20 / 24

Lea Managil: Spleen 

IMG_0256-Edit.jpg
David Silva Revés

 

Fundado em 2014 e existindo, desde então, de forma independente e discreta no panorama artístico lisboeta — ainda que não de modo menos consequente —, O Armário é um projecto especial. Não só por ser conduzido pela mão, companhia e olhar atentos de Benedita Pestana — preocupada em fazer do seu espaço um verdadeiro lugar de encontros, comunidade e agitação de pensamentos —, mas igualmente pela particularidade no mote lançado a que artistas ali intervenham de forma totalmente livre e experimental face às singulares proposições. Como o próprio nome indica, a proposta curatorial d’O Armário caracteriza-se pela existência à priori dessa tipologia de objecto no interior do espaço expositivo, cuja presença, apesar da(s) forma(s) e modo(s) como tal possa acontecer, é circunstância indispensável em cada momento de apresentação. À ocupação artística “é dado livre-arbítrio, podendo utilizar todos os meios na resolução do desafio. A única condição é não mover o armário para fora da sala onde se encontra e respeitar a sua integridade”, pode ler-se na breve apresentação do site que documenta todo o projecto. Tendo essa integridade sido revelada, ao longo do tempo, como conceito líquido e profundamente questionável no melhor sentido do termo, artistas que pel’O Armário foram passando — ou melhor, que com ele se foram, literalmente, cruzando — sempre souberam encontrar nessa necessidade [a da existência invariável do objecto no espaço] o lugar onde a contingência pode entrar e tornar-se um motor potente [e, embora sempre abordado de formas muitíssimo heterogéneas e graus de inventividade diferenciados, a maioria desses artistas não deixou de encarar o convite, e possibilidades operantes, como um ponto de charneira nos seus projectos artísticos individuais]. Onde o encontro dos seus trabalhos com esse “armário em madeira também constituído por duas portas em vidro, três prateleiras e duas gavetas com puxadores em latão” possa igualmente ser um encontro entre materialidades distintas, contaminações e reverberações mútuas. Lugar de acontecimentos espontâneos e inesperados, tanto para quem são seus agentes iniciais, como para nós, visitantes.  

É precisamente na intersecção de todas estas linhas de força e campos tensionais — com uma postura especialmente sensível e inteligente —, que a mais recente intervenção n’O Armário se produz. Spleen, de Lea Managil, apropria-se do objecto armário de forma cirúrgica, fazendo da totalidade do seu interior uma espécie de grande aquário onde um dispositivo mecânico acciona o movimento de circulação infinita da água nele depositada.

 

O que vemos ali aparecer é então a possível recriação, ou evocação, de uma janela num dia de chuva, cujo barulho ouvimos mesmo antes de entrar na sala na qual esta se encontra e onde, uma vez no seu interior, sentimos uma necessidade de abrandamento, de um qualquer recolhimento perante aquela “janela” que pede ao nosso corpo atenção, cativados que ficamos pela condensação que vai surgindo, pelo som que constantemente escutamos, pelo bater da água na superfície transparente dos vidros e nas linhas tortuosas que vai formando ao escorrer… Contudo, a sensação que nos atravessa e que poderíamos num primeiro momento tomar como confortável [quem não sente um reconfortante prazer por ver através dos vidros a chuva lá fora, num dia de inverno?], não deixa de se revestir por uma aguda inquietação. Frente ao armário, num tom quase surrealista ou caricatural, um curioso chapéu-de-chuva invulgarmente longo surge como o elemento que empresta a todo o ambiente uma densidade desestabilizadora, uma certa estranheza [não fosse já suficiente um armário onde chove dentro…] que paradoxalmente nos faz deslocar daquele lugar e entrar num hesitante estado de suspensão. Qual Alice que, ao fim de entradas e saídas sucessivas do espelho, não sabe mais em que lado efectivamente se encontra [de resto, um sentimento em grande parte análogo ao que Diogo Bach, no texto da folha de sala, parece querer evidenciar]. 

