Da adversidade vivemos
Conversa com a curadora Marta Mestre sobre a recepção e inscrição da arte da América Latina no contexto Português, mercados de arte, instituições públicas e privadas, curadoria num campo geográfico expandido, no âmbito do seu último projecto expositivo. Potência e adversidade: a arte da América Latina nas colecções em Portugal pode ser visto no Pavilhão Preto e no Pavilhão Branco, em Lisboa, até ao dia 8 de Janeiro.
A exposição Potência e adversidade: a arte da América Latina nas colecções em Portugal, é composta por diversos níveis de pesquisa, articulados a partir de um tema ou contexto inicial relacionado com a arte contemporânea da América Latina e a sua relação com instituições públicas e privadas em Portugal. Queria que falasses do teu projecto, do seu fio condutor e de como, provavelmente, sofreu ajustes ou reviravoltas à medida que ias trabalhando nele.
Iniciámos este projecto há cerca de dois anos, altura em que vários espaços e instituições da cidade estavam a desenhar o que viria ser a programação de Lisboa Passado e Presente Capital Ibero-americana de Cultura. João Mourão (à data, director das Galerias Municipais) fez-me o convite para pensar uma exposição para o Pavilhão Branco e para o Pavilhão Preto, talvez por intuir que eu poderia trazer um duplo olhar, de fora e de dentro, sobre a produção contemporânea da América Latina.
Vivo há sete anos no Brasil e, embora continue a acompanhar de perto o contexto artístico em Portugal, tenho-me interessado cada vez mais pela formação moderna e contemporânea de outras geografias, em especial do Brasil, Argentina, Colômbia e, também, de alguns países de África. Pulsantes e instáveis, a nível político, económico e social, são países muito propositivos no campo artístico, e onde os artistas desenvolvem propostas culturais de grande autonomia face ao cânone ocidental da arte e da história. São contextos, de facto, muito estimulantes e a partir dos quais se pode pensar inclusive a própria arte portuguesa, para além da sua genealogia “europeia” instituída. E esse trabalho ainda está por fazer.
O primeiro impulso da pesquisa foi levantar o maior número de informações sobre colecções em Portugal, institucionais e privadas, que tivessem artistas relevantes da América Latina. O panorama é muito diversificado, e existem colecções com diferentes focos de interesse. Algumas dão grande expressão à América Latina, como é o caso da colecção Teixeira de Freitas que tem vários artistas representados e com várias obras de cada; outras tiveram um grande papel divulgador de artistas seminais destes países, como é o caso da Fundação de Serralves ou a Gulbenkian. Existem ainda algumas colecções que, tendo sido constituídas ao sabor de interesses pessoais, trazem olhares particulares, como é o caso das colecções Treger/ Saint Silvestre (arte bruta) e MMG (publicações de arte).
O segundo impulso, derivado da grande quantidade de material que foi aparecendo, foi estabelecer uma baliza cronológica que pudesse dar alguma legibilidade à curadoria, isto é, afastá-la do risco de falar sobre tudo e não falar sobre nada. Achei que um bom início de conversa é a produção artística dos anos 70, por neles terem despontado questões que hoje voltam a estar acesas. Anos de expressivas rupturas com a herança moderna, geométrica e construtivista, nesta década os artistas reivindicam o fim das estruturas de violação do Estado, e estabelecem conexões entre a produção artística e a formação política e ideológica, em gestos contundentes de crítica às instituições e à própria ideia de objecto de arte. Para além disso, muitas das agendas que hoje se reacendem, em especial no Brasil, como a luta contra a censura, as lutas feministas, os direitos das minorias sexuais, movimento negro ou a crítica institucional, despontaram na passagem para os anos 70 e mantiveram-se por toda a década.
É também neste momento que se reacende o debate sobre a identidade “latino-americana” e são vários os artistas que recusam a inscrição periférica e os clichés culturais associados ao Terceiro Mundo. É o caso de Cildo Meireles quando escreve no catálogo da exposição Information, no MoMa, em 1970 “Não estou aqui nesta exposição para defender uma carreira ou uma nacionalidade....”, e que reproduzimos no catálogo desta exposição.
O facto de se ter partido dos anos 70, onde os artistas reinterpretaram o lugar da obra (a sua presença artística) e o objecto cede a sua relevância à linguagem, também permitiu contornar o risco de reunir trabalhos que reforçam clichés recorrentes, em especial a ideia de que a arte da América Latina é “tropical”, “sensual”, “exuberante”. Não sendo completamente incorrectos, estes clichés são formas de totalização que impedem olhar outros layers importantes, camadas mais críticas.
