João Maria Gusmão: Animal Farm
Contos visuais procuram a revolução
Mesmo antes de subirmos ao primeiro piso da Galeria Zé dos Bois, onde se encontra a primeira parte da exposição Animal Farm, o nosso pensamento já se encontra povoado pela história homónima de George Orwell, publicada em 1945,[1] após sucessivas tentativas do autor em publicar a sua “história de fadas”, como se lê no subtítulo “A Fairy Story”. Será precisamente este subtítulo que nos dará uma preciosa e possível (será sempre uma entre muitas) ideia (em detrimento de leitura ou interpretação, porque gostaríamos de manter acordados o pensamento e a imaginação) sobre a exposição individual de João Maria Gusmão, distanciando-nos, contudo, da interpretação deste subtítulo pelo curador da exposição, Marco Bene, que prefere assinalar a preferência de Orwell por “A Fairy Story” em detrimento de “A Fairy Tale”, relevando, assim, a dicotomia que, inevitavelmente, se gera entre história e conto de fadas, para colocar a obra de João Maria Gusmão entre a noção de história enquanto “processo de aprender ou conhecer por inquirição” (Marco Bene, in folha de sala) e a ideia de encantar sugerida pelo francês antigo de faerie, “utilizado para descrever o encantamento e a terra dos seres encantados” (id., ibid.), situando ambas as representações — o livro e a exposição — entre o histórico e o mítico. Ou como dirá igualmente: “algures entre o descritivo e o fantástico; entre o registo e o faux raccord; num espaço liminar afim, parecido ou proporcionalmente semelhante a (sim, metade); entre a história e o conto, a fábula, a alegoria, a sátira, etc.” (id., ibid.).
Esta interpretação irá, em certa medida, percorrer outras sugestões dadas pelo curador na extensiva folha de sala, nomeadamente, na constante subversão, que assistimos na obra de João Maria Gusmão,[2] na apropriação da técnica — a construção de imagens-movimento recorrendo a processos analógicos — justamente a partir dos intervalos ou espaços vazios que a técnica carrega em si, não só o intervalo do tempo que cria a ilusão do movimento (e que pode variar), mas também aquele invisível da manipulação dos instrumentos (das lentes, da fita, que é colocada ao contrário, entre outros “truques”, que a montagem, a edição e a projecção, depois, materializam), como ainda essoutro da fabulação dos símbolos, que qualquer ficção permite.
Na realidade, estes dois lados da fabricação de imagens-movimento — que podemos definir, genericamente, seguindo a sugestão do curador, o da technē e o da poiēsis, admitindo a priori que esta última está contida na primeira seguindo a sua raiz grega — são inseparáveis, pelo que resistimos a pensar numa qualquer representação histórica na obra de João Maria Gusmão, mesmo que tentados a olhar para esta exposição, composta por imagens-movimento (ou filmes), com a excepção de duas obras — a fotografia Branca de Neve, que funciona como um preâmbulo, no hall do edifício da galeria Zé dos Bois, e um ready-made antropológico (talvez a única insinuação histórica?), colocado na passagem entre os dois pisos, nos quais a exposição se divide (ou unifica), de um projector Eiki, sem fita, emitindo apenas luz e som sobre um receptor —, como uma história encantada, não do medium do cinema, mas da história da arte, que o artista cita em várias das suas obras, submetendo as referências aos mesmos efeitos da fabricação de imagens-movimento, de Muybridge, Murnau, Magritte a pintores e decoradores anónimos, que, paralelamente à narrativa “histórica”, cultivam uma estética do banal, que, nesta exposição, desde Landscape with boat and river, The wondrous pumpkin farm a Bedrooms, é transformada, pelas lentes mágicas, em poesia visual, subvertendo categorias e criando curto-circuitos entre a representação e o (que é) representado.
Regressando ao livro de Orwell, este, segundo Paul Kirschner, um dos autores mais atentos que sobre ele se debruçou, possui um duplo carácter presente nas próprias intenções de Orwell: artístico e político. Se este último tem proporcionado distintas apropriações, inclusive, nefastas com fins propagandistas (tanto da esquerda como da direita políticas) ou pessimistas (que eliminam a eficácia ou a necessidade de existirem revoluções), ambas contra a intenção do próprio Orwell,[3] é o primeiro que, ao inscrever-se na tradição literária das fábulas e dos contos de fadas, nutre as ambiguidades presentes no livro (assim como as apropriações paradoxais do carácter político) e o constante fascínio por Animal Farm. Para Kirschner, é tempo (tanto há 20 anos, data do seu ensaio, como hoje — acrescentamos) de se reafirmar a natureza literária de Animal Farm como uma “contra paródia literária na luta perene pelo poder de encantar”, em que Orwell “fundiu propósito artístico e político para expulsar um Porco Inteiro [subentenda-se: “o totalitarismo”] do jardim florido da literatura infantil do século XX”.[4]
Esta ideia surge-nos com especial força ao visitar a exposição de João Maria Gusmão, em que os vários filmes apresentados se assemelham a contra paródias cinematográficas na luta perene pelo poder de encantar, na qual o próprio meio técnico se inscreve. Tanto a técnica, como a forma (resultante, necessariamente, da experimentação plástica da primeira tão característica de João Maria Gusmão) produzem encantamento, que o artista ainda manipula, exacerba, intensifica, chegando a criar, com algumas obras, hipnose momentânea e, em quase todas, uma desaceleração e confusão das estruturas físicas do corpo e não apenas dos sistemas de percepção, cuja razão de ser se encontra na existência da luz, essa que, nas várias obras, é a primeira matéria plástica (e, especialmente, em Solar Farm, Rooster at dawn, Day for night e Sunflower at dusk, a metáfora material para a subversão equivalente dos sistemas cognitivos e possíveis agentes de uma revolução).
