Re-stor(y)ing Oceania: entrevista a Taloi Havini
Apresentando obras das autoras indígenas do Pacífico, Latai Taumoepeau e Elisapeta Hinemoa Heta, a exposição Re-stor(y)ing Oceania acolhe a oralidade, o canto, a genealogia, a performance e o conhecimento empírico como veículos fundamentais. Explora de que maneira podem práticas rituais e espaços comunitários reconectar-nos com um sentido mais profundo de custódia.
Margarida Mendes [MM]: Taloi, podes falar sobre de que forma esta intenção influenciou a curadoria da exposição?
Taloi Havini [TH]: Através da perspetiva de duas mulheres indígenas da Oceania, Latai Taumoepeau e Elisapeta Hinemoa Heta, pude restabelecer a ligação com os nossos sentidos indígenas de custódia. Admiro-as pelo conhecimento e respeito que cada uma tem pela Oceania e pelas suas conexões profundas com os sistemas de crença ancestrais, e como isso se traduz na preservação da vida marinha para as gerações futuras. A intenção era reunir muitas mais vozes do Pacífico, e de certa forma isso foi conseguido no espaço online, através do programa da Ocean Uni que teve por título Culturing the Deep Sea. Durante a programação de Abril, realizámos um evento de dois dias com leituras, reflexões e palestras, para partilhar o conhecimento e as cosmovisões dos povos indígenas da Oceania. O texto selecionado para leitura foi Indigenous Pacific Islander Eco-Literatures, editado por Kathy Jetñil-Kijiner, Leora Kava e Craig Santos Perez.
MM: A exposição abre espaços performativos, discursivos e poéticos que entrelaçam perspectivas oceânicas anti-coloniais, através de partilhas cosmológicas do Pacífico. A sua premissa deriva do método ancestral de "chamada e resposta", que esteve também na origem da tua exposição anterior no Ocean Space, onde apresentaste a instalação "Answer to the call". Podes contar-nos como surgiu esta vontade de tecer respostas às questões oceânicas?
TH: Ser proprietária de terras e ser da Oceania traz consigo a enorme responsabilidade de cuidar e preservar o nosso ambiente da melhor forma possível para as gerações futuras. As perspectivas oceânicas variam, na medida em que somos linguisticamente diversos ao longo de toda a região "Pacífica". As culturas que investem nas suas próprias relações com a natureza sagrada e com as massas de água não as prejudicarão, pelo contrário, cuidarão delas como cuidariam da sua própria família. A Oceania proporcionou aos meus ancestrais uma rede vasta e aberta de autoestradas interligadas, este conhecimento foi transmitido através de canções, cânticos e práticas orais. A chamada e resposta exige uma forma de escuta profunda, que incorpora o conhecimento íntimo de um lugar — desde a compreensão das mudanças nas estações ao estudo dos céus noturnos que nos guiaram pelas águas extensas desde tempos imemoriais e que continuam a ensinar-nos, hoje, na sociedade contemporânea, orientando-nos através da viagem pelo espaço-tempo.
MM: A instalação de Latai Taumoepeau Deep Communion sung in minor (ArchipelaGO, THIS IS NOT A DRILL) presta homenagem à antiga prática cerimonial tonganesa Me’etu’upaki, através de uma performance duracional que ocorre num anfiteatro, composta por som e máquinas de remo verticais ativadas por diferentes comunidades locais. É também um gesto poético de resistênciacontra a mineração no mar profundo. Como é que os gestos anti-extrativistas moldaram a tua prática e a de Latai?
TH: Latai Taumoepeau centra a sua prática nas filosofias tonganesas de vā relacional (espaço e tempo). O que mais a preocupa são as ameaças à vida resultantes da mineração em mar profundo, e, por isso, ao longo do seu trabalho ela tem tornado visível o impacto da crise climática no Pacífico, como resposta à urgência de ações ambientais para salvar a Oceania. O seu trabalho reflete sobre a mineração em mar profundo, que é o tipo mais recente e alarmante de extração, atualmente a ser explorada por multinacionais e políticos que colocam uma imensa pressão económica sobre o povo do seu país natal, o Reino de Tonga. Este tipo de extração causará danos irreversíveis à vida marinha e terá consequências ainda mais amplas. A prática deste mal vai contra os seus compromissos culturais ancestrais de manter viva a cosmogonia dos seus antepassados — mantendo o Kele sagrado (sedimento marinho) e o Limu (alga marinha) intactos.