Como se podem vir a contornar visões hegemónicas da história?
Recentemente tenho vindo a interessar-me pela ideia de “contra-narrativa”, como forma de revisão histórica, que permite ampliar os sentidos críticos da curadoria. Fiz algumas exposições nesse sentido, em particular uma com o artista brasileiro Ricardo Basbaum, na Galeria Jaqueline Martins, em São Paulo. Através da pesquisa fui-me apercebendo com maior clareza das formas de sedimentação e legitimação do meio de arte e, em especial, a volatilidade e arbitrariedade destas dinâmicas. Comecei, assim, a dar atenção à necessidade de realizar “recuos históricos”, de olhar novamente para certos momentos e contextos que estão abundantemente pesquisados e divulgados, mas que são autênticas “caixas pretas”, continuando a fornecer várias pistas. No caso da exposição de Basbaum, houve necessidade de voltar a olhar os anos 80 e para o chavão do “retorno à pintura”, de forma a entender como alguns “discursos hegemónicos” que instituíram esse cânone deixaram de fora artistas-chave. Por não “cumprirem” os protocolos da pintura dos anos 80, acabam por não constituir a “moeda de troca” das operações de mercado, feiras de arte, galerias e instituições. No caso de Ricardo Basbaum, a sua circulação e inserção foi e é ainda feita de forma muito autónoma e independente, na contramão das tendências do momento. Mesmo sem o respaldo do mercado, quando comparado a outros artistas brasileiros da sua geração, Basbaum é um artista fundamental para articular a continuidade entre a geração de Lygia Clark e Hélio Oiticica e os novos códigos visuais e linguísticos da relação entre sujeito e obra no mundo globalizado, um artista que pensa os espaços de sociabilidade e de subjectividade de forma muito singular.
No caso das diversas colecções de arte em Portugal, a maioria segue os cânones e as tendências do mercado, e a recorrência de alguns nomes de artistas da América Latina faz com que se assemelhem entre si, os coleccionadores compram muitas vezes nas mesmas galerias. Com algumas excepções, o filtro do mercado não permite dar relevância a dinâmicas culturais, discursos e espaços de resistência, individuais e colectivos, que são importantes para entendermos a arte destes países. O historiador e crítico brasileiro Michael Asbury fala com grande clareza desta operação quando diz que a chegada da arte das chamadas regiões periféricas para o cenário mundial não é em primeiro lugar o resultado do esforço intelectual levado a cabo para desmantelar os poderes hegemónicos. Em vez disso, o que ocorreu foi uma significativa mudança na estrutura económica e política do mundo, que permitiu que isso acontecesse.
Retomando a tua pergunta, creio que uma das formas de “contornar” visões hegemónicas da história são projectos de revisão das colecções permanentes dos museus e as suas políticas de aquisição. Há muito trabalho a ser feito em Portugal onde os discursos são ainda eurocêntricos, e onde a arte se explica em “circuito fechado”. Um bom exemplo de formas de contornar discursos dogmáticos é o projeto Red de Conceptualismos del Sur que o Museu Reina Sofia de Madrid iniciou em 2007. Através de uma plataforma de trabalho, que é uma rede de pesquisadores e de artistas de diversas partes da América Latina e da Europa, estuda as relações contemporâneas entre arte e política, a partir de diversos lugares e regimes de enunciação. Este projecto continua a gerar uma intensa troca de informações mais próxima do carácter “desmaterializado” de muitas propostas artísticas que observa e “contraria” a ideia de acervo material, de colecção e de representação institucional.
Na exposição Potência e adversidade... senti necessidade de incluir alguns artistas de fora da geografia “latino-americana”, como o caso de Ângelo de Sousa, Lothar Baumgarthen, Antoni Muntadas, entre outros. A ideia foi criar “zonas de contacto” e aproximações, algumas delas inesperadas, mas que permitem quebrar a divisão dicotómica entre a arte “daqui” e a arte “de lá”. Procurámos também integrar materiais “documentais”, tais como as revistas, os impressos, os livros, os cartazes, o desenho, junto às formas de arte mais tradicionais, como a pintura e a fotografia, num mesmo plano discursivo, sem hierarquias nem precedências.
