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Paulo Lisboa: Imagines Plumbi

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José Marmeleira

Desenho e desenhos. Luzes e sombras, formas geométricas e imagens que resistem a fixar-se, como se disformes, volúveis, diante da visão. Em Imagines Plumbi, na Galeria Graça Brandão, a experiência das obras de Paulo Lisboa (Lisboa, 1977) pode acontecer entre os sentidos destas palavras. Na primeira sala, vêem-se, sobre as paredes, tonalidades diferentes de grafite. Luminosas, opacas, escuras, vibram sobre as superfícies e revelam formas retangulares isoladas ou em relação com outras formas rectangulares. Há sobreposições, tangentes e, o que parecem ser, movimentos suspensos, instantes cinéticos. Num desenho em que não se vislumbram as marcas do fazer da mão, em que se escondem os vestígios de qualquer trabalho manual.

Na mesma sala, poder-se-ia evocar, também, a representação de espaço, ou melhor, de uma composição, pelo desenho, de espaços, sempre verticais. Uns há que são encimados por focos de luz, outros cobertos por uma penumbra que dissolve os contornos, outros, ainda, sugerem profundidade, como se o desenho pudesse abrir para uma cena. Em todos, a percepção é num primeiro momento objecto de um logro, de um engano. A ausência aparente da intervenção manual do artista, a impessoalidade do alumínio, as densidades da grafite aproximam as imagens de impressões, de experiências realizadas num laboratório ou com o recurso exclusivo a instrumentos técnicos, a máquinas. Na verdade, não foi isso o que aconteceu. Estes desenhos foram realizados manualmente, mas a presença da mão só se descobre, quando se descobre, com uma atenção concentrada, numa aproximação física ao plano do desenho.

Há vários anos que Paulo Lisboa trabalha esta prática, saturando a presença da grafite, uniformizando o traço, numa abordagem alheia a qualquer tipo de representação mimética do mundo.

Ao fim de uma actividade intensa de pesquisa, o desenho foi-se autonomizando do lápis, para ser quase, só, matéria, plano, superfície preenchida. As marcas ocasionais do traço, as manchas foram desaparecendo na matéria, tornando-se apenas grafite.

Deste exercício ontológico, resultou a transformação do papel em espaços, espelhos nos quais se descobriam reflexos ou outras imagens, consoante o lugar do espectador ou a entrada de luz. Dito de outro modo, os desenhos de Paulo Lisboa existiam e existem, também, numa relação com aquilo que está fora, à volta do desenho.

Voltando a Imagines Plumbi, a exposição é determinada pela presença da grafite natural, que o artista descobriu num afloramento perto de uma aldeia, no distrito de Viseu. A manipulação das propriedades do mineral permitiu-lhe criar camadas que, sobre o papel, fizeram do desenho uma experiência de formas e planos. Transformado em tonalidades de uma diferença discreta, a grafite deslocava-se sob a luz, entre e cor do papel e o negro da matéria. Este método já determinara Phosphora, em 2015, e Plasma, em 2016, também na Graça Brandão, expandindo o desenho, tornando-o veículo de imagens, que um olhar mais distraído poderia considerar reproduções fotográficas, quando, afinal, são obras unas, irreproduzíveis.

Nesta exposição, o método permanece, intensificando a natureza geométrica e espacial do desenho, sugerindo uma aproximação à arquitetura (entradas, ângulos, passagens, volumes, fundos), bem como à luz, cujo bruxulear parece suspenso pela grafite. Embora o trabalho de Paulo Lisboa assente numa reflexão sobre o suporte, nunca deixa de proporcionar um encontro com a aparição das coisas. Do processo e como processo, o desenho também constrói um envolvimento com o espectador. Daí, também, a sua irredutibilidade a qualquer reificação em termos de experiência. Elas movem-se de acordo com o lugar que cada um toma no espaço, ganhando ou perdendo mais ou menos luz, mais ou menos escuridão, mais ou menos contornos. Alguns desenhos parecem animados por uma força cinética, outros parecem emergir do escuro ou afundar-se neste. Há também aqueles que parecem recuar para o interior do próprio desenho ou que contêm outros desenhos.

Ressalta a natureza difusa e incerta deste desenho, em termos de disciplina e perceção. A relação que tradicionalmente estabelecemos com ele surge transfigurada e expandida pela escala das imagens, pelo modo como convocam o corpo e as associações que despertam com outros suportes, práticas ou disciplinas. Nesse sentido, não é despropositado dizer que as imagens dos desenhos de Paulo Lisboa podiam ser imaginadas como fotografias.

No piso inferior da Galeria Graça Brandão, estão outros desenhos negros, mas no lugar dos retângulos, figuram agora círculos de luz, rodeados pelo escuro da grafite. São trabalho nos quais a percepção volta a ser posta em causa, tal o aspecto tridimensional que os desenhos insinuam: são círculos, onde podíamos ver esferas, planetas, luas, astros no espaço. A interrogação que os desenhos de Paulo Lisboa colocam ao o que é o desenho estende-se às três projeções de slides. Nas paredes, surgem imagens de um cristal e de um berlinde que um movimento de focagem e desfocagem ora fixa, com nitidez, ora torna difusas, enevoadas. Numa lenta impaciência, o dispositivo não nos deixa contemplar ou ver com precisão, mas avança e recua (por efeito da introdução de objectos tridimensionais no seu interior), face à imagem que devia reproduzir.
Não é o nosso olhar que altera o que vemos, mas a máquina. Sob a ampliação e o movimento do dispositivo, vêem-se superfícies, mas cobertas de brilhos, manchas, buracos, riscos, texturas. Desapareceu a geometria, a lisura dos desenhos da sala de cima, mas permanece um desenho, o da luz sobre objectos e coisas que tentamos observar sem conseguir definir.

Paulo Lisboa

Galeria Graça Brandão

José Marmeleira Jornalista e crítico nas áreas da música pop e da arte contemporânea. Colabora no jornal Público e na revista Time Out Lisboa. Lecciona Fundamentos do Jornalismo na Universidade Europeia e está a realizar o doutoramento em Sociologia no Instituto de Ciências Sociais (ICS-UNL). 

 

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Paulo Lisboa. Imagines Plumbi. Vistas da exposição na Galeria Graça Brandão. Cortesia do artista e Galeria Graça Brandão.

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