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Perfil: Gonçalo Sena

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Maria Kruglyak

Perscrutando conotações da matéria, códigos sociais e a impermanência de objetos ou intervenções realizados por seres humanos, a prática artística de Gonçalo Sena possui um magnetismo que se nos revela tão terreno quanto conceptual. Em conversa, o artista mostra a generosidade e a gentileza de discurso que se desdobram nas suas peças; e ver a sua obra artística produz um efeito idêntico ao de o ouvir a descrever a sua prática: o rigor dos gestos que nela se procuram e a diversidade de pontos de vista que aí se acolhem. Toda a sua obra se faz iluminar por uma poética filosófica e uma sensibilidade ao contexto, que, por sua vez, se fundam numa receptividade à impermanência de todas as coisas e numa investigação artística de diferentes temporalidades.

Encontrei-me com Gonçalo Sena numa ruela sossegada da Penha de França. Tinha visitado a exposição Língua de areia, na Galeria Filomena Soares, no mesmo dia, pelo que não foi difícil identificar o artista: alto, com uma postura afável, segura de si, e uma tote bag atirada sobre o ombro — só podia ser ele. Começámos a conversar, e rapidamente percebi que muito do seu pensamento está intimamente ligado à noção de amizade, afinidade e ligação profunda. Faz todo o sentido, portanto, que tendencialmente convide amigos artistas a participar em diálogo com as suas obras, através de performances, instalações sonoras ou textos poéticos, e que também faça parte, acompanhado pelo artista Nuno da Luz, do projeto editorial ATLAS, sobretudo focado na publicação de livros de artista e no desenvolvimento de outras colaborações editoriais experimentais.

Também foi por esta via da afinidade com amigos artistas que, em 2007, Sena começou a expor o seu trabalho, transportando as suas investigações escultóricas, então uma prática periférica à sua atividade enquanto designer gráfico, para o espaço público. A bem dizer, o contexto expositivo acaba por permitir que as suas obras alcancem o seu potencial, atentando na forma como as instalações escultóricas encaminham o espectador numa sequência de movimentos cuidadosamente coreografados pelo espaço da exposição. Este carácter arquitetónico posiciona a obra de Sena num contexto alargado da escultura no campo expandido,[1] assim trazendo a experiência corporal da exposição para o primeiro plano. É aqui que o entendimento espacial que o artista deriva da sua prática de design gráfico mais se evidencia: momentos depois de começarmos a falar de Língua de areia, Gonçalo Sena pega numa caneta para desenhar o plano coreográfico e os vários pontos de vista (incluindo uma perspetiva aérea) da planta expositiva.

Com um traçado ágil, o artista explica-me como a composição espacial está projetada para encaminhar o espectador num determinado percurso, usando o desenho para descrever a sensação de fisicalidade que a exposição suscita. Começando por entrar no espaço num ângulo algo enviesado para contornar Coluna Passagem (2024), contendo esta peça uma sugestão de instabilidade ocasionada pela inclinação da estrutura e pelas folhas de cana soltas no chão, o espectador é então levado num movimento de fluxo oval em torno da fonte angular que constitui a peça central da exposição. Este movimento intensifica-se pelo som da água que corre da fonte; apenas os três bancos de cimento com assentos em tons pastel que ladeiam a estrutura proporcionam momentos de pausa ao visitante. Dentro do reservatório de água, baixo e negro, encontram-se três fontes-esculturas: duas de aparência orgânica, mas de carácter angular tanto na forma como na matéria (cimento, resina, areia, bronze e folhas secas); e uma cadeira de plástico usada, código social de relaxamento, onde está pousada uma escultura de cimento. As primeiras duas estruturas, Lágrimas de vento e Língua de areia, respiram água através de um sistema de tubos e bombas de água, ao passo que a última, Rocha Rouca (sol sol nuvens sol nuvens vento chuva vento chuva), é estática, encontrando-se à parte das restantes sem, no entanto, deixar de beber da mesma envolvente, como se de um observador alienígena se tratasse.

Entrando na segunda sala, aquele movimento oval inesperado ganha vagar na rítmica dos desenhos de parede, que forçam o visitante a parar no meio do espaço. Posicionados a cerca de um passo uns dos outros, estes esboços são austeros e lineares, sugerindo uma rítmica que se contrapõe ao afluxo ininterrupto da água nas fontes-esculturas da sala anterior. "STEP   STEP   STEP   STEP   STEP", como Vanja Smiljanić, artista amiga de Sena, escreve na poética folha de sala da exposição, onde explora vogais, actantes, miragens, o ato de se sentar, materiais e geometria, conjugando descrições mais formais com poesias experimentais, vocalizações e ações.