De que forma articulaste obras e artistas entre os espaços do Pavilhão Branco e do Pavilhão Preto?
Os dois pavilhões têm naturezas e arquitecturas muito distintas, têm qualidades e condicionalismos vários. Resolvemos não diferenciar o tipo de montagem nos dois espaços, de forma a criar uma continuidade. Aquilo que articula ambos os espaços é o confronto entre um núcleo histórico dos anos 70, de artistas interessados por práticas conceptuais, e um núcleo mais recente, com alguns desdobramentos deste o momento “conceptual”, em que os trabalhos se relacionam com objecto, instituição, circuito, recepção e história.
Deparei-me com boas surpresas, como é o caso dos “Cadernos Livro” de Artur Barrio, as fotografias de Anna Maria Maiolino, registos das acções de Ana Mendieta ou de Antoni Muntadas, entre outros. De Hélio Oiticica em colecções portuguesas apenas identificamos um conjunto de três fotografias onde Oiticica documenta o artista Raymundo Collares com seus trabalhos. Não sendo um trabalho emblemático, dá a ver as redes de amizade entre artistas experimentando e inventando em simultâneo.
O núcleo “contemporâneo”, com cerca de trinta artistas, abrange uma variedade de enunciados criativos com vista a descolonizar, deslatinizar, e destropicalizar os discursos sobre a sua produção, como é o caso do trabalho de Jac Leirner, feito de objectos furtados a companhias de avião, as pinturas de Magdalena Jiktrik, que misturam formalismo geométrico com episódios históricos de desobediência civil, ou o conjunto de fotografias de Rosangela Rennó, que explora os limites entre o discurso da arte e os registos jurídicos do cárcere.
Nesta exposição existe uma propositada ausência de trabalhos e artistas da década de 80, em que os valores da pintura, através do movimento “transvanguardia”, se afirmam junto a uma espécie de “alegria de viver” decorrente do fim das ditaduras em vários países do Cone Sul e da convergência das jovens democracias para os valores dos mercados neoliberais. Esta ausência faz com que a exposição tenha um tom mais silencioso, talvez pessimista e sombrio, por conta de um uso de materiais e formas de comunicação onde a cor não é um elemento expressivo, e onde a documentação, o arquivo, o registo fotográfico, as séries, etc., tomam particular expressão.
Um aspecto também que me interessou foi chamar a atenção para um momento intensamente cosmopolita que precede a “internet”, mas onde os artistas se comunicavam intensamente estabelecendo redes de troca e solidariedade intercontinental, na contramão da ditadura. Se muitos artistas da América Latina se encontram nesse momento na Europa ou viajam para zonas recônditas, como é o caso de António Dias que vai para o Nepal, no sentido inverso, outros artistas da Europa, como Lothar Baumgarten ou Antoni Muntadas, fazem contacto com vários países da América do Sul e as suas culturas indígenas.
Um índice dessa comunicação intensa, activista e política, são as redes de mail art que os artistas estabeleciam, como é o caso de Eugenio Dittborn nesta exposição, e publicações de denúncia da ditadura, como por exemplo a Ovum 10, fundada pelo poeta visual uruguaio Clemente Padín, um veículo extraordinário de activismo político e inquietação formal, utilizando entre outros recursos uma forte co-participação do leitor, a incorporação sistemática de objectos tridimensionais e intersensoriais, nas suas páginas. O número que se expõe, dedicado ao movimento Tucumán Arde, é resultante do momento culminante da radicalização política e artística e é tido como um episódio fundador do chamado "conceitualismo ideológico" que articula arte e política na Argentina e no cenário internacional.
Consideras a exposição enquanto ensaio?
Não creio. Esta exposição não é um ensaio porque não pretende ilustrar uma tese, mas antes dar uma resposta contingente no presente, ou seja, expor alguns problemas, algumas polaridades ou ritmos, que se querem criativos e jamais ilustrativos.
Por isso, alguns trabalhos aparecem, de forma bastante “indisciplinada”, como cartas “fora do baralho”, mas que são imprescindíveis para gerar diversidade. Por exemplo, coloquei obras de Albino Braz, Raimundo Camilo e de Manuel Alvares Bravo, os dois primeiros artistas brut e o segundo, com uma fotografia de 1934, de um tipo indígena mexicano. Um trabalho de pintura do filipino Manuel Ocampo, bastante colorido e pop aparece meio isolado na exposição. São modos de encarar o conjunto, através de fatores isolados, creio.
