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Carta a um amigo ou a lua nova em Agosto

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Eduarda Neves

 

 

Querido amigo, há alguns meses que não te escrevo. Sempre presente e fastidioso este modo darwinista no espaço académico e no mundo da arte. Excessos de morte nem sempre visíveis. Neste país, que não é o teu, o poder central continua, num estilo convicto, a falar para dentro de si mesmo. Só e compulsivo. A fraqueza de quem pensa já ter compreendido tudo e todos. A palidez do medo.  

Acabo de ouvir que centenas de pessoas fugiram de Cabul num avião militar norte-americano. Entre o não reconhecimento do governo talibã e a reivindicação dialogante tudo continua excêntrico, vacilando entre a agonia e o transtorno. Recordo-me de ter lido um texto de François Maspero no qual assumia que, apesar de só ouvir falar de imperativos políticos e teóricos, ele próprio não era capaz de entender a realidade dessa forma. É claro que tinha uma profunda consciência das lutas dos povos pela liberdade mas, sobretudo, estava interessado neste axioma: “um povo que oprime outro, não pode ser um povo livre." E não tinham já Deleuze e Guattari enunciado que o racismo opera através da territorialização dos desvios pois não reconhece o que lhe é exterior, seja um negro, um árabe ou um louco?

Antes de terminar o mês de Agosto e em apenas cinco dias, atrevo-me a admitir que ouvi a palavra “desconstrução” ser usada quatro vezes — a propósito dos talibãs, das manifestações anti-vacinas em Odivelas, da obra de um artista que vai representar o seu país na próxima Bienal de Veneza e do estado de um edifício em Viana do Castelo. Apesar de já ter lido Derrida, confesso que, para estes casos, não teve grande utilidade. Agora reparo que muito aprecio escrever-te neste modo intempestivo, como se estivesse a correr os 100 metros. As mulheres entraram tardiamente nesta modalidade. Outras rotinas. Ventos nem sempre favoráveis, também neste país que não é o teu. Modos virtuosos e enfeitiçados que se ajustaram demasiado tempo  ao estilo dominante.  A curta distância requer velocidade e aproxima-se de um certo privilégio do instante.

E as férias de Banksy, querido amigo, esse mistério tão pouco surpreendente como o divórcio entre Melinda e Bill Gates? Vidas de negócios. Algumas imagens divulgadas através de um vídeo, partilhado numa sexta-feira 13 no Instagram do suposto e construído activista, — não, não digo artista — mostram-nos que terá viajado em auto-caravana pela costa inglesa na qual foi deixando algumas intervenções pour épater les bourgeois. Como se neste Panteão fosse possível existir um qualquer lugar para o espanto. Talvez a Banksy se ajuste cada vez mais o gesto pour acheter les bourgeois.

Preocupado com a crise climática, entre outras reivindicações mundiais que cada vez mais preenchem as agendas estratégicas, pergunto-me se a auto-caravana de Banksy e as latas de tintas cumpririam as exigências ambientais. Escreve ele numa das intervenções que desenvolveu na costa inglesa  — “we´re all in the same boat”.  Podemos dizer-lhe que não estamos não, Banksy. Não estamos. Que os barcos de muitos artistas e outros tantos precários naufragam e não acabam no capitalismo leiloeiro, na criação de fundações ou na caridade social. 

Leio que Damien Hirst, devido à situação pandémica, terá despedido 63 empregados — de um total de 175 — apesar de o Estado britânico ter apoiado a sua empresa offshore, Science. Certamente que existirá toda uma complexa sabedoria científica para conseguir a fortuna de 370 milhões de euros que, diz-se, este artista tem acumulada. Numerosas mutações do vírus SARS CoV- 2 têm afectado a dimensão ética dos humanos. Também noto que este young british artist expõe na Fondation Cartier, em Paris, um conjunto de pinturas intituladas Cerisiers en fleurs. Querido amigo, poderás ir vê-las até 2 de Janeiro do próximo ano. No entanto, receio que estas cerejas não tenham qualquer sabor. Cresceram sem terra. Falta-lhes as montanhas do filme O Sabor da Cereja de Abbas Kiarostami. 

