Um (anti-)trabalho do olhar. Um espaço para (re)parar
Sente-se, na pintura de José Almeida Pereira, as marcas de um olhar atento. Perscrutador. Naquilo em que a atenção tem de tempo, de demora e paragem. Um olhar agitado. Naquilo em que a agitação tem de agir, de acção transformadora, de construção. Um olhar em movimento, inquieto, resistente e resiliente face a um meio em obstinada expansão (em número de possíveis) mas em inconsciente contracção (de profundidade sensível). Um meio enquanto estado perene no qual a hipermodernidade tecnológica tende a enredar viciosamente, no engodo salvífico de glorificação pela imagem, um mundo que (a) cada vez mais parece menos mundo. Um mundo veloz, fugaz e fugidio, adúltero do seu próprio chão, que reduz a um plano liso de texturas as suas camadas intersticiais, e onde nos anestesiamos com injecções contínuas de nós próprios. A velocidade traz o entorpecimento à trama das relações que construímos. Uma vertigem para a sua construção (das relações) enquanto véu virtual de espelhamentos com o qual, tão prontamente, nos fazemos cobrir.
Precisamos de corpos que olhem, e que não apenas se vejam. Que percebam os lugares que pisam e se principiem nas oscilações de um percurso que se vai tecendo com a ponta dos dedos — e aqui os dedos como a pedra de toque da relação háptica que desenvolvemos com o mundo: com o Outro.
José Almeida Pereira é claramente um deles. Pelas relações que estabelece e pelos objectos que apresenta. A sua pintura é feita com os dedos. É uma pintura de toque. Ela toca o mundo (no sentido não estrito e mais pleno da palavra). E é enquanto toque, enquanto estado de revelação de um encontro que se faz no espaço do olhar — enquanto vector de múltiplas direcções e de afectações mútuas — que ela fissura a fina camada aplanada das imagens que lhe chegam (ao artista), para devolver corpo a essas imagens, a forma física dos referentes que as antecederam, o seu valor intrínseco enquanto pintura, enquanto matéria sensível composta de pigmentos.
Neste estado de humanidade povoado, e arriscaria dizer dominado, pelo ecrã digital que perpetua uma desfasada percepção da possibilidade de tangência da realidade; ecrãs por onde vemos e onde nos vemos — ecrãs onde nos fazemos e onde somos —, o projecto (ou talvez prefira dizer: o fazer) pictórico de José Almeida Pereira lança-se, em queda livre que não prevê chão, na ambivalência crítica de um pensamento mais alto sobre o regime de visibilidade e construção da contemporaneidade e do indivíduo. Aí reside, em grande parte, a relevância deste trabalho (e a uma ideia de trabalho voltaremos) no seio dos discursos artísticos actuais (não se tome isto com o valor negativo de uma pretensão).
A forma idiossincrática como traz, por evocação evidente e delegada, e também como gatilho para uma aproximação rápida e eficaz do espectador, as imagens de obras famosas que povoam uma consensual historiografia da arte — índices constituintes de uma memória visual colectiva e unificada —, mais do que sublinhar um movimento das obras-primeiras em se transformarem e se transfigurarem em imagens flutuantes —pairantes —, usadas e apropriadas como manifestações de pertença, presença, lembrança ou posse, desviando-se de um valor de aparição e revelação de forças para se fixarem (não por vontade própria) num mecanismo artificial de sustentação e sobrevivência do próprio sistema artístico e visual; mais do que apontar um movimento da imagem em se fazer sucessivamente imagem, em diferidos constantes, convertendo no espaço pictórico criado uma metáfora para esse mesmo movimento através de arrastamentos velozes, sobrepostos e fantasmáticos da figura ou de uma paleta rapidamente associada a um universo tecnológico e virtual, a pintura de José Almeida Pereira parece-me apresentar, justamente, e também por isso, uma indagação prática (porventura metafísica) sobre o papel e o lugar do corpo. E não falo apenas do corpo do pintor estritamente enquanto agente de um fazer, pois isso estará desde logo implícito no acto de pintar – na realidade concreta das pinturas que apresenta — falo, sim, e partindo das marcas presentes nas suas pinturas, de uma reflexão sobre o lugar, espacial e sobretudo mental, do corpo que está, do corpo que olha, do corpo que age, do corpo que pensa. Um corpo presente, inserido no espaço e no tempo. Um corpo que é. Um corpo que, mesmo parado, está em movimento. Ou um corpo que, mesmo em movimento, conserva o lugar de paragem onde o pensamento acontece.
Uma reflexão sobre o lugar e o sentido do indivíduo contemporâneo (porque estamos neste tempo e nestes lugares), enquanto ser em relação operante e sensível, enquanto estágio de mundo. Coloque-se, novamente, a pergunta presente na folha de sala da exposição que me acompanha nas linhas deste texto. Retenhamos a interrogação:
“Para onde se atentará o corpo humano?”