Percebi que a maior riqueza, mas também a maior contingência, eram as próprias colecções, e teria de trabalhar com o que existia pois não havia a possibilidade de empréstimos externos. Neste caso, a curadoria assume um curioso efeito de espelho, ou seja, sob o pretexto de expor “os outros”, neste caso a arte na América Latina, acaba por expor muito mais a nós mesmos, pontos de vista daqui, cultural e ideologicamente construídos.
Como relacionas artistas da arte bruta, nomeadamente Albino Braz e Raimundo Camilo, com o fio condutor da tua pesquisa?
Refere-se a uma questão que é, em primeiro lugar, pessoal. Sempre tive interesse por produções artísticas sem agenda nem instituição e que são designadas de brut ou “virgens”. No Brasil, existe uma enorme riqueza e diversidade nestas produções, desde o Acre até à foz do Iguaçu, mas o meu interesse já vem de Portugal, das coisas do Jaime, do Franklim e outros artistas.
Situados à margem do cânone, a presença destes artistas, que aparece como “extemporânea” na exposição, permite criar “respiros” e “pausas”, e não convergir para uma tese. O trabalho de Albino Braz, por exemplo, é um misto de sonho e sexualidade, e foi exposto num dos primeiros anos de actividade do MASP, em São Paulo, no final da década de 40. Tratava-se de um momento em que este museu estava interessado em debater as noções de alta e baixa cultura e em que, paralelamente, Mário Pedrosa vê na produção artística dos doentes mentais algumas formas comparativas para pensar a arte moderna. Achei que era uma boa oportunidade para mostrar este artista.
Raimundo Camilo, por seu turno, surge na exposição como um “piscar de olhos” ao trabalho de Cildo Meireles, às notas das suas Inserções em circuitos ideológicos, da década de 70. Poderia ter optado por mostrar o trabalho de Cildo, hoje um artista perfeitamente estabelecido, mas a solução inventiva de Raimundo Camilo amplia o que entendemos por “conceptual”, para além da arte “erudita”. As “falsas” notas que Camillo criou são autênticas brechas poéticas sobre a noção de “valor”, e julgo-as tão instigantes como a operação de Cildo Meireles.
A que se refere o título que escolheste para a exposição?
Remete para a frase de Hélio Oiticica, “da adversidade vivemos”, e que aparece escrita nos seus parangolés. Aborda o clima de opressão da ditadura militar, o cruel “AI-5” que obrigou muitos intelectuais brasileiros ao exílio. O verbo “viver” conjugado no presente e na terceira pessoa, dá à frase um tom de permanência entre ontem, hoje e amanhã. Embora expresse uma “condição” não tem nada de fatalista, pelo contrário, é reacção, energia, catarse.
Uma outra referência, é a proposta de curadoria de Carlos Basualdo, que foi apresentada em Paris no início dos anos 2000 e que tinha como título “Da adversidade vivemos”. Basualdo propôs uma nova história da arte onde a arte da América Latina se distingue das "categorias dominantes" impostas pela Europa Ocidental e pela América do Norte, e em que a matriz de potência e resistência, de arte e vida, são chaves de leitura distintivas.
Um dos traços da arte brasileira, talvez o mais prolixo, é a convergência entre poética e política, a qual perpassa as propostas de vários artistas. A componente experiencial da vida organiza os modos de representação, ou seja, a radicalidade da obra é extraída da radicalidade da experiência, para aludir ao Tunga, um artista que admiro e que está nesta exposição.
Nesta exposição qual o peso da arte como moeda de troca económica?
Para responder à tua pergunta é preciso referir que o coleccionismo é uma forma de acumulação de bens e objectos e que a sua “engenharia interna” é a da soma ou multiplicação. São gestos de afirmação, de inscrição e de poder.
Mas aquilo que é recente é o facto de hoje muitas colecções espelharem a natureza especulativa do capitalismo avançado, serem negócios corporativos de grande envergadura. Em países em que o papel intermediário e regulador do estado está enfraquecido, como é o caso da América Latina, os poderes económicos privados e os coleccionadores têm cada vez mais poder e influência, e algumas vezes ganham contornos megalómanos. Estas mudanças estão a ocorrer também na Europa, e em Portugal, sinto que as instituições hoje estão a passar por uma crise de identidade.
