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Luísa Jacinto: Véu-Pedra 

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Miguel Mesquita

 

Uma das características que sempre me seduziu no trabalho de Luísa Jacinto é a sua capacidade de desenvolver uma dimensão temporal nas imagens das pinturas que produz. Não que as imagens em si contenham, necessariamente, elementos que pressupõem uma passagem do tempo ou uma continuidade temporal (ainda que por vezes induzam a uma cristalização ou suspensão do tempo), mas porque se situam algures no decorrer de uma acção; são imagens que sugerem um passado ao mesmo tempo que nos conservam num estado de antecipação. Em 2018, contudo, quando apresenta a exposição Podemos sempre fugir de carro, comissariada por Sérgio Fazenda Rodrigues na Fundação Portuguesa das Comunicações, Jacinto inicia um corpo de trabalho que acrescenta a esta dimensão temporal uma qualidade espacial.

Tal como a temporalidade que as imagens revelam não se refere a uma questão de figuração, também a espacialidade não se restringe à representação de espaço, à criação de planos que sugerem um percurso, que enquadram um panorama ou que marcam massas e vazios. O que realmente se destaca nestas pinturas é a eminência de se participar nesses espaços; uma intenção do corpo, sugerida pela visão, expressa numa vertigem motivada pelos negros, pelos contrastes e texturas ou numa vontade de transposição insinuada nas transparências e escalas dos planos.

A exposição que Jacinto apresenta no espaço da ARTWORKS, em Lisboa, é, contudo, o somatório de um conjunto de experiências espaciais que extravasam da imagem pictórica para a própria composição no espaço. As pinturas assomam suspensas, projectando-se umas sobre as outras, desdobrando-se as suas camadas através da justaposição; portais que se estendem e se complementam de uma para a outra, organizando uma espécie de cenário que é fortemente apoiado numa visão quase atmosférica. Fundamental para a validação desta condição é a presença de uma pintura em tecido, criada com várias camadas de sprays mas inteiramente translúcida, que ocupa quase a totalidade da largura da sala mas que absorve os elementos que caracterizam a arquitectura, como janelas e portas, assemelhando-se a uma névoa colorida, mas que na realidade constitui um véu através do qual se filtra o olhar, condicionando formas e cores à sua presença, submetendo tudo à sua leveza. Véu-Pedra é o título da exposição.

A ressurgência de imagens de tecidos da estatuária clássica ou até, numa referência mais directa, os bustos velados de Giovanni Batista Lombardi, Rafaello Monti ou Giovanni Strazza, não pode ser menos do que espectável quando somos confrontados com a combinação de palavras que origina o título. Utilizados como método de provação de perícia técnica, o trabalho de tecidos esvoaçantes e finos na estatuária era um desafio à sensibilidade do artista, mas também uma forma de criar momentos de imersão através de uma suposta transparência que aproximava o objecto à realidade iludindo o observador a reconhecer-se na mesma condição da obra.

As pinturas apresentadas nesta exposição, além de também revelarem uma notória manifestação de habilidade, partilham dessa capacidade de estabelecer uma condição comum entre o espaço presente nas imagens e o espaço que envolve o observador.

Mas, acima de tudo, são obras que partem de um domínio da matéria de forma a estabelecer uma autoridade da imagem sobre as forças dos materiais. É que as obras que Luísa Jacinto apresenta em Véu-Pedra resultam do trabalho desenvolvido durante as residências artísticas No Entulho, promovidas pela ARTWORKS, — um exemplo raro em Portugal da ligação entre a indústria e a produção artística, e do papel do sector privado no mecenato cultural — e AiR 351, em Cascais, onde dá continuidade à investigação dos processos e aperfeiçoa as técnicas que aplica neste conjunto de obras. Estas pinturas, cuja fragilidade e leveza é reforçada pela sua levitação no espaço, são realizadas em chapas de alumínio, inicialmente amolgadas e pintadas com spray, seguidamente desamolgadas à mão e com maquinaria, quinadas para ganharem corpo e, por fim, mais tarde trabalhadas no ateliê com óleos, pigmentos e vernizes.

Assim, apesar de tudo, o suporte condiciona a pintura, ou antes, contribui para o aparecimento da imagem; no mínimo, é convivente. As chapas conservam moças, riscos, depósitos de óleo e vincos e a pintura responde às irregularidades e aceita as marcas do que lhe foi infligido. O mesmo processo acontece na pintura em tecido. Amarrotado, pintado e restituído à sua forma para depois receber nova acção, a pintura responde ao seu suporte e aparece quebrada, lembrando um feixe de luz que, passado por um cristal, se fragmenta em múltiplos espectros de cores. Por outro lado, este efeito é conseguido através de uma substituição da ideia de superfície pelo de objecto no tratamento destas pinturas que, entendidas na sua totalidade, são sempre trabalhadas no plano frontal e tardoz. No tecido, cada lado resulta numa bivalência de tonalidades cromáticas, em que num dos lados existe uma predominância de azuis, e por isso uma temperatura mais fria, e no outro um domínio de tons quentes como vermelhos e laranjas. No entanto, os dois lados participam na construção da imagem revertendo-se apenas a hierarquia dos pigmentos na transição entre os lados do tecido. Por sua vez, este frente e verso, encontra nas pinturas sobre as chapas de alumínio uma relação dualística, já que o verso da pintura não tem intervenções além das camadas de spray que foram deixadas antes das chapas terem sido endireitadas e passadas pela calandra. Essa disparidade entre plano frontal e tardoz, determina uma alteração do entendimento do processo de manipulação das chapas que, associado à utilização de pigmentos iridescentes, evoca um espírito quase alquímico que unifica esta perspectiva e une as chapas metálicas à imagem translúcida do tecido, constituindo uma única paisagem.

Assim, estamos nas presença de duas vistas; uma de portais consecutivos entre os quais caminhamos como que entre um labirinto de paisagens, outra de um espaço etéreo que nos envolve. No final, um gesto em uma das obras repõe o pragmatismo neste estado inebriante. Um rectângulo imaculadamente branco aparece no centro de uma das pinturas. Retoma o desígnio de pintar, do lugar da pintura, do plano de inscrição da imagem. Relembra-nos que apesar de tudo cada uma destas obras é uma pintura mas que, no entanto, todas elas se apresentam para o observador como uma única.

Luísa Jacinto

Artworks

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Miguel Mesquita é licenciado e Mestre em Arquitectura pelo Departamento de Arquitectura da FCT da Universidade de Coimbra e Mestre em Estudos Curatoriais pelo Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. Em 2013 integrou o Centro de Estudos Sociais como Jovem Investigador em projectos interdisciplinares com foco nas áreas de arquitectura, sociologia e arte. Entre 2014 e 2015 estagiou no Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves. Foi Director Artístico da galeria BAGINSKI, entre 2015 e 2018. 

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Luísa Jacinto: Véu-Pedra. Vistas gerais da exposição na Artworks, Lisboa. Fotos: Bruno Lança. Cortesia de Artworks. 

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