Guarda-Livros
Pedro Neves Marques:
Morrer na América
A articulação entre a escrita e as artes visuais continua a ser um campo de trabalho muito fértil. Existem muitas variantes da relação entre a linguagem verbal e linguagem visual, mas a verdade é que, no contexto das artes visuais, já há muito se deixou de respeitar os limites disciplinares que separaram o pensamento das ferramentas que, nas devidas esferas de inscrição, são usadas para todo o tipo de mediações. Na literatura tout court não será tão fácil encontrar quem tão facilmente se aventure no reino do visual, sob pena de, ao sair da torre de marfim das belles lettres, sucumbir ao deslumbramento lowbrow do gráfico, mas isso é outra história.
Pedro Neves Marques é um desses artistas audazes que na sua prática inclui a escrita, sob múltiplas formas, como espaço de desenvolvimento do seu campo discursivo e interrogativo. Este livro, que agora publica, é um dos exemplos dessa correspondência, neste caso sob a forma de um conjunto de cinco contos - reunidos sob o título Morrer na América, - escritos durante a sua estadia nos Estados Unidos da América entre 2013 e 2016.
Ao contrário do que é comum em literatura, os contos são escritos em vários registos que apontam um autor que não está à procura de definir uma forma, ou de se definir pelas características estilísticas de uma configuração de escrita. Apesar disso, podemos dizer que a escrita de Pedro Neves Marques anda entre a comoção juvenil e enternecedora de J.D. Salinger (especialmente no conto O limite das boas intenções com a afetuosa relação dos dois irmãos Theo e Tucker e sua mãe), a neurose rítmica das micro-narrativas urbanas de Tao Lin, a ostentação tardo-capitalista de Ballard ou o desvario corporativo de algum Chuck Pallaniuk, a permanente condição de alteridade e exílio de Yuko Tawada, ou uma excêntrica dupla circunstância, simultaneamente distópica e utópica de Svetlana Boym. Contudo, não será exatamente esta categorização que interessa a Pedro Neves Marques, mas antes uma articulação com os temas que percorrem regularmente a sua prática artística – a condição socio-política do mundo ainda num rescaldo mal resolvido da guerra fria, o ambiente e as crises (financeira, petrolífera e moral) e, acima de tudo, o medo instalado pelas narrativas políticas, as relações humanas, maquinais e computacionais, o presente e o futuro, a gestão de informação para a formação de opinião pública e a militarização das atividades humanas. Podemos dizer que em termos literários o que Neves Marques escreve se enquadra na gaveta da ficção especulativa (Spec-fic), em alguns momentos de fantasia histórica, e nos ramos mais verosímeis da ficção científica militar (military SF).
Esta coletânea, é portanto, uma forma de estender no terreno da ficção literária, um conjunto de questões que o trabalho artístico recente de Neves Marques levanta, a partir da terrível hipótese da ameaça, seja ela qual for - “Se a ameaça é imaginária é preciso tratá-la como tal. A ameaça não é imaginária. Mas é preciso tratá-la como se fosse. É essa a questão.” diz-nos, a certa altura, um dos personagens.”.
Os cinco contos publicados têm momentos de cruzamento temático e não será loucura afirmar que a maior figura a emergir do circuito narrativo que Neves Marques forja é o designer George Nelson. Nelson parece ser invocado em vários dos contos, desde as descrições do fabrico de armamento de design caseiro, em Liberator, passando pelas caracterizações da utilização de armamento verídico em - A militarização dos pobres. Tudo nos cinco contos pode ser entendido à luz de uma performatividade da violência e da morte, no presente e no futuro.
Dizia Nelson que“Os designers dão forma às coisas mais importantes para a sociedade e para as quais a sociedade aloca o maior orçamento, porque os designers fazem sempre apenas aquilo para o que são pagos”. Este podia ser o leitmotif do livro, pois em quase todos os contos parece irromper o “design for killing”como a provável grande força do século passado e, provavelmente, do futuro próximo.