A segunda sala, como tal, espelha a primeira, gerando uma nova perspetiva sobre as questões formais da fonte enquanto peça central. Como não raras vezes se verifica nas esculturas de campo expandido, a exposição funciona como um palco onde o espectador é o principal agente, e onde cada ponto de vista perspetivado esconde preciosidades sob a forma de imagens imprevistas da encenação. Por exemplo, quando o visitante está sentado no banco amarelo, a fonte vertical encobre parcialmente o outro banco, e a água parece fluir diretamente do interior da escultura, ficando a bomba oculta. Smiljanić sugere uma outra descrição do segmento da fonte: "Ação 1: três actantes partilham uma poça escura. (à espera) / Possivelmente operam em diferentes dimensões temporais." E esta temporalidade, inerente aos fluxos de água na infindável passagem do tempo que implicam — de tendência opressiva na primeira sala e delicadamente esvanecentes na segunda —, tem uma função central na obra de Gonçalo Sena.

Será interessante, então, analisar Chuva Suor, a próxima exposição de Sena, a inaugurar na Estufa Fria, que integra intervenções escultóricas num dos lagos da estufa, uma contribuição da artista sonora Raw Forest e um texto do curador Bernardo José de Souza. Esta mostra funda-se numa interação com a Estufa Fria a partir da sua condição enquanto espaço simultaneamente orgânico e artificial, considerando que se trata de uma estufa que veio substituir uma antiga pedreira; e será com certeza curioso ver como esta obra zelosamente coreografada se apresentará nas águas públicas e semi-acessíveis do espaço, ainda mais por prometer explorar a harmoniosa conjugação de materiais naturais e artificiais, tão própria da prática de Gonçalo Sena, num novo contexto, assim revelando as suas respetivas temporalidades.

 

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Em Língua de areia, esta combinação entre o artificial (cimento, resina, bronze, fita adesiva, plástico preto) e o natural (água, folhas, bambu, rochas) é alimentada pela própria forma das esculturas, que, no seu conjunto, geram uma sensação de impermanência. Parece que as esculturas vão começar a mexer-se, ou que pelo menos podem mexer-se, sem por isso, no entanto, se tratarem de seres animados. O título, no mesmo sentido, remete para um carácter temporal (as línguas de areia surgem quando a maré está baixa e desaparecem quando esta sobe). Os termos que integram a expressão são igualmente reveladores: língua, o músculo motriz da comunicação, e areia, que invariavelmente se nos escapa por entre os dedos. Na verdade, a impermanência das obras de Gonçalo Sena associa-se sobretudo a objetos que por norma julgamos serem permanentes: de alguma forma, as esculturas, de grande dimensão, em cimento, transmitem uma sensação de fragilidade e efemeridade, ao passo que os elementos naturais de que também são constituídas, como canas e folhas, a que habitualmente associamos uma qualidade efémera, parecem destinados a perdurar no tempo. Já noutras exposições o artista explora este conceito através da utilização de cartazes. Para Língua de areia, Gonçalo Sena desenvolveu uma série de 40 impressões serigráficas: 20 numeradas e disponíveis na galeria, e outras 20 que foram coladas nas ruas da cidade de Lisboa, na esperança de que, com o tempo, virão a desaparecer pela ação do vento, da chuva e das pessoas.

A andar pela exposição, dei por mim a olhar repetida e involuntariamente por cima do ombro para ver se as esculturas se tinham mexido (ao que parece, as duas fontes-esculturas vibram com a água, e por isso mudaram ligeiramente de sítio desde a inauguração da exposição).[2] Noutra peça da sua autoria apresentada na exposição Erosão Horizonte, na Quadrado Azul, em Lisboa, em 2019, que integrava rochas provenientes da costa atlântica espalhadas pelo espaço, Gonçalo Sena levou esta ideia de movimento coreografado ainda mais longe, tendo então pedido aos funcionários da galeria para mudar as pedras de sítio dia sim, dia não — umas, apenas uns poucos centímetros; outras, quase meio metro. Para qualquer visitante pontual, este movimento seria imperceptível; ainda assim, de facto, a composição expositiva variava de dia para dia: mais uma vez, uma temporalidade que se nos escapa aos sentidos. Este movimento e esta impermanência, tanto na vertente coreográfica de Erosão Horizonte como na tendência formal da fragilidade que se descobre nas fontes-esculturas de Língua de areia, configura uma poética fulcral para a prática de Gonçalo Sena: uma temporalidade existencialista que remete para um universo muito particular do inquietante.