De frente para o altar no Ocean Space, ela montou um anfiteatro como referência ao culto congregacional. Taumoepeau convidou o público a participar numa performance duracional para a sua obra comissionada intitulada Deep Communion sung in minor (ArchipelaGO, THIS IS NOT A DRILL), em que grupos operavam as máquinas de remo verticais, amplificando assim o Me’etu’upaki, um cântico cerimonial do seu povo. Meses antes, ela passou tempo na sua ilha de Tonga, comungando e gravando as muitas práticas espirituais e ritualísticas através das performances duracionais faiva (centradas no corpo) do seu povo. A mensagem subjacente é que o trabalho em equipa contribui para a resistência à mineração em mar profundo. Taumoepeau pergunta: quem está disposto a fazer o trabalho neste exercício de responsabilidade ecológica?
MM: A instalação arquitetónica de Elisapeta Hinemoa Heta, The Body of Wainuiātea, convoca um espaço onde as histórias de mulheres indígenas podem ser partilhadas, numa busca por equilíbrio nas relações com o mundo humano e o ambiente. As dimensões narrativa e de criação de lugares estabelecem aqui uma intersecção fundamental. Podes partilhar algumas ideias sobre a intenção da artista?
TH: A linhagem ancestral de Elisapeta Heta inclui Ngātiwai, Ngāpuhi, Waikato Tainui, Samoa e Toquelau. Os seus parentes são o seu maior suporte, e ela colabora com a sua família e comunidade, tornando visíveis as histórias Maori e Pasifika, muitas delas ocultadas pela colonização. The Body of Wainuiātea é uma bela instalação estrutural que incorpora ritual e cerimónia ao restituir um sentido de tapu (sacralidade) à Oceania. Da mesma forma que o povo de Veneza costumava entrar em San Lorenzo em busca de orientação espiritual através de rituais religiosos, aqui a intenção de Elisapeta para o Ocean Space (uma organização de arte contemporânea dedicada à literacia oceânica) foi a de convidar e recordar o público de que esta transformação da experiência humana é ainda mais relevante hoje em dia.
A instalação é composta por uma karanga (chamamento espiritual das mulheres Maori), cabaças, fragrância sensual de óleo de coco, madeira, tijolos, têxteis e aço inoxidável. Tijolos de terra prensada são dispostos de uma forma que remete para os antigos locais cerimoniais de homenagem aos atua (deuses). Simboliza um lugar para o silêncio e a reflexão, e, quando ativado, instaura respeito pela Ātea (cosmologia polinésia). A componente ritualística consiste em dezasseis assentos de madeira carbonizada dispostos em círculo para representar os pontos cardeais. Estes assentos encontram-se sobre uma plataforma de tijolos de terra prensada, semi-fechada, bastante grande e baixa. Para muitos habitantes das ilhas do Pacífico, formações de pedra e rocha simbolizam locais sagrados e continuam a representar uma profunda conexão espiritual para os habitantes de toda a Oceania. Acima estão doze dobras de tecido ondulantes que homenageiam Ranginui/Rangi/Lagi e os doze níveis dos céus. Uma karanga (chamamento espiritual das mulheres Maori), guiada pelos conceitos Māori de kawa e tikanga de Aotearoa, Nova Zelândia, é amplificada diariamente na exposição: de manhã (11h) quando a exposição abre, e à tarde quando a exposição fecha (18h).
MM: O ativismo poético emerge como uma poderosa ferramenta operacional na defesa de pontos de vista indígenas, reunindo praticantes de toda a região do Pacífico. Podes partilhar de que maneira é que isso tem influenciado tanto a tua prática, como as de Latai e Elisapeta?
TH: Re-stor(y)ing Oceania gerou muitas trocas ao longo da exposição, especialmente nos programas de abertura em Março. Latai e eu estávamos em Veneza a instalar, enquanto Elisapeta estava na sua casa, porque tinha acabado de dar à luz um lindo bebé. O seu colaborador, o estimado Dr. Albert Refiti, participou em seu lugar. Estávamos todos muito gratos por ter a sua presença a guiar-nos num ritual tradicional. A cerimónia de Kava envolveu participantes do público de Veneza, que se sentaram no alofisā, ou círculo de chefes, onde a kava é preparada e servida na tanoa (uma taça de madeira esculpida) por uma pessoa ritual chamada tou’a ou taupou. Um orador, que é um especialista ritual, anuncia e reconhece aqueles que se reúnem, incluindo a terra e os antepassados do local onde a cerimónia tem lugar. Em seguida, é servida uma taça a cada participante no círculo, convidando-o a dedicar a sua porção a uma divindade, antepassado ou lugar de culto antes de beber a kava. O ritual designa os que se sentam no círculo como canais para que antepassados e outros seres participem em eventos no presente — o passado profundo e o presente misturam-se na cerimónia.