De bombas caseiras a armamento high-tech produzido em impressoras 3D por novos intervenientes corporativos, até à abundância massificada de armamento tradicional, passando pela arregimentação das ferramentas de visualização como a televisão e a publicidade no conto O Urso, ou as questões levantadas por uma muito próxima e problemática relação entre as tecnologias de visualização e uma anémona em Deepstaria e o Drone; tudo parece convergir para a ideia que J.G. Ballard lançou na introdução do seu Myths of the Near Future e que Neves Marques parece adoptar como premissa para pensar o presente:
“(…) lembro-me de quando as pessoas em todo o mundo estavam intensamente interessadas no futuro e convencidas de que isso mudaria suas vidas para melhor. Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, o futuro era o ar que todos respiravam. Olhando para trás, podemos ver que o modelo do mundo que habitamos hoje estava a ser delineado - a televisão e a sociedade de consumo, computadores, viagens a jato e as mais recentes drogas maravilha, transformaram as nossas vidas e deram-nos um poderoso sentido do que o século XX poderia fazer por nós assim que nos libertássemos da guerra e da depressão económica. De muitas maneiras, todos nos tornamos Americanos”.
Céline Condorelli: bau bau
Céline Condorelli, artista londrina, que tem exposto com muita visibilidade e relevância em Portugal (exposição individual na Kunsthalle Lissabon, em 2016, e actualmente na exposição Curar e Reparar da anozero - Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra) foi foco de uma exposição individual, em 2015, no Hangar Bicocca, a partir da qual foi publicada esta monografia pela editora Mousse já em 2017. Dessa revisão foi publicado este trabalho muito completo que nos guia pela múltipla obra da autora.
O livro divide-se em três partes: um primeiro conjunto de abordagens textuais à obra de Condorelli, escritos por três autores, uma entrevista realizada por uma curadora, imagens do projeto produzido para a exposição e, ainda, uma secção na qual se inventaria a obra da artista entre 1998 e 2016.
A introdução de Marco Tronchetti Provera, diretor da empresa Pirelli, é uma formalidade institucional e sublinha a vontade da artista trabalhar com a indústria no desenvolvimento deste projeto. Conta-se então com Barking on Display por Andrea Lissoni (curador da exposição), How Things Appear: Céline Condorelli’s Counter-display pelo escritor e curador italiano Marco Scotini, a conversa com a curadora Maria Lind e, ainda, Altering Existing Conditions por Nick Aikens.
Na visão do curador da mostra, Andrea Lissoni, a obra de Condorelli, em especial esta abordagem a obras anteriormente existentes no contexto de uma exposição para a qual foram também produzidas novas peças reverberantes de uma conjuntura socioeconómica específica, evidencia o interesse da autora em trabalhar num campo híbrido, no qual os elementos que compõem a mostra são, nas palavras do autor, “resíduos de intensidade e interação”.
Marco Scotini faz uma incursão pelas noções de dispositivo expositivo, espaço de exposição, modo de produção, estrutura de suporte e público, conceitos operativos normalmente associados ao trabalho e discurso crítico de Condorelli. O conjunto de obras e redes de afinidades cruciais no percurso da autora e que propiciam uma porta de entrada à forma como esta abordou o território fabril e ideológico que funda a enredada teia de conversações que o seu trabalho possibilita.
Na sua conversa com Maria Lind exploram-se as formas pelas quais a artista desenvolve questões como a encenação, a experiência do espaço expositivo, social e político, o movimento como morfologia ontológica do trabalho e do contexto de trabalho, a teatralidade dos objetos e a relação destes com o espaço expositivo e a arquitetura, a obra de Frederick Kiesler, as temporalidades do dia e as suas divisões metafóricas, as lógicas do trabalho e da propriedade e as infraestruturas do poder simbólico, comercial e político, as relações entre a arte e a indústria, o papel do artista na sociedade, a matéria prima processada como ponte entre o trabalho industrial e o trabalho artístico, a articulação do trabalho da artista com a obra de alguns dos seus pares, o trabalho do artista e as relações de possibilidade e responsabilidade da ação artística e expositiva. Uma conversa que é profícua em apontar direções mas que acaba por adquirir mais o formato de entrevista que de diálogo.
Em Altering Existing Conditions, Nick Aikens explora duas modalidades estruturais presentes na prática de Céline Condorelli (e que na realidade se desdobram em tantas outras) que são: as estruturas existentes (existing conditions) que servem de motor à prática da artista e à forma como se relaciona com a realidade contextual. Neste caso Aikens explicita mesmo o bloco de peças de título Alterations to Existing Conditions, e a rede de relações interpessoais que propiciam as trocas simbólicas que alimentam uma estrutura discursiva e a formação de conteúdo muito próprias à autora e a um conjunto de amigos que recorrentemente vem invocando para o seu trabalho através de dedicatórias, colaborações e outro tipo de diálogos.