Aquela impermanência sai igualmente reforçada pelo constante recurso à miragem da repetição. Mal aponto a sensação transmitida pelos ângulos e pelo lettering de Língua de areia, Gonçalo Sena concorda com entusiasmo, desenhando uma perspetiva aérea do espaço: dois elementos em forma de L, dois semicírculos, dois X, dois retângulos e linhas entrecortadas em jeito de código Morse. Trata-se de um falso déjà-vu, como lhe chama o artista, que revela a sua preocupação com a repetição através de diversas modalidades. Até as duas salas de Língua de areia são espelhos de um mesmo sentimento, explorando a mesma questão formal de maneiras opostas: uma em movimento, a outra estática; uma esculpida, a outra desenhada; mas ambas angulares, com o espectador a criar o movimento, circular e orgânico. Será outro exemplo a presença dos bancos de cimento sem título: com assentos de cimento pigmentado em tons pastel quentes, são, no entanto, frios ao toque, grandes, angulares, pesados, servindo como lugares de descanso. Ao mesmo tempo, as duas cadeiras de plástico, de formas curvas, confortáveis, deterioradas pelo sol e pela chuva, assumem uma forma escultórica: uma posicionada no interior da estrutura da fonte, e outra na segunda sala, com um osso de choco em bronze pousado no assento, assim removendo a funcionalidade do objeto.

Na obra de Sena, com efeito, a noção de contraposição configura uma circunstância não de contraste mas sim de acrescento harmonioso — da mesma forma que a paisagem urbana do litoral que define o meio em que o artista cresceu[3] concilia elementos naturais (como areia, folhas, rochas e vegetação) com materiais da vida urbana (como cimento, tinta em spray, plástico e metal), numa conjugação que se revê na própria obra de Gonçalo Sena.[4] Estes elementos semibiográficos aparecem tangencialmente no seu corpo de trabalho: o comprimento dos bancos de cimento é igual à altura do artista, e as suas esculturas têm tendencialmente a altura que Sena consegue alcançar. Esta autorreferencialidade, de certa forma, não é propriamente relevante em si; no entanto, cria um ritmo orgânico que confere ao conjunto de elementos de diferentes exposições uma particular consonância, da mesma forma que, na prática do design, um bom sistema de grelha permite que os objetos se organizem harmoniosamente sobre a mancha gráfica.

Estes pormenores são complementados pela insistência do artista sobre a impermanência dos objetos, não obstante a perceção corriqueira da durabilidade do material, como no caso do cimento. Esta insistência temporal manifesta-se numa outra peça semibiográfica que se reitera sob várias modalidades nas suas exposições: a mochila. Oriunda de um período em que Gonçalo Sena viajava recorrentemente entre Lisboa e Berlim, numa circunstância que lhe gerava particular frustração, a mochila vermelho-alaranjada com uma pirâmide de cimento com pigmento a espreitar do seu interior, como se de um objeto alienígena se tratasse, apareceu pela primeira vez na Syntax, em Lisboa, em 2015, e mais recentemente na montra de um bar de Lavapiés, em Madrid. Sem surpresa, até agora, já foram apresentadas duas mochilas — uma azul e outra vermelho-alaranjada —, que apareceram em várias exposições, como se alguém as tivesse perdido, ou se tivesse esquecido delas. Cada uma, com a sua respetiva escultura, explora diferentes tipos de sentimentos, integrando-se na tendência do artista de usar “elementos extra” do seu atelier para completar as suas coreografias expositivas. No entanto, Gonçalo Sena continua a ver estas mochilas como meros objetos; “poderia perfeitamente voltar a usá-las, sem problema algum”, diz-me o artista.[5]

Muitas das esculturas de Gonçalo Sena reaparecem em várias exposições, assim revelando a particular consciência da noção de impermanência que atravessar toda a sua prática: as suas peças acabam por gerar um vocabulário que vive em permanente mutação pelo viajar constante no espaço e no tempo e assume significados variáveis consoante o seu posicionamento em novas sintaxes. As obras de Língua de areia que já foram apresentadas anteriormente são quase irreconhecíveis em comparação com a documentação existente; o seu sentido encontra-se não na particularidade das suas formas mas na sua relação composicional com o espaço e o espectador, assim adquirindo a especificidade espacial das suas exposições. Talvez isto também explique a perspetiva do artista sobre a ideia de exposição: uma “suspensão no tempo” da prática do artista, âncoras temporais de peças que, não raras vezes, abordam questões relacionadas com as noções de impermanência e temporalidade. Como Gonçalo Sena me diz, as peças “transformam-se pela forma como existem, pela forma como se entregam ao público”.[6]