Se pretendemos reafirmar o carácter, eminentemente, poético das várias obras da exposição Animal Farm, não obstante a inseparabilidade que encontramos entre a experimentação associada à técnica e a expressão estética correlata, tal como no livro de Orwell, encontramos, igualmente, um carácter político. A via pelos processos analógicos é, cada vez mais, um processo de resistência, mas também de alteridade e, na obra específica de João Maria Gusmão, de coalescência de múltiplas formas de subjectividade, ou melhor, de relacionamento com tudo o que nos rodeia, desde objectos a animais a outros seres vivos e até alguns mortos. A obra de João Maria Gusmão opõe-se, claramente, a uma ideia cinematográfica de redução do mundo a algo que possa ser representado directamente através dos meios técnicos, utilizando a realidade como um rastilho, accionado, sem dúvida, pela experimentação, pela inversão, pela subversão, próprias do processo artístico, para questionar não apenas a representação do mundo, mas sobretudo as estruturas que apoiam o nosso conhecimento e, no limiar, a nossa relação com aquele. Nesta, incluem-se as várias questões que as obras abordam, da domesticação da natureza à acumulação de excedentes, aos vícios dos sistemas de extracção-produção-consumo, à mercantilização da estética, aos sonhos artificiosos da propriedade privada. Todas elas permeadas, ainda, por uma ideia de cultura e contra-cultura, assim como por uma ideia de animal e o que este representa para o ser humano ou o que este último é (ou poderia ser) para o animal, pressentindo-se, em vários momentos, a pressão do sistema capitalista nos ecossistemas e a emergência de uma ecologia material e técnica. E, contudo, não há oposições, nem dicotomias. Estamos sempre perante inversões — entre o dia e a noite, outrora reguladores da natureza —, subversões — entre representação e re-representação, entre representação e representado, entre fabricação e manipulação, entre projecção e fragmentação, entre tempo e as suas infinitas metamorfoses —, ambiguidades, nas quais se efectua, precisamente, a fusão entre o carácter artístico e o político das diferentes obras. E a revolução? É sem dúvida uma revolução do meio analógico pela sua capacidade infinita de encantar, de fabricar ou revelar (trazer à luz) vários mundos e manifestações da vida.
No fim, uma curiosa nota na folha de sala agrega as diferentes obras. Filmadas, essencialmente, na Europa Central, numa Áustria onde coalescem todas estas visões encantadas, onde o Sol artificial da lente se ergue e, se for necessário, nunca se põe para alimentar porcos, herdeiros dessoutros fantasmas cujo regresso à terra (começando por essa mesma terra) se pressente cada vez mais e mais violentamente, dizem-nos que a arte necessita, mais do que nunca, de expulsar um Porco inteiro do seu jardim florido: All them swines — título da última obra, uma obra-palimpsesto que torna visível a violência que o estado americano, através da CIA, quis obliterar na adaptação cinematográfica de Animal Farm por John Halas e Joy Batchelor, datada de 1954, e que, na obra de João Maria Gusmão, é resgatada do arquivo e denunciada a partir de uma projecção múltipla que evidencia a crueldade na história da humanidade, qual espelho da animalidade.
Susana Ventura (Coimbra, 1978) é arquitecta de formação (darq-FCTUC, 2003), contudo prefere dedicar-se à investigação, à escrita e à curadoria, cruzando Arquitectura, Arte e Filosofia. Doutorou-se em Filosofia, na especialidade de Estética, sob orientação científica de José Gil (FCSH-UNL, 2013) e é, actualmente, Investigadora Contratada no Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (CEAU-FAUP). Foi Professora Auxiliar Convidada nas Universidades Nova de Lisboa, Minho e Évora. Foi curadora, entre outras exposições, de “Utopia/Distopia” (com Pedro Gadanho e João Laia, MAAT, 2017), “A Casa da Democracia: entre Espaço e Poder” (Casa da Arquitectura, 2018), “Corpo radial” (exposição de Mariana Caló e Francisco Queimadela, Galerias Municipais, Lisboa, 2020) e “The Tale” (exposição de Tiago Baptista, Rialto 6, Lisboa, 2022). Em 2014, recebeu o Prémio Fernando Távora (9.ª edição) e, no mesmo ano, integrou a representação oficial portuguesa na Bienal de Arquitectura de Veneza. Desde 2020, é autora do programa de rádio “Aforismos Espaciais” para a Rádio Antecâmara, dedicado às intersecções entre arquitectura, literatura, artes visuais, poesia e cinema.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.
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Crítica à exposição Animal Farm em Nova Iorque por Rômulo Moraes
João Maria Gusmão, Animal Farm, Vistas da exposição na Galeria Zé dos Bois: ZDB, Lisboa, 2024. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e ZDB.
Notas:
[1] O título original do livro de George Orwell é Animal Farm: A Fairy Story, publicado, pela primeira vez, a 17 de Agosto de 1945, pela editora londrina Secker and Warburg.
[2] Esta já existia na sua obra conjunta com Pedro Paiva, embora assistamos, nesta exposição, a algumas experimentações técnicas distintas que se manifestam esteticamente na obra, como por exemplo, a coalescência de três projecções em que cada uma difunde uma das componentes do sistema RGB, produzindo uma imagem psicadélica inebriante com a justaposição de imagens.
[3] Ver Paul Kirschner, “The Dual Purpose of Animal Farm”, The Review of English Studies, New Series, Vol. 55, No. 222 (Nov., 2004), pp. 759-786 (http://www.jstor.org/stable/3661599).
[4] Id. Ibid., 786.