Hugo Canoilas:
Debaixo do Vulcão (Vol. I e II)
Debaixo do Vulcão é uma publicação em dois volumes que é parte integrante da exposição, com o mesmo nome, que Canoilas desenvolveu para o Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado sob o carimbo dos Sonae Art Cycles.
Ao primeiro volume, previamente lançado ainda durante a exposição e que servia de guia para a instalação de vídeo e som que era o epicentro do projeto expositivo, juntou-se agora um segundo, que dá corpo a um conjunto de trabalhos teóricos que nos guiam desta vez pelo universo discursivo do artista, da obra exposta e de toda a teia de eventos que a susteve.
Os dois livros têm à partida uma característica proeminente: um formato retangular muito pronunciado e de orientação vertical, que remete para o longo corredor, no qual existia um teto pintado, e que o visitante devia percorrer para alcançar o centro da exposição. Também podemos conceber que esse retângulo emule o aspeto panorâmico/paisagístico que a sua pintura Endless killing apresentava (e que é um dos elementos fulcrais no qual assenta uma das ações filmadas para a instalação). Podemos ainda relacionar este formato inusitado com o formato 16:9 do suporte vídeo que foi usado para registar os cinco canais de vídeo da instalação. Ao abrir o livro percebemos que o seu formato é mesmo o do filmes porque é precisamente esse o conteúdo do primeiro livro: um guião, com imagens do filme e o texto de Debaixo do Vulcão.
Podemos percorrê-lo de duas formas (engenhosamente articuladas pelos designers vivóeusebio), primeiro pelos videogramas dispostos na horizontal, em página inteira, que nos obrigam a folhear o livro num sentido não muito ortodoxo; depois voltamos à sua verticalidade, porque pelo meio das páginas com imagens, são-nos dadas as falas dos diálogos entre os vários personagens que integram o elenco dos filmes da instalação: Cônsul, Ivone, Narradora, Jefe, Mexicano I e Mexicano II.
É curiosa a dupla leitura que este livro favorece, pois se durante a exposição este podia ser utilizado como um guia, agora, pode ser lido como uma fotonovela que apenas nos permite utilizar as imagens como um indício visual da narrativa sugerida pelos textos, resultando porventura noutra peça.
O segundo livro tem outro propósito – é um repositório visual de alguns dos momentos e situações que compuseram as várias partes do projeto; um registo do calendário de ações que acompanharam a totalidade do mesmo (e aqui importa salientar uma ideia sugerida pelo próprio artista numa dessas sessões, onde notava que o maior input de um museu seria a disponibilização, não só de espaço para exibir o trabalho de um artista, mas de tempo para desenvolver momentos de pensamento acerca de, e sobre o mesmo) e, ainda, um conjunto de textos muito fecundos acerca do trabalho de autor em geral, e deste projeto em particular, redigidos por Mohamad Salemy, Vincenzo Estremo e Emília Tavares.
O texto de Salemy propõe, através de uma redefinição personalizada do conceito de arte e dos processos ontológicos que a suportam, uma viagem através da obra de Hugo Canoilas, dos processos transformativos que opera no seu âmago, e uma avaliação da operatividade de determinados modelos de trabalho decifráveis na destruição da peça Endless killing que, ao permitirem uma reapreciação do lugar da pintura na obra de Canoilas, posicionam a mesma num nexo de causalidades, conversas e agências com o mundo contemporâneo.
O texto de Vincenzo Estremo, por sua vez, discorre acerca da complexa ligação entre as várias partes da instalação e a intrincada posição que cada um dos elementos convocados por Hugo Canoilas - da literatura ao cinema, da vida pessoal ao universo artístico - permitem representar, acerca da dúvida e incerteza na qual a obra nos obriga a entrar sem hipótese de saída.
Por fim, Emília Tavares propõe uma leitura dos aspetos político-sociais que compreendem a obra de Canoilas, perante alguns aspetos dos modos de relacionalidade que decorrem da sua prática, fundamentais para perceber a intenção geral da mesma ao operar simultaneamente no tecido social e na estrutura institucional.
Esta publicação revela ainda um esforço muito interessante, ao articular elementos que normalmente são difíceis de enquadrar no âmbito de uma publicação normalizada (catálogo) de uma exposição, propondo uma listagem das atividades paralelas, que aconteceram durante o período da mostra, e, ainda, uma bibliografia que funciona como referência para os textos publicados, bem como para uma hipotética forma de entrada no universo diverso do pensamento e obra de Canoilas.
Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado
Elena Filipovic: Bliz-aard Ball Sale
Quem estudou arte no final do século XX passou certamente os olhos pelo influente livro The Return of the Real (1996) de Hal Foster. Nesse livro, de poucas imagens e muitas ideias, surgia no primeiro capítulo, de título Who’s Afraid of the Neo-Avant-Garde?, o nome - de um tal David Hammons - e uma imagem de uma obra desse artista Bliz-aard Ball Sale, de 1983, que se seguia a uma tirada na qual Hal Foster enunciava uma trajetória evolutiva do objeto artístico durante o século XX:
“Esta elaboração é um trabalho coletivo que atravessa gerações inteiras de artistas da neo-vanguarda: desenvolver paradigmas como o ‘ready-made’ a partir de um objeto que pretende ser transgressivo na sua particular facticidade (tal como na sua primeira neo-repetição), até uma proposição que explora a dimensão enunciativa da obra de arte (como na arte conceptual), a um dispositivo que aborda a serialidade dos objetos e imagens no capitalismo avançado (como na arte minimal e na arte pop), como um marcador de presença física (como na arte ‘site-specific’ da década de 1970), a uma forma de mimetismo crítico de vários discursos (como na arte alegórica dos anos 1980 que misturava imagens míticas da arte erudita e dos ‘mass-media’, e, finalmente, a uma análise das diferenças sexuais, étnicas e sociais hoje (tal como no trabalho de Sherie Levine, David Hammons, e Robert Gober). Desta forma a tão aclamada falência das vanguardas históricas e das neo-vanguardas em destruir a instituição Arte, permitiu a provação desconstrutiva desta instituição pela segunda neo-vanguarda, uma experiência que, de novo é estendida a outras instituições e discursos pela ambiciosa arte do presente.” (página 24-25)
A partir dessa altura, nunca mais deixei de ver referida a obra de David Hammons como uma das mais relevantes, em determinado contexto americano, apesar de raras vezes ter obtido uma experiência da obra do artista que rompesse com a superficialidade com que as revistas de arte e os livros de rápida circulação tratavam (e continuam a tratar) a obra de autores como este, especialmente num contexto artístico tão impregnado de uma certa noção de pinacularidade e influência, e de uma reificação arregimentada da historicidade da arte de “contextos excêntricos”. Percebia-se, pela mesma imagem reimpressa e vista vezes sem conta, tratar-se de uma ação, talvez uma performance, e que esta teria acontecido na rua. Apenas esta informação, que não deixava especular acerca do contexto, nem da figura que aparecia na imagem, e que parecia estar aparentemente a vender de forma precária e ambulante bolas de neve.
Durante anos, nunca mais soube nada sobre esta situação/ação/performance, sobre esta ocorrência difícil de qualificar. Nunca deixou de me acompanhar e emocionar, precisamente por ser uma imagem tão poderosa e evocativa de um mal estar, de uma reação irónica, ao mesmo, e de uma admirável forma de responder ao meio hostil com armas de brincar. Uma miraculosa e precisa economia de meios que desmonta grande parte do edifício discursivo da arte ocidental após os anos 1970 e, porque não, de todo o século XX. Na sua incompletude enigmática, esta era realmente uma obra que colocava questões!
Foram precisas duas décadas para que Elena Filipovic conseguisse, através da coleção One work da Afterall Books, oferecer-nos uma tão lúcida, completa e complexa análise da relevância crítica da obra de Hammons, na reconsideração da herança da arte moderna, e da pertinência de trabalhos como Bliz-aard Ball Sale na ultrapassagem de uma estética normatizada pela teoria e pela prática.
O índice do livro é pragmático e Filipovic começa, no primeiro capítulo intitulado What we know (O que sabemos), por sintetizar os elementos conhecidos da história da ação, fazendo-nos perceber que grande parte desta pertence a um passado não cartografado e que tudo o que poderemos vir a saber terá de ser mediado por agentes individuais que apenas poderão testemunhar uma parte muito singular e personalizada da história deste acontecimento. As imagens que se conhecem e que ilustram este livro são abundantes (mas apenas raramente foram postas em circulação) e o seu autor foi o fotógrafo e amigo do artista Dawoud Bey, que a seu pedido registou o acontecimento. Foram precisos vários anos, e quatro dezenas de entrevistas levadas a cabo por Filipovic, até que o artista percebesse o alcance do interesse da autora, neste trabalho em específico, como forma de abordar a história, ou a hipótese da sua construção, a partir de um paradigma diferente, e aceitasse ser inquirido pela autora.