Para compreender a prática artística de Sena e o magnetismo das suas peças, é preciso olhar para esta impermanência enquanto filosofia existencialista, enquanto consciência particular que se implica na sua obra através da sua linguagem visual. Se, ao invés de lhe associarmos um sentido de permanência, compreendermos a poética de um dado material através da forma como se apresenta — isto é, considerando a possibilidade de se partir, de se alterar, de se erodir —, podemos então atribuir-lhe um sentido de temporalidade na sua essência formal, assim albergando vários tempos em simultâneo. Ao invés de ver as suas obras como preciosidades, Sena abraça a temporalidade que se lhes associa — enquanto objetos feitos por seres humanos para serem usados por seres humanos — para navegar por diferentes cronologias. Quando se transportam de uma exposição, suspensa no tempo, para outra, a essência comunicativa que os caracteriza também se torna temporal e impermanente.

Relativamente à investigação que Sena desenvolve em torno desta impermanência material e desta temporalidade da forma no contexto expositivo, temos o fantástico exemplo de sem título (Canal Caveira), de 2015. Desta peça, suspensa sobre uma janela aberta, faz parte um saco de plástico com água pendurado a uma estrutura de cimento de forma triangular alongada que, visto de frente, parece um traço grosso desenhado no espaço. O saco de plástico com água é usado em vários países com climas mais quentes, incluindo Portugal, como forma de afastar moscas — uma circunstância na qual se implica um código social, possivelmente ilegível para quem venha do Norte da Europa, mas facilmente reconhecível para os habitantes do Mediterrâneo.[7] Estando colocada junto à janela aberta, à partida, convidaria o visitante a olhar lá para fora, não fosse a evidente tensão sugerida pela água no saco, bem como o desenho da composição, na qual todos os elementos, baloiçando ao vento, parecem estar prestes a rebentar ou cair.

Com Língua de areia, Sena congrega toda esta diversidade de investigações numa exposição cuja dimensão e alcance revelam o entendimento do tempo, do espaço e da forma que a sua linguagem visual inaugura. Esta poética filosófica desenvolve-se através da interação entre as diferentes modalidades e temporalidades que têm sustentado a sua prática ao longo da última década — e tenho a certeza de que esta tendência mais ainda se intensificará em Chuva Suor, com inauguração prevista para 22 de maio de 2024.

 

 

Gonçalo Sena

 

Galeria Filomena Soares

 

Maria Kruglyak é investigadora, crítica e escritora especializada em arte e cultura contemporânea. É editora-chefe e fundadora de Culturala, uma revista de arte e teoria cultural em rede que experimenta uma linguagem direta e accessível para a arte contemporânea. É mestre em História da Arte pela SOAS, Universidade de Londres, onde se focou na arte contemporânea do Leste e Sudeste Asiático. Completou um estágio curatorial e editorial no MAAT em 2022. Atualmente trabalha como redatora freelancer de arte

 

Tradução do EN por Diogo Montenegro. Revista pela editora.

 


Todas as imagens de cima: Gonçalo Sena, Língua de areia. Vistas da exposição na Galeria Filomena Soares, Lisboa, 2024. Fotos: João Neves. Cortesia do artista e Galeria Filomena Soares.



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Notas:

 

[1] Rosalind Krauss, “Sculpture in the Expanded Field”, October 8 (1979): 30–44.

 

[2] Conversa com Gonçalo Sena, 16 de março de 2024.

 

[3] Num bairro residencial composto por prédios de habitação em placa de cimento com quatro andares, perto de espaços verdes e descampados, entre a serra de Sintra e a costa de Cascais. Conversa com Gonçalo Sena, 16 de março de 2024.

 

[4] Nas fontes de Sena, encontramos também uma estética DIY na utilização da fita adesiva e do plástico preto, que parece remeter para uma certa estética urbana típica da cidade de Berlim, onde o artista passou grande parte da última década. Conversa com Gonçalo Sena, 16 de março de 2024.

 

[5] Conversa com Gonçalo Sena, 21 de março de 2024.

 

[6] Ibidem.

 

[7] Ibidem.

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