antílope como a máscara principal, nos seus rituais. Os britânicos aboliram os fatos tradicionais, mas conseguimos esse efeito com os fatos modernos. É o mesmo que as máscaras permitem. Podemos até mascarar-nos sem a máscara. Através de um fato, por exemplo. Tento criar um entusiasmo activo e não passivo como o do teatro. Os meus filmes encorajam movimento, interacção, participação. Posso ver estes filmes e continuar a falar, por exemplo.” Como nos mercados em África, em que tudo acontece ininterruptamente. “Não há uma escolha, se me cruzar contigo na rua e me passas uma câmara e pedes que te filme, estou de repente a dirigir-te e a ser parte de algo. As pessoas abordam-me e faço amigos dessa forma. As pessoas reagem de outra forma. Bruno Marchand viu estes filmes na Bienal de Veneza. A arte ajudou. Sem a máscara, as pessoas não podem interagir, conectar, pois não existe um motivo. Assim, adultos e crianças estão à disposição dessa magia.” A máscara torna-se não quem eu poderia ser, mas eu quem realmente sou, sem condicionante. Hoje em dia vemos as máscaras como protecção, mas de momento torna-se a verdadeira face das pessoas. Mal reconhecemos as pessoas sem elas. Combinamos o tecido, o padrão ou a cor da roupa com a das máscaras, descartáveis ou não. Tornam-se uma armadura, ou um entretém, podem passar uma mensagem de humor ou de direitos humanos, como as de Naomi Osaka em consonância com o movimento Black Lives Matter.

Samson fala-me da dança Mganda, originária do Malawi, mostra-me um vídeo. “Estas pessoas lutaram pelos britânicos, mas agora troçam os britânicos, numa impulsão do movimento grassroots. Ridicularizam o imperialismo britânico e o seu significado. Deixam de ter medo, respeito, subordinação. Vestem-se como eles, com o chapéu e a bengala, mas as danças são tribais. Tornaram a disciplina militar britânica numa dança. São contemporâneos da estátua com o chapéu. A elegância de Chilembwe também era subversiva. Pegava nos maneirismos britânicos e personalizava-os.” Mesmo que aparentemente me pareça com o outro, tenho a minha própria essência. Mesmo com o chapéu virado ao contrário, foi um sinal muito peculiar que ele deixou, uma pequena e subtil mensagem que ele deixou para alguém encontrar. Alguém como Samson.

 

“Quando comecei a fazer estes filmes eu tinha muito tempo. Era muito pobre, não tinha internet em casa nem mensagens a não ser de príncipes nigerianos, scammers. Os africanos encontravam-se nos lugares públicos, nos cafés de internet, era aí que criavam comunidade. Esperavam de mim que fosse segurança ou motorista de táxi, quando aqui cheguei. Esperavam quebrar-me, esperavam que desistisse, mas continuei. O racismo nos USA é muito menos subtil do que o Britânico, que talvez seja mais desprezível. O meu tempo é-me retirado constantemente, é talvez a única coisa de que não sinto falta agora, sendo famoso.”

 

 

As bandeiras estão expostas em duas salas, umas em linho e poliéster, nas paredes. Outras, enquanto postais repetidos em variadíssimos formatos e cores em expositores, que o público pode e deve levar consigo. São parte do modernismo malawiano. “Faço bandeiras no meu telemóvel, como um DJ que mistura cores e formas. É preciso talento e sensibilidade. Claro que os miúdos de hoje em dia serão melhores do que eu. Com o tempo, percebi que quanto mais simples, melhor. Isto surgiu de umas pastilhas que comíamos em miúdos e que vinham com bandeiras. Uma forma de continuar a colecção da minha infância. Estas bandeiras são normalmente feitas por mulheres. Sim, provavelmente as bandeiras são onde eu encontro tempo. Trabalho manual demora tempo e faz-nos apreciar o tempo. Os padrões dos meus filmes, repetitivos e abstractos são como os destas bandeiras. Penso nesta ideia de ir para a prisão para cumprir tempo. As pessoas vêem isso como algo que dignifica. Não é uma escolha, nunca é, ir para a prisão. Mas é uma forma de desafio. Só as pessoas muito ricas ou as muito pobres têm esse tempo. Há uma competitividade de sofrimento, que é vista como uma marca de dignidade. As pessoas falam da perda, mostram tatuagens e cicatrizes. Aqui, na Europa, o sofrimento é escondido. Em África, ele é orgulhosamente exibido.” Observo que o tempo dos soberanos vem da subalternização de outras pessoas, sobretudo das pessoas negras. O tempo retirado a pessoas negras multiplica o das pessoas brancas, como aprendemos com Françoise Vergès.

Voltamos ainda e sempre a Chilembwe, embora haja muito mais para ver e descobrir em Fracture Empire. “Ele é o primeiro africano que une os malawianos como uma nação e não como tribos divididas. A morte dele foi o factor decisivo. Os britânicos separavam-nos, era a sua estratégia. Ele era um pan-africanista que lutava pela união. Esta escultura foi inevitável, para mim. É a História. Os londrinos não têm escolha, soube de imediato que estátua colocaria em Trafalgar Square. Acredito na inevitabilidade do nosso tempo. Quando é o nosso momento, ninguém pode impedi-los. Ele enviou uma mensagem de confiança, esperança que alguém descodificasse esse sinal. A estátua estará dois anos em Trafalgar Square, a transmitir mensagens de esperança e igualdade. Simbólico e sinal dos tempos que correm.”

 

 

Samson Kambalu

Culturgest

 

Gisela Casimiro (Guiné-Bissau, 1984) é uma escritora, artista e ativista portuguesa. Publicou Erosão (Urutau, 2018) e fez parte de antologias como Rio das Pérolas (Ipsis Verbis, 2020), Venceremos! Discursos escolhidos de Thomas Sankara (Falas Afrikanas, 2020) e As Penélopes (Bairro dos Livros, 2021). Nos últimos anos assinou crónicas regulares no Hoje Macau, Buala e Contemporânea. Participou ainda em exposições no O Armário, Galeria Zé dos Bois, Balcony e Museu Nacional de Etnologia. Dirige o departamento de Cultura do INMUNE: Instituto da Mulher Negra em Portugal.

 

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Samson Kambalu, Fracture Empire. Vistas gerais da exposição Culturgest. Fotos: António Jorge da Silva. Cortesia do artista e Culturgest/Fundação Caixa Geral de Depósitos.

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