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Joana da Conceição: Humanta

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David Silva Revés

 

No anexo A do nº128 da Calçada da Estrela, em Lisboa, acontece, desde 2020, o projecto Quéréla, fundado e programado por Ana Cristina Cachola, igualmente responsável pela curadoria dos momentos artísticos que aí têm sucedido. Em estreita colaboração e proximidade com O Armário [espaço expositivo dirigido por Benedita Pestana, com o qual praticamente partilha paredes e sintoniza programação], a Quéréla assume-se como uma plataforma que toma “o Feminismo Interseccional enquanto prática, metodologia e temática” — pode ler-se nos seus materiais de comunicação —, “articulando as pesquisas de Donna J. Haraway e Sara Ahmed sobre o conceito de «trouble» (querela) e a oralidade da palavra duplamente acentuada: Quéréla é também o que ela quer”.

É justamente dentro destas preocupações posturais, campos de fricção representacional e urgências contemporâneas que a Quéréla tem desenvolvido uma linha programática exclusivamente composta por artistas mulheres, não só com maior evidência no panorama artístico lisboeta e português, como igualmente provenientes de zonas onde uma certa lateralidade ou invisibilidade sistémica ainda operam. Pelo espaço que ocupa — e na sua ainda curta cronologia — passaram já Gisela Casimiro, Joana Fervença, Diana Policarpo e Odete [as duas últimas trabalhando em dupla], fazendo com que a Quéréla se ofereça, em cada apresentação, tanto como um lugar onde um experimentalismo material, dispositivo e estético se permita adensar [em relação às práticas mais recorrentes das artistas convidadas], assim como se constitua enquanto motor propositivo de construção e pensamento do político.  

Com Humanta, Joana da Conceição é agora a artista que intervém no espaço da Quéréla, nesta que se edifica, que habitamos e nos habita como uma verdadeira exposição.

Melhor dizendo, uma ex(fora)-posição: a impossibilidade de que um qualquer plano fechado sobre si próprio se constitua e que em Humanta não só compreende um fora-de-si, mas, acima de tudo, um movimento para-fora-de-si. Para fora do suporte, para fora do medium, para fora das imagens, das formas e da linguagem, para fora da História. Para fora de uma subjectividade racionalista que, naquele lugar, constantemente se sente desestabilizada e dissolvida. Em Humanta não existe qualquer posição fixa, qualquer identidade ou imagem representacional imóvel, qualquer ontologia essencialista que possamos enquadrar dentro de grelhas de significação normalizadas. Muito pelo contrário: o conjunto das presenças — a nossa incluída — navegam permanentemente por territórios de continuidade e indiscernimento, mas também de raspagem, contaminação e conflito.

E tudo começa, desde logo, pelo título, um neologismo composto pela sonoridade das palavras “humano” e “planta”, que nos propõe não só uma hibridização especulativa entre duas realidades distintas — uma qualquer transubstanciação que ali se imagine enquanto composição simbiótica futura —, mas, sobretudo, a afirmação sensível de uma zona reverberante, potente e livre, entre dois modos de relação e engendramento de mundo. Como que reconhecendo intimamente, com o corpo e os símbolos, o que da planta existe no humano e que vestígios de humanidade se poderão encontrar na planta, Joana da Conceição procura evidenciar uma radicalidade comum, desvelando uma espécie de destino imemorial partilhado que canaliza e expande não só a matéria e as formas, como também o pensamento. 

Por paradoxal que pareça, em Humanta sentimo-nos como se dentro de um casulo larvar tivéssemos entrado. Há ali qualquer coisa que mexe, que mexe connosco e nos quer integrar na sua pulsão transformativa. Neste espaço-outro, estranho e familiar, sentimos uma certa suspensão, e, ao mesmo tempo, algo que nos puxa constantemente em direcção ao chão e em direcção a si. Do fundo negro das paredes vão surgindo as pinturas — ecrãs que avançam sobre o espaço e se projectam sobre nós, insinuando a sua presença, assim como a entrada num movimento de vibrações multidireccionais. O som que se ouve tudo toma e tudo cose, criando uma certa temperatura, uma atmosfera englobante, sideral e ao mesmo tempo telúrica.  