Um livro muito atento sobre estas transformações no campo da cultura, é Managers of Consciousness (1986), do artista Hans Haacke. Este livro fala da passagem dos anos 70 para a década de 80, onde a arte se torna “activo” dos mercados neoliberais. Destituindo o lugar que tradicionalmente era dado ao museu, o mercado passa a operar directamente nas narrativas que devem ou não devem compor a sociedade e as suas formas de expressão cultural. Naquele momento, uma das narrativas que dá expressão ao alargamento do mercado global é o multiculturalismo, e é neste sentido que as grandes colecções vão seguir a tendência de incorporar artistas de outras “geografias”, como é o caso da arte latino-americana.
Este momento também aconteceu em Portugal, onde no final dos anos 90 e início dos 2000, há alguns discursos e políticas culturais que visam apresentar uma nova ideia de país no contexto da União Europeia, longe do seu passado colonial. Procuro abordar isso com mais cuidado no ensaio para o catálogo desta exposição, mas poderia dizer que o ano de 2000, pela sua carga de efemeridade das relações Portugal-Brasil (comemorações da chegada de Pedro Álvares Cabral), apresenta uma mudança significativa no panorama da arte e consequentemente do mercado de arte. Num só ano, mostram-se cerca de cem artistas brasileiros, o que contrasta bastante com os anos anteriores. Entre Lisboa e Porto, várias novas instituições inauguram e as galerias portuguesas vão incluir artistas brasileiros nos seus “elencos”.
Salvo excepções, a apresentação em Portugal de artistas “de fora” tem tido uma expressão apenas de “entretenimento”, ou seja, não tem sido acompanhada por um esforço crítico de revisão dos discursos históricos da própria arte portuguesa e dos percursos narrativos das colecções.
Portugal, as cidades, o tecido social e cultural encontram-se em plena mudança a um ritmo que definiria vertiginoso. Achas que a chegada de artistas vindos de outras geografias e contextos pode, de alguma maneira, enriquecer o discurso artístico local?
O perigo do momento presente é a convergência para projectos de grande impacto de público, uma certa persistência da ideia de museu-espectáculo, como forma de responder à afluência de um grande número de turistas. Penso que as instituições ainda estão a tentar adaptar-se a uma cidade que não pára de mudar e crescer.
Neste sentido, o contexto é propício para debates que anteriormente não se colocavam em Portugal, e que são decorrentes de termos sido um país colonial. Muito raramente entendemos a nossa formação atlântica no sentido de a tornarmos estratégica, no presente.
No fim de contas voltamos ao mercado! A inscrição de artistas estrangeiros no panorama cultural nacional e/ou a sua fruição, só é possível mediante mecanismos económicos precisos?
Contornar as lógicas próprias do mercado é um grande desafio, obrigando a grande determinação por parte das instituições. Devemos exigir que o acesso à cultura seja diversificado e não apenas “produto” de mercado.
Aquilo que observo, porém, é que até mesmo os artistas e os movimentos que na sua época foram dissidentes são hoje nichos de mercado, “presunto como qualquer mercadoria”, como dizia Mário Pedrosa, uma operação de esteticização da contracultura que acaba por neutralizar “o exercício experimental de liberdade”, uma das mais contundentes propostas cunhadas pelo crítico de arte brasileiro.
Antonia Gaeta
(Itália, 1978) é Licenciada em Conservação dos Bens Culturais pela Universidade de Bolonha, Mestre em Estudos Curatoriais pela FBAUL e Doutorada em Arte Contemporânea no Colégio das Artes da UC. Desenvolveu projectos de investigação e exposição com diversas instituições artísticas em Portugal e no estrangeiro e tem textos publicados em catálogos de arte e programas de exposições. Foi coordenadora executiva das representações oficiais portuguesas nas Bienais de Arte de Veneza (edições 2009 e 2011) e de São Paulo (edições 2008 e 2010) para a Direcção-Geral das Artes. Em 2015, foi curadora adjunta do Pavilhão de Angola na 56ª Bienal de Veneza. Desde 2015 desenvolve projectos curatoriais para a colecção de arte bruta Treger/ Saint Silvestre.
Pavilhão Branco / Pavilhão Preto
Nota:
O título "Da adversidade vivemos" é retirado de um dos Parangolés-capa feitos em 1967 por Hélio Oiticica. O trio de Parangolés tinha as seguintes frases escritas: da adversidade vivemos, incorporo a revolta e estou possuído