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Pálpembrana

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Marta Espiridião

Alice dos Reis: Fofura, paraficção e a re-invenção da mentira

"Falo sobre os deuses, sou ateia. Mas sou artista também, logo sou mentirosa. Desconfia de tudo o que digo. Estou a dizer a verdade. A única verdade que posso compreender ou expressar é, logicamente definindo, uma mentira. A verdade é uma questão da imaginação."

Na introdução de The Left Hand of Darkness, Ursula K. Le Guin fala de como a ficção científica  (sendo um exercício da imaginação que pode, ou não, partir de uma experiência real) é muitas vezes interpretada como previsão de um futuro, como uma verdade que se pode tornar absoluta, resultado de tempos tão contigentes que nos fazem questionar a possibilidade do irreal. No trabalho de Alice dos Reis, equilibrado entre a matéria biográfica e a componente ilusória, esbatem-se as fronteiras entre a realidade e a ficção — não no sentido de ludibriar, mas de criar narrativas, escapes à realidade a que nos encontramos ancorados. São estórias ou será História (e poderá uma ser sem a outra?). Re-inventa-se a mentira: aqui já não se trata da alteração ou da omissão de uma verdade, mas sim do real ao qual se acrescentam elementos fictícios. A escolha é subjectiva: questionamos o jogo ou permitimo-nos acreditar.

Pálpembrana, a primeira exposição individual de Alice dos Reis, patente até 23 de Setembro na Galeria da Boavista, é o resultado do processo de escrita da sua tese de mestrado, Slimy Fillings (que se encontra disponível na exposição em formato booklet). Aqui, conhecemos o Axolote, um batráquio que habita(va) alguns lagos no México. Tido como um dos animas mais fofos do mundo, a sua existência encontra-se ameaçada tanto pela destruição do seu habitat natural como pelo crescente interesse na posse e domesticação deste animal, popularizado em inúmeras páginas de facebook e vídeos do YouTube. Habituado a uma vivência na penumbra (a tendência evolutiva dos axolotes levou a que, ao contrário da maioria dos animais, não desenvolvessem qualquer membrana protectora dos olhos), as luzes de aquário são muito fortes para o axolote, afectando as suas capacidades de orientação e comunicação. Em Mood Keep (2018), um filme protagonizado por estas adoráveis criaturas, Alice dos Reis cria uma ficção onde os axolotes desenvolvem pálpebras para proteger os olhos da luz, comunicam entre si por uma rede wi-fi, e vêem anime. (Apesar de ser extremamente interessante, e fulcral para o entendimento deste trabalho, este texto não se irá focar na pesquisa e teorização do “cute” realizada por Alice dos Reis, encorajando-se assim uma leitura atenta da sua tese de mestrado.)

Em Stock Model (2016), a artista cria uma narrativa à volta de uma Stock Model, uma modelo fotografada em várias poses, e cujas imagens resultantes são posteriormente disponibilizadas para venda e utilização em anúncios e projectos vários, neste caso específico em vídeos 3D de agências imobiliárias, com o intuito de promover complexos habitacionais e apartamentos ainda em fase de construção. A modelo descreve ao espectador o momento em que descobriu que a sua imagem estava a ser utilizada para habitar virtualmente condomínios de luxo (espaços associados às classes sociais alta e média ​​​​​​alta, e ao seu elevado poder de compra), como se ela própria tivesse uma “segunda vida” luxuriante e aparentemente inalcançável de outra forma.

É aqui que o trabalho da Alice se equilibra: entre uma ficção que poderia ser real e um real que deveria ser ficção. Na intersecção com a teoria da narrativa, que “parte do pressuposto de que a narrativa é uma estratégia humana básica para nos reconciliarmos com elementos fundamentais da nossa experiência, como o tempo, processo e mudança” [1], o trabalho de Alice dos Reis baseia-se em ficções que a própria artista cria à volta de objectos/corpos cuja realidade e existência não levantam dúvidas. Carrie Lambert-Beatty define assim a paraficção: "oposta à base factual e aos mundos imaginados da ficção histórica, na paraficção personagens reais e/ou imaginadas e histórias intersectam com o mundo como é vivido. Estratégias pós-simulacrais, paraficcionais, são orientadas menos em direcção ao desaparecimento do real, e mais
em direcção às pragmáticas da confiança. Resumindo, com vários graus de sucesso, com várias durações, e para vários propósitos, estas ficções são experienciadas como factos."
 [2]

Seja pela dificuldade em discernir o real do ficcionado nas estórias que escreveu no livro-obra NOW 5, seja pela percepção de que a Stock Model tem uma materialidade-corporealidade que nunca lhe atribuímos (características das quais derivam emoções que nunca lhe outorgamos), "ao experienciar a maioria da paraficção — onde o ficcional se apoia no factual — avalia-se não só se a proposta é ficcional, mas que partes da mesma são verdade. (…) Paraficções treinam-nos no cepticismo e dúvida, mas também, estranhamente, no acreditar." [3]

O mundo de Alice dos Reis desenrola-se rápido, à mesma velocidade com que os olhos automaticamente percorrem os píxeis do computador, à mesma velocidade que procuramos discernir a ficção da realidade, à mesma velocidade a que as duas se entrelaçam.

