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Splitting, Cutting, Writing, Drawing, Eating… Gordon Matta-Clark

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Gordon Matta-Clark, Splitting, cutting, writing, drawing, eating… Gordon Matta-Clark, Culturgest, cortesia Culturgest, © Fotos: Rodrigo Peixoto

Sérgio Fazenda Rodrigues

A exposição Splitting, Cutting, Writing, Drawing, Eating… Gordon Matta-Clark, que está patente nas salas da Culturgest, em Lisboa, teve um primeiro momento na Fundação de Serralves, no Porto e decorre de uma parceria entre as duas instituições, onde, em ambos os casos, se espelha a vontade de apresentar uma programação mais atenta a cruzamentos disciplinares.

A exposição foi concebida com a curadoria partilhada de João Ribas e Delfim Sardo e, com base numa pesquisa documental feita no acervo do artista, junto do Canadian Centre for Architecture - C.C.A. (em Montréal), dá-nos um olhar sobre o trabalho e o pensamento de Gordon Matta-Clark.

Gordon Matta-Clark, que morreu em 1978, com 35 anos de idade, continua a ser um dos nomes mais marcantes da arte contemporânea. A sua obra delineia uma pertinente, necessária e importante reflexão sobre a flexibilidade do pensamento e da acção, numa condição de fronteira. Formado em arquitectura mas sem nunca a ter exercido no recorte clássico da profissão, Matta-Clark definia-se a ele próprio como alguém que operava na intersecção de vários campos.

A forma como se movimentava livremente entre a arquitectura, o cinema, a fotografia, a escultura e o desenho, demonstrava uma rara capacidade de gerir um grupo de ferramentas e lógicas distintas, mas complementares, onde tudo concorria para um corpo de trabalho denso, consistente e complexo.

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Gordon Matta-Clark, Conical Intersect, 1975, © 2017 Estate of Gordon Matta-Clark / Artists Rights Society (ARS), New York

Do seu trabalho ressalta a particularidade da escala ambiciosa das intervenções e o facto das mesmas não poderem ser, agora, inteiramente experienciadas. Isto porque, na sua maioria, foram coisas temporárias, que já desapareceram e das quais existe apenas um registo documental.

Com base nesta realidade, a opção dos dois curadores coincidiu na apresentação de um pequeno mas significativo grupo de obras, que nos dão uma aproximação à amplitude do seu trabalho e à especificidade do seu pensamento mas, também, à problematização da presença e da representação no campo da arte e da arquitectura. Nesse sentido, organizar a exposição em torno de acções como dividir, cortar, escrever, desenhar, comer (Splitting, Cutting, Writing, Drawing, Eating) é uma resposta a algo que se comunica com base num trabalho de arquivo. Mas é, também, algo que traz consigo a temporalidade inerente ao conjunto desses actos, ou à duração que lhes é intrínseca.

Ocupando várias salas, a exposição responde aos condicionalismos do espaço existente e, de forma interessante, divide-se em duas partes sem que daí resulte uma quebra. Assim, mediada por um corredor alargado onde surge um grupo de pequenos cartões que acompanhavam o artista (com o registo de notas, aforismos, pensamentos soltos, ou máximas que este queria relembrar), a exposição desenvolve-se de forma radial e abarca um período que começa no início dos anos 70, e avança até perto do final da mesma década para, depois, regressar ligeiramente atrás.

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Gordon Matta-Clark, Splitting, cutting, writing, drawing, eating… Gordon Matta-Clark, Culturgest, cortesia Culturgest, © Fotos: Rodrigo Peixoto

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Gordon Matta-Clark, Splitting, cutting, writing, drawing, eating… Gordon Matta-Clark, Culturgest, cortesia Culturgest, © Fotos: Rodrigo Peixoto
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Gordon Matta-Clark, Splitting, cutting, writing, drawing, eating… Gordon Matta-Clark, Culturgest, cortesia Culturgest, © Fotos: Rodrigo Peixoto