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Se na produção de Joana da Conceição a prática pictural e a prática musical sempre se mostraram paralelas [lembremos o projecto experimental Tropa Macaca que desenvolve desde 2005 com André Abel, ou ainda o colectivo multimedial Toda Matéria, fundado com Sara Graça e Maria Reis em 2018], em Humanta imagens e sons tornam-se praticamente indistintos, evidenciando uma capacidade transdutiva entre diferentes terrenos materiais, técnicos e produtivos. É, pois, por entre sibilações permanentes, harmonias e ritmos ora mais cadenciados ora tendencialmente caóticos — numa espécie de respiração que dissipa expectativas quanto ao ver e ao ouvir e que os insere num plano de horizontalidade constituinte — que entramos naquelas pinturas: líquidas, sedimentares, alquímicas, metamórficas. O trânsito constante entre forma e não-forma, entre contenção e libertação, que ouvimos na música é o mesmo que vemos nas pinturas. Ângulos impossibilitados, geometrias contrariadas, volutas sobrepostas a meandros reminiscentes da arquitectura clássica, colunas erigidas por elementos tanto abstractos como projectivamente vegetalistas, ondulações orgânicas nas quais se dissolvem formas que quase poderíamos considerar antropomórficas. Se algumas dessas pinturas evocam, ainda, uma referencialidade à pintura mural [e, especificamente, uma delas se vê confundida com o fundo de parede onde larga resquícios e manchas], elas são, por isso também, a superfície por onde toda a História passou, convocando uma qualidade transgeracional, atravessada por diversas temporalidades, cujo início é remoto e cujo fim está ainda por vislumbrar. 

Ainda assim, em tudo isso, não é só um esforço contínuo de diluição de fronteiras entre orgânico e não-orgânico, entre filtros simbólicos e as forças livres do real, entre nomos e phuysis, portanto, o que aqui se procura alcançar. É, sim, de modo mais intenso e singular, a revelação material [e experiencial], de que tudo — as estruturas da História, as produções da natureza, o que é humano e o que é não-humano, o vivo e não vivo, todos os corpos, entes, coisas e matérias — circulam num fluxo contínuo de criação e contingência, tanto actual como virtual, que tudo contém e tudo anima.

Lembro-me, neste momento, do brilhante texto de Boris Groys “Entering the Flow [1]”, onde este fala da consciência aguda de certos artistas [referindo-se especialmente a Malevich] de entenderem que todo o seu trabalho é invariavelmente parte integrante e cumulativa de um ininterrupto curso de nascência, destruição, renovação e transformação. Joana da Conceição partilha dessa consciência, não só planetária, mas sim cosmológica. A performatividade gestual e inquestionavelmente intuitiva das suas obras — que revela igualmente o seu próprio corpo movente e produtivo — insere-se também aí. 

E se, de modo a dirigir-se ao humano — que nós somos, que ela é enquanto artista e que toda a arte indissoluvelmente confirma —, Joana da Conceição introduz o pensamento da planta — capaz, desde origens remotas, de criar o seu mundo, reordenando-o, e de se moldar e imiscuir de forma total, coincidente, nele, numa “intimidade absoluta entre sujeito, matéria e imaginação” [2], como refere Emanuele Coccia —, ela fá-lo para que em Humanta possamos entrar nessa linha fluxível onde a vida se apresenta toda ela múltipla e inteira, equivalente, recapitulativa. Sem remissão para qualquer indivíduo particular, temporalidade precisa ou espaço concreto. Esse continuum incessante onde somos chamados a reconhecer-nos, nesta ex-posição, embora saibamos já que dele nunca propriamente poderemos sair.

 

 

Joana da Conceição

 

Quéréla

 

 

 

 

David Revés (1992, Lisboa), curador independente, escritor e investigador. Frequenta actualmente o Mestrado em Ciências da Comunicação - Culturas Contemporâneas e Novas Tecnologias (FCSH – UNL), onde prepara uma dissertação sobre as relações seminais entre a arte e a morte. Mestre em Estudos Artísticos - Teoria e Crítica de Arte e Curadoria (FBAUP). Enquanto curador desenvolveu vários projectos expositivos, tais como “um corpo, um rio”, mostra colectiva na Galeria Liminare, Lisboa; Rodrigo Gomes “Whispering Mirrors”, Carpintarias de São Lázaro, Lisboa, entre outras. Foi curador e programador na Galeria Painel, Porto, PT (2016-2018), curador residente na Fundação DIDAC, Santiago de Compostela, ES (2019) e integrou a equipa curatorial do CINENOVA - Festival Interuniversitário de Cinema. Desenvolve regularmente uma actividade crítica e ensaística com a qual colabora para revistas especializadas, livros de artista, edições académicas, seminários, etc.

 

DR escreve de acordo com a antiga ortografia e adopta a linguagem neutra e inclusiva. 

 

 

 

 

Joana da Conceição: HumantaVistas gerais da exposição na Quéréla. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista e da Quéréla.

 

 

 

 

 

Notas:


 

 

[1]Boris Groys, “Entering the Flow” in Realism Materialism Art, Sternberg Press, 2015. 

[2]Emanuele Coccia, A Vida das Plantas — Uma Metafísica da Mistura, Documenta, Lisboa, 2019. 

 

 

 

 

 

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