Nele procura-se processar a informação que nos chega de diversas formas, seja qual for o tamanho do ecrã, e repetidamente tenta-se descodificar o que está para além da imagem, o que está ainda para lá dos 0 e 1, a (verdadeira?) intenção do emissor. Pensa-se como o algoritmo está feito à nossa imagem, nos copia como um espelho, sempre tentando ficar mais próximo. Aprende-se a encarar a internet, a assimilar tudo o que engloba: pesquisas, separadores, ficções, imagens, mentiras, online hate, memes.

Em Aquarium Coffee Table observamos um browser no qual se desenrolam imagens, e onde alguém pesquisa por um estranho objecto — um aquário-mesa de sala, tão surreal que se poderia pensar existir apenas e só no universo do jogo Sims. Neste universo, todo o tempo é relevante, mesmo aquele que se perde em pesquisas aparentemente aleatórias em motores de busca. Aqui, as associações não precisam de fazer sentido, afinal o que têm em comum as três imagens que fazem parte deste vídeo — um fatal escorrega de piscina, uma mesa-aquário e uma música dos anos 1990? O pensamento não é linear, e é aí que o algoritmo falha: não consegue acompanhar nem reproduzir a irregularidade e imprevisibilidade com que os nossos pensamentos saltam e se associam a outros.

Na leitura-performance apresentada no anexo D, Alice dos Reis recitava o texto que inicia e finaliza a sua tese. Nele, a artista escreve sobre um encontro ficcional com a personagem Megurine Luka, que tem lugar na paisagem desoladora de um dos seus videoclipes (disponível no YouTube). Megurine Luka é ela mesmo uma ficção — uma personagem Vocaloid, construída a partir da estética anime, definida como “singer in a box [cantora numa caixa]” — mas que tem uma sólida base de fãs, e dá, inclusivamente, concertos para salas esgotadas no Japão. Uma paraficção materializada numa imagem computadorizada/projectada, para um público real que conhece a dimensão da mentira e aprendeu a viver com (e para) ela — aqui se re-inventa a mentira, pela vontade que temos de ser enganados.

Megurine Luka stops her choreography. We’ve been dancing in front of each other for what now seems like weeks in a row. I’ve become her mirror. I know the dance moves by heart despite my body being limited to some of them. Meanwhile my hair has grown almost to the length of hers and I begin to enjoy its fluidity accompanying my dancing. I do not feel tired. I cease hearing the lyrics of Depression of Cybernetics reaching through the atmosphere, Luka’s lips stop moving and she’s walking in my direction. Her wide anime-like eyes fix me, smiling seriously as she points to one of the rendered rocks lying on our left. She invites me to sit and sits by my side, her vests continuously changing to combinations I’d never seen her wearing before. We start talking. [4]

 

Alice dos Reis

Galeria da Boavista

Marta Espiridião

Licenciada em Ciências da Arte e do Património pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, fez uma pós-graduação em Estudos de Arte Contemporânea e Curadoria na Faculdade de Letras de Lisboa, e é mestranda em Ciências da Comunicação na FCSH. É curadora independente, tendo em curso diversos projectos, tais como: “cool ain’t cool anymore” ou o Anexo, um programa de exposições anexas a outras exposições. Foi curadora da exposição Acção Doméstico-Feminista ou Estudos sobre Cerâmica Portuguesa, de Rita GT, na Rua das Gaivotas 6, Lisboa (2018); e de Unfriend//Unfollow, exposição colectiva, na Rua das Gaivotas 6, Lisboa (2018).

 

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Imagens: Alice dos Reis, Pálpembrana, vistas da exposição Galeria da Boavista, Lisboa. Fotos: José Frade. Cortesia da artista e Galerias Municipais de Lisboa. Foto de capa: A artista.

Notas:

[1]como definido pela Ohio State University em 

[2]Lambert-Beatty, C. (2009), Make Believe: Parafiction and Plausibility, October [Internet], p.54

[3]idem, p.78

[4]dos Reis, A. (2018), Slimy Filings: On the Sponginess of Cuties, Tese de Mestrado em Belas Artes, Instituto Sandberg, Amesterdão, p.32

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