E é de mudanças paradigmáticas que nos fala o trabalho de Hammons. Em Images e Myth Filipovic guia-nos pelas convulsões silenciosas que o artista tenta provocar nos processos triviais de produção artística ou como a própria coloca:“conhecer a prática de Hammons nos seus próprios termos, que não significa mimetizar as suas posições radicais ou fingir falar na sua ‘voz’, mas em vez disso, desenvolver uma metodologia que encontre as suas ferramentas nas operações da própria obra. Se a evasão for tomada como sendo parte da prática artística (ou mesmo um ‘medium’) em David Hammons, é possível reconhecer que a sua obra tem desde sempre provocado e problematizado a narrativa única dos factos inconversíveis que nos são apresentados pela História. E provavelmente com mais força que qualquer outro dos seus trabalhos, que Bliz-aard Ball Sale incorpora as múltiplas contradições desta relação plena com a certeza histórica.”
Se nesta primeira parte do livro Filipovic tenta explicar a obra a partir dos poucos vestígios, que de forma bastante fragmentada nos chegaram, e que convergem para uma mistificação da figura do autor, por outro lado tenta, nas partes dois e três do livro, tornar legível a ação à luz do corpo de trabalho mais alargado do artista, através da sua contextualização sócio-cultural, do seu posicionamento estratégico nos limiares do mundo da arte e no meio da vida social, como formas de inclusão e exclusão que teriam que ser contabilizadas ao analisar, não apenas uma obra como esta, mas toda uma linhagem de arte dita “afro-americana” ou “euro-étnica” pelas implicações que esta teria (tem) na fundação das ditas vanguardas Ocidentais e no decurso da história da arte recente.
No terceiro capítulo a autora passa da análise concreta da obra Blizz-aard Ball Sale para uma análise heurística da prática artística socialmente comprometida de Hammons, vinculando a sua ação ao ato de rutura promovido pela postura radical das vanguardas, explicando a pertinência meta-artística de tal ação no contexto de uma comunidade sub-representada pela precariedade dos elos identitários que podia (e que não podia) estabelecer com os modelos culturais oficiais. Neste conjunto de sub-capítulos vemo-nos obrigados a enquadrar a obra de Hammons, que tentativamente foge à cooptação pela institucionalização das práticas de crítica institucional, num contexto mais amplo de questionamento das incoerências da influência e da assimilação de modelos criativos e expositivos normalizadores - como o cubo branco o museu, a instituição ou o público do contexto da arte – e a entendê-la como uma evasão sem fim aos processos de modelação social que reverberam nos espaços aparentemente neutros do mundo da arte mas que trabalham para a perfeita engrenagem do poder, da raça, da divisão de classes e das dinâmicas fiduciárias que as patrocinam e que representam a fantasia branca da História.
Com declara Elena Filipovic no final deste seu trabalho exploratório: “Não posso dizer que saiba exatamente o que ‘Bliz-aard Ball Sale’ tenha sido, ou seja. Performance/obra de arte/ exposição/rumor/venda pública/jogo linguístico/sessão fotográfica/espelho apontado a uma sociedade racista: desafia e estende várias categorias de uma só vez, e nenhuma descrição única parece defini-la adequadamente. Entre a ação e o objeto, o ‘ouvi dizer’ e o registo fotográfico, a peça ‘Bliz-aard Ball Sale’ de Hammons levanta necessariamente algumas das mais fundamentais questões acerca da natureza da obra de arte. Interpretar ‘Bilz-aard Ball Sale’ é concluir que esta é em última análise ‘inconhecível’, e nesse sentido, porque recusa terminantemente tornar-se uma mercadoria – uma mercadoria de especulação consumista ou de preservação museal, ou mesmo da compreensão (da história da arte).”
Em resumo, este é o livro que faz justiça a uma obra de arte, ou a uma ideia de obra de arte, tão significativa e pertinente quanto a incapacidade dos sistemas institucionais em assimilarem-na, por ter como função e destino furtar-se ao seu poder devorador.
João Seguro
(1979), vive e trabalha em Lisboa. É artista e professor. Tem mostrado o seu trabalho em exposições, individuais e coletivas, nacionais e internacionais, estando representado em diversas coleções particulares. Lecionou desde 2006 as cadeiras de Estética, Estudos de Arte, Teoria e Crítica da Imagem, Pintura e Seminários de Arte Contemporânea no Instituto Politécnico de Tomar e na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.