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Gordon Matta-Clark, Splitting, cutting, writing, drawing, eating… Gordon Matta-Clark, Culturgest, cortesia Culturgest, © Fotos: Rodrigo Peixoto

Neste movimento, apresenta-se uma série de obras e documentos, que vão da fotografia ao desenho e ao filme, e dos apontamentos pessoais, à correspondência que Matta-Clark mantinha. E, aqui, é-nos mostrado tanto o carácter performativo das acções de grande dimensão, agindo sobre o espaço arquitectónico para o converter em elemento escultórico, como o lado mais íntimo onde, pelo desenho e pela escrita, Matta-Clark procedia à investigação dos seus múltiplos interesses e à formalização de outras peças.

A exposição mostra-nos, sobretudo, que o seu trabalho ultrapassou uma dimensão pessoal e abarcou, de modo transversal, uma dimensão colectiva. Essa dimensão colectiva expressava-se na dinâmica dos processos de trabalho, onde se instigava uma lógica de colaboração, que abarcou várias disciplinas e intervenientes. Mas expressava-se, também, na repercussão que as obras geravam, questionando uma lógica social e uma ideia de espaço público.

A exposição começa, assim, com a apresentação do restaurante Food (1971), em Nova Iorque, onde Matta-Clark repensou a forma e o funcionamento da cozinha. Abrindo esse espaço para transformar o restaurante numa plataforma comunitária, este foi um local que se converteu num ponto de encontro e de integração social, que reuniu outros artistas, como Laurie Anderson, Mel Bochner, Trisha Brown ou Vito Acconci. Mas, também, um sítio onde Matta-Clark investigava os processos de transformação dos alimentos, ou de alteração dos elementos, que, mais tarde, assumiu como referência para uma visão crítica da arquitectura.

Na verdade, de todas as alterações que introduziu nos edifícios aos desenhos que fez no seu último ano de vida - Immune vs Cancer Cells (1978), dir-se-ia que houve profundo interesse pela ideia de mudança que guiou todo o seu trabalho.

A opção de apresentar, lado a lado, estes dois registos de 1971 e de 1978 (ano em que o artista faleceu de cancro), reforça uma ideia de ciclicidade, sugerida ao longo da exposição, e comunica dois pontos fundamentais na obra deste autor - a metamorfose e a colaboração.

As obras selecionadas mostram-nos como Matta-Clark se relacionava com outros artistas, procedendo a uma acção conjunta e como se articulava com outros elementos da sociedade, trabalhando a transformação de locais desabitados e/ou marginalizados, numa actuação também política, por vezes à margem da lei.

Na mudança que operava sobre os edifícios, interessava-lhe uma ideia de celebração do vazio, ou do espaço intersticial, como elemento transformador da arquitectura. Uma transformação que surgia da extracção da matéria, do desenho da luz e da manipulação da gravidade, questionando frequentemente a ocupação física do espaço e a dimensão estrutural da construção. Deste modo, pela excisão, Matta-Clarck inquiriu uma ideia de como se constroem, ou formam as coisas, em toda a dimensão artística, política e social, que isso comporta.

De forma mais notória, foi assim que procedeu em Bronx Doors, Bronx Floors (1973), em Splitting (1974), mas também nos restantes trabalhos que levou a cabo.

Note-se que estas intervenções, ainda que sujeitas a uma geometria particular, provinham de um conhecimento enraizado do espaço, baseado na vivência do local. Nesse sentido, o desenho a que Matta-Clark recorria era algo que aparecia, predominantemente, durante e depois da visita ao local. Assim, para o autor, desenhar não era apenas uma forma de controlar, projectar e antecipar uma acção, com o raciocínio de um arquitecto, mas sim, algo que também lhe permitia ensaiar, testar e rescrever uma solução, em tempo real, no local, com o intuir de um artista. Mas, para Matta-Clark, desenhar era ainda um modo de registar, ordenar e documentar o que havia feito. E quando, na exposição, se exibem os cadernos, as notas e os desenhos que este autor executava, o que se apresenta é, também, toda essa complexidade inerente ao um pensamento e a uma acção dificilmente classificável.

