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Shit-baby and the crumpled giraffe

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Naufus Ramírez-Figueroa, Shit-Baby and the Crumpled Giraffe, 2017. Instalação, esferovite, resina epóxica, fibra de vidro, pigmentos minerais. Vista da exposição na Kunsthalle Lissabon Foto: Bruno Lopes.

Sofia Nunes
 Naufus Ramírez-Figueroa, Shit-Baby and the Crumpled Giraffe, 2017  
Instalação, esferovite, resina epóxica, fibra de vidro, pigmentos minerais. Vista da exposição na Kunsthalle Lissabon. Foto: Bruno Lopes.
 Naufus Ramírez-Figueroa, Shit-Baby and the Crumpled Giraffe, 2017  
Instalação, esferovite, resina epóxica, fibra de vidro, pigmentos minerais. Vista da exposição na Kunsthalle Lissabon. Foto: Bruno Lopes.

De facto, desde as primeiras peças mais representativas da sua prática (c. 2010) que Naufus Ramírez-Figueroa trabalha a partir de sonhos e memórias pessoais, bem como de uma série de narrativas não-oficiais de teor especulativo para desarranjar os pilares ideológicos que sustentam a ordem social associadas às vivências contemporâneas do seu país e América do Sul, ao invés de procurar suplantá-las. Estas pesquisas, que assumem com frequência a forma de instalações e performances carregadas de imagética ficcional e onírica, começaram com um enfoque inicial sobre as ressonâncias traumáticas decorrentes dos horrores experimentados no quadro repressivo da Guerra Civil da Guatemala (1960-1996) abrindo-se, nos últimos anos, a territórios de amplitude cultural mais vasta e por ventura mais subjetivos, igualmente marcados por estruturas de poder, tal como se sucede em Shit-baby and the crumpled giraffe, 2017 que dá nome à sua primeira exposição individual em Portugal, produzida pela Kunsthalle Lissabon de João Mourão e Luís Silva.

Nesta nova instalação escultórica executada uma vez mais no material que lhe é característico, o poliestireno pintado com pigmentos minerais e tintas epóxi, Ramírez-Figueroa apresenta-nos vários elementos dispostos no chão da galeria, a saber: um menino com cerca de 3/4 anos de idade, uma girafa e uma cegonha, envoltas de muitos bacios coloridos e fezes espalhadas. Embora todas as figuras e objetos reunidos estejam representados com grande verosimilhança, o facto é que o seu realismo não deixa de estar submetido a uma proliferação continuada de mediações surrealizantes que vêm conferir estranheza e ironia à peça.

Diz o artista que teve um sonho há uns anos a esta parte que lhe fez lembrar a sua primeira leitura de Freud aos 11 anos, marcada pela convicção de que estava a ler casos sobre mitologia grega. Ora é bem possível que este sonho deslocado daquela memória concebida na base de uma tresleitura infantil seja um dos impulsos para Shit-baby and the crumpled giraffe, cujo intertexto é o célebre caso do pequeno Hans psicanalisado por Freud em 1909. Tanto é que a criança de Ramírez-Figueroa para além de se encontrar na mesma faixa etária de Hans, correspondente, segundo Freud, à fase fálica, partilha duas das suas fantasias: a girafa amarfanhada e a cegonha que traz cocó ao invés de um bebé. De acordo com Freud, as fantasias de Hans, substitutos da figura da mãe, estavam diretamente ligadas ao complexo de Édipo e atuavam como mecanismos de defesa à ansiedade de castração, ajudando a criança a identificar-se com a figura do pai e a resolver os seus conflitos. Hans separara a girafa amarfanhada de uma segunda girafa branca de pescoço grande (o pai) para da primeira se apoderar e, perante a ausência de explicações credíveis para a gravidez, imaginou também que a sua mãe grávida, representada pela cegonha, iria ter filhos cocós, sendo que as suas próprias fezes, feitas no bacio, seriam os filhos tidos com a sua mãe. 

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Naufus Ramírez-Figueroa, Shit-Baby and the Crumpled Giraffe, 2017 
Instalação, esferovite, resina epóxica, fibra de vidro, pigmentos minerais. Vista da exposição na Kunsthalle Lissabon. Foto: Bruno Lopes.