Se na produção artística de Lea Managil um determinado interesse pelas capacidades elásticas dos objectos, contrariando ontologias fechadas e acentuando uma certa vivência própria, ou performatividade reverberante das matérias, tem estado sempre latente nas suas obras, assim como uma especial exploração das ressonâncias engendradas por diferentes objectualidades sónicas [lembremo-nos da bomba de ar que respira na individual Breathable Objects, no Las Palmas, ou do dedo de silicone que arranha um microfone na colectiva Homework na Galeria Madragoa), em Spleen, apesar dessas apetências não deixarem de estar presentes em distintos graus, a artista aumenta agora significativamente a atmosfera dramática de todo o aparato, colocando-nos activamente no seu centro e procurando trabalhar especulativamente uma outra matéria — as [nossas] emoções. Ou melhor, procurando evidenciar as repercussões potenciais entre planos concretos — actuais: os objectos e seus efeitos nas materialidades — e planos de intensidade subjectiva — invisíveis, virtuais, circunstancialmente aleatórios, individuantes.  

No que a mim me toca, nesse cruzamento vibrátil que ali nasceu, seria um esforço demasiado complexo, ou mesmo impossível, tentar aferir de que forma o meu corpo e os meus pensamentos actuaram decisivamente nos objectos com os quais me encontrei. No entanto, o exacto contrário não deixa de ser passível de aproximação, mesmo que apenas — e para o que aqui se pretende — nos domínios da representação.  É, na verdade, justamente aí — nesse confronto entre uma exterioridade absoluta e uma interioridade que a recebe e percepciona, entre real e simbólico, no fundo — que me parece que toda esta exposição se joga. Pois Spleen não está tão próxima de um estado de vulgar melancolia ou tristeza amena, mais depressiva ou mesmo contraditoriamente prazerosa, que comumente fizemos colar a esta palavra e que a janela chuvosa poderia indiciar, do que está efectivamente próxima do sentido que Baudelaire [o grande divulgador do termo] quis fazer transmitir: o sentimento de uma catástrofe permanente. Talvez esteja aí aquela estranheza inicial que sentimos: o estremecimento face a uma manifesta insondabilidade do que nos é exterior, do excesso nunca alcançável — ou estabilizável — do real que se encontra em permanente tumulto e na vertigem de nos tomar consigo. Se a consciência Baudelairiana fez por encontrar escapes, ou filtros de contenção, para essa experiência — nos quais a arte entraria de forma determinante —, é, no entanto, igualmente constatável que uma protecção total se torna impossível: não deixamos nunca de ser parte integrante da realidade e suas forças agenciadoras. 

A minha visita a’O Armário fez-se a 24 de Fevereiro, dia em que uma guerra se inicia na anacrónica e incoerente velha Europa e cujos efeitos maiores estarão certamente por vir. Entrando na exposição de Lea Managil, já noite caída, foi, na verdade, difícil deixar tudo o que se passava lá fora: tudo entra no grande dispositivo cénico. Perguntei para mim: será que aquele chapéu alguma vez se irá abrir? E, se o fizer, resguardar-nos-á de toda aquela chuva?

 

Lea Managil

O Armário

 

David Revés (1992, Lisboa), curador independente, escritor e investigador. Frequenta actualmente o Mestrado em Ciências da Comunicação - Culturas Contemporâneas e Novas Tecnologias (FCSH – UNL), onde prepara uma dissertação sobre as relações seminais entre a arte e a morte. Mestre em Estudos Artísticos - Teoria e Crítica de Arte e Curadoria (FBAUP). Enquanto curador desenvolveu vários projectos expositivos, tais como “um corpo, um rio”, mostra colectiva na Galeria Liminare, Lisboa; Rodrigo Gomes “Whispering Mirrors”, Carpintarias de São Lázaro, Lisboa, entre outras. Foi curador e programador na Galeria Painel, Porto, PT (2016-2018), curador residente na Fundação DIDAC, Santiago de Compostela, ES (2019) e integrou a equipa curatorial do CINENOVA - Festival Interuniversitário de Cinema. Desenvolve regularmente uma actividade crítica e ensaística com a qual colabora para revistas especializadas, livros de artista, edições académicas, seminários, etc.

 

DR escreve de acordo com a antiga ortografia e adopta a linguagem neutra e inclusiva. 

 

IMG_0285
IMG_0264-Edit
IMG_0251-Edit
IMG_0286
IMG_0267

Lea Managil: Spleen. Vistas gerais da exposição n'O Armário. Fotos: Samuel Duarte. Cortesia d' O Armário.

 

Voltar ao topo