Ainda neste campo, e no âmbito de uma prática muito dispersa, a exposição destaca uma tipologia específica de desenhos, os Cut Drawings (1973), que são composições escavadas na espessura de um suporte. Estes são desenhos onde se articula uma relação curiosa com as incisões que são feitas nos edifícios, em especial as desenvolvidas em A W-Hole House (1973) ou em Infraform (1973).

A fotografia e os filmes surgem, de igual modo, como forma de pensar, representar e fixar o resultado da intervenção. Mas se as fotografias, mesmo quando eram sobrepostas e cortadas, eram predominantemente encaradas como instrumentos de trabalho, os filmes eram já tidos como obras em si mesmo.

Das intervenções apresentadas, destaca-se Days End (1975), realizada na Doca 52, em Nova Iorque. Neste caso, Matta-Clatk procedeu a um corte na fachada de um antigo armazém, trazendo a luz de Poente para o seu interior. Esta foi uma acção polémica que o levou a fugir das autoridades e o conduziu a Paris, onde, no mesmo ano, desenvolveu a intervenção Conical Intersect (1975), também documentada na exposição.

Conical Intersect (1975) foi uma intervenção concebida durante a demolição dos edifícios fronteiros ao actual Centro George Pompidou, que constou de uma sucessão de secções cónicas no interior de um antigo bloco habitacional. Num momento de particular tensão, esta foi uma forma de cruzar dois tempos distintos, na morte e no crescimento da cidade.

A exposição destaca, também, a intervenção Office Barroque (1977), realizada em Antuérpia, a propósito da celebração dos 400 anos do nascimento de Rubens. A sua geometria complexa reflecte quer a lógica da dobra barroca, ou a percepção incompleta do objecto, encenada aqui através do vazio, quer a impossibilidade de tocar no exterior do edifício, que a edilidade local assim decretou.

De forma inteligente, a exposição adopta um registo de classificação (dividir, cortar, escrever, desenhar, comer), como resposta à lógica de arquivo, de onde surgiu. Mas o que se torna verdadeiramente interessante é a forma como ela, na sucessão das várias salas e no cruzamento das duas alas, nos deixa ler as múltiplas conexões que ao longo dos anos se estabelecem na obra deste artista.

Uma delas, deveras curiosa, é perceber que, à medida que a escala aumenta e que o tempo passa, há uma ligação maior entre a introspecção e a densidade dos trabalhos. Estes passam de intervenções mais claras, como o recorte por uma linha, ou a extração de uma porção de fachada, para intervenções de uma geometria mais profunda e intrincada, como Conical Intersect (1975) e Office Barroque (1977) nos demonstram.

Repare-se como nestes dois casos há como que a construção de um elaborado mecanismo feito para guiar o olhar. No primeiro, a visão incide sobre a cidade e o confronto que se cria entre o público e o privado, o novo e o antigo. No segundo, a visão confina-se a uma complexa deambulação pelo miolo do edifício, reflectindo sobre a (in)capacidade do olhar. E repare-se, também, a título de curiosidade, que a existência destas novas entidades, feitas de vazio, que interiormente vão minando o corpo do edifício, surgem pouco antes das células cancerígenas que consumiram o corpo do artista, cujos desenhos podemos ver no início da exposição.

Sérgio Fazenda Rodrigues

Arquitecto e Mestre em Arquitectura (Construção), foi doutorando em Belas Artes e é doutorando em Arquitectura, onde investiga as relações espaciais entre Arquitectura e Museologia. Faz curadoria de arquitectura e artes visuais e integrou a direcção da secção portuguesa A.I.C.A. Desenvolveu com João Silvério e Nuno Sousa Vieira, o projecto editorial Palenque. Foi consultor cultural do Governo Regional dos Açores, tendo a seu cargo, nesse período, a construção da coleção de arte contemporânea do Arquipélago – C.A.C. 

 

Gordon Matta-Clark

Culturgest - Gordon Matta-Clark

Serralves - Gordon Matta-Clark

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