A ameaça da imagem plana (porque desapropriada das suas texturas de mundo), entrópica e convulsa, atomizada e vertiginosa, manifesta a crise do indivíduo na sua ontologia concreta. A sua velocidade cria indivíduos que não conseguem parar. E a paragem é, sem dúvida, propiciadora às volutas do pensamento, dá tempo ao olhar: um olhar atento, um olhar-pensamento. José Almeida Pereira funda nesse tempo. A sua pintura tem a paragem dentro. Teremos nós, ainda, a capacidade de parar? Reparar? Reparar (n)o olhar? Agir com o olhar?
E porque parto da exposição patente da Galeria Graça Brandão, debrucemo-nos sobre ela por momentos (e espero fazer destes momentos paragem).
Esta é uma exposição que parece viver no paradoxo, na ilusão de aparências. Mas as suas forças contrárias (que só num primeiro nível poderá fazer transparecer) mais não fazem do que se afirmar e reforçar mutuamente — porque um paradoxo vive na simultânea afirmação dos seus contrários (e assumo o peso das minhas palavras —porque minhas).
Tic… Tic… Tic… Relógio, o som do vídeo de Max Fernandes na sala escura da galeria e que por ela ecoa dá a cadência à exposição, dá-lhe tempo, dá-lhe máquina. E, se repararmos, veremos em alguns espectros de luz difundidos pela bola de espelhos onde o vídeo se projecta, a pequena imagem de uma mão que acompanha o ritmo maquínico. Mas a máquina subjaz, sob a sua égide universal e negra — a mão só vive no espectro — na imagem de mão em movimento ordenado e contínuo.
O homem-máquina, o homem de trabalho incessante, imposto pela velocidade e constância dos dias, por uma sociedade que o enforma enquanto tal de forma inconsciente, é o homem que vive dentro da imagem. Vive na imagem — porque preso na continuidade do fazer (tic… tic…). Uma imagem que gera, que mantém e que, ao mesmo tempo, o antecede, sem lugar para a paragem e descoberta dos seus próprios intervalos de existência. Ele vive na ideologia do seu próprio espectro. (Vive?).
Gostaria, pois, de pensar que a ideia de trabalho que se manifesta em toda a exposição, em especial nas pinturas de José Almeida Pereira que representam actividades de um fazer humano, mais do que sublinhar e glorificar a presença e acção do corpo do indivíduo como o contraponto metafórico ao seu próprio desmembramento pela imagem constante e trabalhada de si, pode ser aqui extrapolada como uma reflexão crítica e ambivalente sobre uma possível refracção do indivíduo enquanto ser de pensamento — um entorpecimento da capacidade de olhar. Porque o corpo que trabalha na imagem é um corpo adormecido de si próprio. A máquina expande, mas a máquina limita. A máquina dá às mãos mas tira aos olhos.
É curioso observar que as imagens da pintura abstracta russa, símbolo de um movimento de emancipação e não-arregimentação do indivíduo face a uma sociedade instrumentalizante e maquinista, retomam a ecrãs de vidro onde são pintadas — tal como o projecto histórico falhado, vislumbra-se a consciência desacreditada de que tudo acabe por tornar novamente em imagem — tal como a pedra de Sísifo que retoma sempre ao início da montanha.
Como escapar à máquina (e máquina sempre como a nuvem suspensa de um estado de incorporação) será porventura um trabalho dos artistas e da arte. E trabalho aqui não só como uma capacidade de fazer mas também como a insurgência de um agir interno que se exterioriza — é isso que desdobra e alcança mundo. Como um trabalho mais do que vindo da mão, vindo do olho (e o olhos não são só retinianos). Como trabalho que não seja trabalho mas sim atenção. Uma atenção muito atenta — aglutinadora — relacional. Tal como é efeito toda esta exposição. Uma exposição que, mais do que imagem, é um estado de relações atentas, plenas e vivas, que, sem dúvida, se fazem corpo pelo próprio facto de existirem. E penso na pedra de Cristina Regadas como o exemplo do que aqui digo — aglutinadora e projectiva — em união de relações. E penso na força de toda esta exposição como um organismo não complacente com uma forma estanque e maquinal de estar no mundo. Mesmo que torne também ao ecrã. Mesmo que se faça novamente imagem. Ela existe já e vive no espaço do olhar, porque encontrou ali uma forma de atenção.
David Revés (Lisboa, 1992). Investigador e curador independente. Mestre em Estudos Artísticos, vertente Teoria e Crítica de Arte, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (2018). Tem explorado a área dos novos media e redes sociais, interessando-se pelos seus cruzamentos com a arte, museologia, sistemas expositivos e pelas questões ligadas à figura do espectador. Desenvolve uma prática crítica e ensaística com a qual contribui regularmente para algumas publicações, projectos de âmbito artístico ou académico. Trabalha entre Lisboa e Porto.