Todavia, ao invés de suporem a ordem e moral tradicionais, as fantasias sexuais da criança desta exposição parecem subvertê-las quando confrontadas com as interpretações de Freud a respeito de Hans, dando lugar a várias tensões sem resolução aparente. Ao olharmos com atenção para a girafa amarfanhada que nos fita do fundo da sala, percebemos que ela é um ser híbrido. Quer a cor branca, quer o pescoço alto, características da girafa-pai de Hans, fazem fundir neste corpo presumidamente feminino a marca do falo. Se, deste modo, o complexo de édipo persiste, pois que a figura da mãe não aparece castrada, assiste-se, por outro lado, a uma segunda ficção que mistura a fase fálica com a fase anal aqui experimentada por rejeições do corpo ao bacio e pulsões excretórias descontroladas. O que a criança oferece à cegonha-mãe, antropomorfizada pela ação de uns ténis brancos calçados, assim como ao espetador que a olha e contempla, mais não são do que cocós fora do respetivo lugar. Cocós que invadem o chão e flutuam no espaço como uma salsicha voadora que lança um sorriso sobre toda a galeria. 

Shit-baby and the crumpled giraffe resulta numa paródia bem disposta aos mecanismos culturais em vista à normalização disciplinada da sexualidade, onde o próprio objeto artístico, à semelhança da ideia de prazer, desconhece as distinções entre o bem-feito e o mal-feito, o bonito e o feio, o abjeto e o aprazível. Paródia essa que as cores festivas aplicadas sobre cada elemento escultórico, o laranja-elétrico, o azul celeste, o amarelo-banana ou o rosa fuschia, a par do brilho que espelham, vêm celebrar. Num momento em que forças conservadoras avançam em vários países, como a Guatemala, hoje governada por um ex-comediante evangélico (Jimmy Morales), o humor encetado ganha sem dúvida uma volta política curiosa, embora a erótica implícita, de economia desregulada, merecesse maior descolamento face à dimensão simbólica que tende a empurrá-la na direção de um enigma a descodificar, pautado por mecanismos tendencialmente circulares.

Sofia Nunes

Crítica de arte e doutoranda em História da Arte/Teoria da Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - UNL e na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Exerceu assistência de curadoria e produção de exposições no Museu do Chiado – MNAC, Ellipse Foundation e Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém (2000 a 2007). Foi professora convidada no Mestrado de Arte Contemporânea da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2009 a 2011). Escreve com regularidade para publicações de arte contemporânea e académicas.

 

Kunsthalle Lissabon

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Naufus Ramírez-Figueroa, Shit-Baby and the Crumpled Giraffe, 2017. Instalação, esferovite, resina epóxica, fibra de vidro, pigmentos minerais. Vista da exposição na Kunsthalle Lissabon Foto: Bruno Lopes.

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Naufus Ramírez-Figueroa, Shit-Baby and the Crumpled Giraffe, 2017. Instalação, esferovite, resina epóxica, fibra de vidro, pigmentos minerais. Vista da exposição na Kunsthalle Lissabon Foto: Bruno Lopes.

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Naufus Ramírez-Figueroa, Shit-Baby and the Crumpled Giraffe, 2017. Instalação, esferovite, resina epóxica, fibra de vidro, pigmentos minerais. Vista da exposição na Kunsthalle Lissabon Foto: Bruno Lopes.

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Naufus Ramírez-Figueroa, Shit-Baby and the Crumpled Giraffe, 2017. Instalação, esferovite, resina epóxica, fibra de vidro, pigmentos minerais. Vista da exposição na Kunsthalle Lissabon Foto: Bruno Lopes.

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Naufus Ramírez-Figueroa, Shit-Baby and the Crumpled Giraffe, 2017. Instalação, esferovite, resina epóxica, fibra de vidro, pigmentos minerais. Vista da exposição na Kunsthalle Lissabon Foto: Bruno Lopes.

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Naufus Ramírez-Figueroa, Shit-Baby and the Crumpled Giraffe, 2017. Instalação, esferovite, resina epóxica, fibra de vidro, pigmentos minerais. Vista da exposição na Kunsthalle Lissabon Foto: Bruno Lopes.

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Naufus Ramírez-Figueroa, Shit-Baby and the Crumpled Giraffe, 2017. Instalação, esferovite, resina epóxica, fibra de vidro, pigmentos minerais. Vista da exposição na Kunsthalle Lissabon Foto: Bruno Lopes.

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Naufus Ramírez-Figueroa, Shit-Baby and the Crumpled Giraffe, 2017. Instalação, esferovite, resina epóxica, fibra de vidro, pigmentos minerais. Vista da exposição na Kunsthalle Lissabon Foto: Bruno Lopes.

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Naufus Ramírez-Figueroa, Shit-Baby and the Crumpled Giraffe, 2017. Instalação, esferovite, resina epóxica, fibra de vidro, pigmentos minerais. Vista da exposição na Kunsthalle Lissabon Foto: Bruno Lopes.

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