A actualidade de MacLuhan já não passa pela conhecida fórmula “o meio é a mensagem”. Hoje, devemos aprender que “o negócio é a mensagem”. A morte da arte deu lugar, sem qualquer condescendência e em linha directa, à morte do artista. Como deixar de pensar sem Hegel? Multiplicam-se os curadores que personificam a astúcia da razão. Será deles a história da arte das últimas décadas. Talvez “A morte do curador” possa ainda vir a ser um livro com futuro. Quanto mais os artistas se permitem desaparecer e sustentar a falsa invenção de candidatos a artistas — que apenas cumprem a ementa à medida— mais o território da arte se revela uma espécie de internato. Neste país, que não é o teu, assistimos diariamente a um remake ultrapassado entre os cultural studies e os visual studies. A importação mimética tornou-se, definitivamente, a nossa especialidade. 

 

Igualdade disto e daquilo, sustentabilidade ambiental, boas práticas ecológicas e transição digital configuram o leitmotiv repetitivo que as práticas artísticas devem cumprir. Mandam os decisores. Falta o prazer.  Quando se esgotar o menu do dia cá estaremos para constatar os artistas que sobrevivem às reivindicações mercantilizáveis. 

 

É nestes momentos, querido amigo, que me lembro de Éfrém, personagem da obra O Pavilhão dos cancerosos, de Alexandre Soljenitsine. Questionava-se ele, a propósito da leitura de uma história : “De que vivem os homens?”

Neste país que não é o teu, aumentam os voos. Sem leveza, é claro. Ícaro já não desafia o Sol. Oiço Pomme enquanto te escrevo:

 

Ne me demandez pas pourquoi
Quand vient l'hiver et le grand froid
On voudrait tous mourir

 

[...]

Retrouver le soleil
Qui nous manque
Qui va brûler toutes nos peines
Le soleil, qui nous hante
Oh reviens, soleil, soleil

Souvenez-vous, la prochaine fois
Que vient la neige et le fracas
On n'va pas tous mourir
Entre les braises on marchera
Et la nuit noire nous embrassera
On pourra tous partir
On pourra tous partir
[1]

 


Dizem-me que em Agosto uma Lua Nova em Leão nos dará força e coragem. Em Setembro, a Lua Nova em Virgem promoverá os ideais colectivos. Querido amigo, já só esperamos percorrer novos ciclos que nos tragam a melodia da Lua e o brilho da lebre. 

Galeria Schmela de Düsseldorf. Beuys explica um quadro a uma lebre morta. Sabe que procurar o mistério é transgredir. Ampliar. A despersonalização de Alice. A tarefa da ligação. É agradável falar de alguém que não anda na boca do mundo. Sentimo-nos distintos ao fazê-lo, assegurou Robert Walser.

Assim fico quando te escrevo. Com a cabeça na Lua. Ou no Sol. 

 

 

 

Eduarda Neves. Licenciada em Filosofia e Doutorada em Estética. Professora de teoria e crítica de arte contemporânea, área na qual tem vários trabalhos publicados. Curadora independente. A sua actividade de investigação e de curadoria cruza os domínios da arte, filosofia e política.

 

A autora escreve segundo a antiga ortografia.

 


[1] Soleil, Soleil, cantada por Pomme [Não me perguntem porquê | Quando chegar o inverno e o grande frio | Todos quereremos morrer | Encontrar o sol | que nos falta | Que queimará todas as nossas penas | O sol que nos assombra | Oh regressa sol, sol | Lembrem-se na próxima vez | Que chegar a neve e o fracasso | Não vamos todos morrer | Entre as brasas caminharemos | E a noite escura abraçar-nos-á | Poderemos todos partir | Poderemos todos partir ] — tradução nossa.

 

Imagem: Oliver Laric, Versions (Missile Variations), 2010. Airbrushed paint on aluminum composite board, in 10 parts. 9 4/5 × 17 7/10 in 25 × 45 cm. Courtesy of the artist and Seventeen Gallery, London © Oliver Laric.

 

 

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