Em homenagem à antiga prática cerimonial do ritual Me’etu’upaki, a irmã de Latai, Mulher-de-Canções e Oradora Oceânica, Sēini ‘SistaNative’ Taumoepeau, juntou-se a nós numa invocação em busca de orientação para o cuidado e proteção coletivos de Moana (Oceania). Sēini SistaNative desperta as vozes do sedimento do mar profundo. Infelizmente, ela faleceu depois de voltar de Veneza. A última performance da minha irmã insular coincidiu com a abertura de Re-stor(y)ing Oceania na Bienal de Veneza, intitulada LOTU: kumi Hina. Ela colaborou com Saia Tu’itahi, que tocou Fangu Fangu (uma flauta nasal tonganesa). Eles criaram uma Cerimónia Musical: Uma Arte de Ativação Socioespacial em reverência à Deusa Tonga Hea Moana ‘Uli’uli, cujo reino são as partes mais profundas e escuras do nosso Grande Oceano. As nossas correntes conectam-nos — Luz na Escuridão misteriosa — onde nenhum humano vai. LOTU é uma oração de apelo à ação, entoada para kumi HINA, a luz divina magnética branca da Lua Māhina, com a sua força de atração, repulsa e contra-correntes nas profundezas do Oceano, onde vivem criaturas bioluminescentes.
Margarida Mendes é curadora e investigadora. A sua pesquisa — com enfoque no cruzamento das humanidades ambientais, filme experimental e artes sonoras — explora as transformações dinâmicas do ambiente e o seu impacto nas estruturas sociais e no campo da produção cultural. Integrou a equipa curatorial da 11th Gwangju Biennale "The 8th Climate (What Does Art Do?)", 4th Istanbul Design Biennial "A School of Schools", e 11th Liverpool Biennale "The Stomach and the Port". É consultora de ONGs ambientais que trabalham sobre a mineração no mar profundo e dirigiu também diversas plataformas educacionais, como escuelita, uma escola informal do Centro de Arte Dos de Mayo - CA2M, Madrid (2017); O espaço de projectos The Barber Shop em Lisboa dedicado à pesquisa transdisciplinar (2009-16); e a plataforma de pesquisa curatorial sobre ecologia The World In Which We Occur/Matter in Flux (2014-18). Margarida Mendes é doutoranda no Centre for Research Architecture, Visual Cultures Department, Goldsmiths University of London.
Tradução do EN por Gonçalo Gama Pinto, revista pela autora.
Nota: **Hina também aparece como um grande tubarão branco das profundezas do Oceano ou como uma mulher insular costeira e feminina divina do recife.
Latai Taumoepeau, “Deep Communion sung in minor (ArchipelaGO, THIS IS NOT A DRILL)”, 2024. Exhibition view of “Re-Stor(y)ing Oceania”, Ocean Space, Venice. Co-commissioned by TBA21–Academy and Artspace, and produced in partnership with OGR Torino. Photo: Giacomo Cosua
Elisapeta Hinemoa Heta, “The Body of Wainuiātea”, 2024. Exhibition view of “Re-Stor(y)ing Oceania”, Ocean Space, Venice. Co-commissioned by TBA21–Academy and Artspace, and produced in partnership with OGR Torino. Photo: Giacomo Cosua
1-2-3: Latai Taumoepeau, “THIS IS NOT A DRILL”, 2024. Durational performance part of the exhibition “Re-Stor(y)ing Oceania”, Ocean Space, Venice. Co-commissioned by TBA21–Academy and Artspace, and produced in partnership with OGR Torino. Photo: Nicolò Miana
4-5: Elisapeta Hinemoa Heta, “The Body of Wainuiātea”, 2024. Cerimonial performance part of the exhibition “Re-Stor(y)ing Oceania”, Ocean Space, Venice. Co-commissioned by TBA21–Academy and Artspace, and produced in partnership with OGR Torino. Photo: Nicolò Miana