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A Voz que nos Habita

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Susana Ventura

Talk Tower for Ingrid Jonker é uma obra de Ângela Ferreira datada de 2012, que se encontra, pela primeira vez, exposta em Portugal na Appleton Square. A instalação, dedicada à poetisa Sul-Africana Ingrid Jonker, é composta por uma escultura, um conjunto de desenhos, um conjunto de fotografias e som, que se propaga pelo espaço, elementos habituais nas composições desta artista e que, neste espaço, se encontram, cuidadosamente, distribuídos por duas salas, criando, entre si, dois actos distintos e, não obstante, irredutíveis entre si, se pretendermos questionar e pensar sobre o sentido que podemos doar à nossa passagem (à vida) pelo Mundo.

A obra de Ângela Ferreira é sobejamente conhecida pelos seus contornos políticos, pela inquietação com que trabalha o projecto da modernidade nos países colonizados e respectiva herança, questionando as grandes narrativas e os respectivos efeitos na história colectiva, e, ao mesmo tempo, estimulando o pensamento crítico do observador. As suas obras não são, no entanto, de raiz ou inspiração antropológica, histórica ou documental, embora estes interesses possam revelar-se como prenúncios latentes (esta obra, em específico, traz um dos episódios mais marcantes da história da África do Sul, onde a artista viveu, precisamente, durante parte desse período) que se transformam com a vivência da obra. Através de um acto de habitar a obra, somos confrontados com outras visões e ideias - quase sempre a partir de uma experiência directa, íntima e biográfica - sobre questões para as quais ainda não se obtiveram respostas ou sobres as quais ainda não descansámos a nossa ansiedade.

Nesta obra em particular, esta experiência constrói-se de forma mais intensa num limite, sempre em tensão e sob o recurso ao contraponto como motivo, entre o indivíduo e o colectivo, entre o diálogo solitário de cada um de nós na contemplação poética da Natureza e o desejo utópico de conquista de liberdade de uma sociedade dividida e reprimida, que atravessa o tempo e persiste no presente sob outras formas (sob nacionalismos, fascismos, racismos, entre tantas outras), levando-nos a questionar, precisamente nesse limite, as nossas escolhas enquanto indivíduos e a nossa posição e acção no mundo. Incluindo a escolha mais íntima possível: a da morte voluntária, que não é, no entanto, na escolha da poetisa, uma renúncia à vida, mas um voto político de luta pela vida de todos os outros fora de nós - todas as crianças negras, todos os homens feitos, todos os gigantes (parafraseando o poema de Ingrid Jonker) – e no sentido que Nelson Mandela lhe atribuiu: “In the midst of despair, she celebrated hope. Confronted by death, she asserted the beauty of life. In the dark days when all seemed hopeless in our country, when many refused to hear her resonant voice, she took her own life. To her, and others like her, we owe a debt to life itself. To her and others like her, we owe a commitment to the poor, the oppressed, the wretched and despised.” [Discurso de Nelson Mandela na abertura do primeiro parlamento democrático em 24 de Maio de 1994.]

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A torre assume-se como um instrumento áudio de difusão de poesia, transmitindo o poema declamado por Ingrid Jonker, que esta escrevera após ter tido conhecimento da morte violenta de uma criança nos braços da sua mãe durante os protestos de Março de 1960 em Nyanga contra as políticas do Partido Nacional Sul-Africano, e que Nelson Mandela declamou na primeira sessão do parlamento democrático na África do Sul, a 24 de Maio de 1994.

A poesia é, simultaneamente, uma forma de revolução e celebração da beleza da vida, num equilíbrio quase sufocante na instalação de Ângela Ferreira. A voz de Ingrid Jonker ecoa pelo espaço, a voz que é a presença desencarnada de um corpo, apodera-se do corpo de cada um de nós e habita-nos, como os seres do mar que se apropriam de conchas vazias, libertando, lentamente, o estranho poder da vontade livre, do sim à vida nietzschiano, à medida que se observa o conjunto de desenhos.

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Os desenhos de traços delicados são, na primeira sala, o tal contraponto que se interpõe na contemplação poética e no vislumbre da morte na fotografia da praia onde Ingrid Jonker escolhera morrer, representando, através de uma cadência que se transforma em som inaudível, o acto político da artista e, no plano da obra, as suas referências (que não estão isentas das conotações que lhes são atribuídas e do papel que desempenharam na história e na história da arte). Começando como que num crescendo: a torre singular para Ingrid Jonker que combateu o apartheid com as suas palavras escrevendo em afrikaans e contra o próprio pai, ministro do governo do Partido Nacionalista; a torre em Mouille Point (para onde a escultura de Ângela Ferreira foi inicialmente pensada), onde a poetisa pôs fim à sua vida; a torre do Monumento à Terceira Internacional de Vladimir Tatlin, símbolo da arquitectura construtivista e dos ideais marxistas (que está na origem de outra obra de Ângela Ferreira de 2007 - Monumento a D. Flavin (a uma utopia ideológica para contemplar) - assinalando a continuidade nesta obra, que poderia ser, ao primeiro momento, compreendida, unicamente, pelo potencial poético que liberta); a torre utilizada na construção da barragem do monte Shasta que impressionou Diego Rivera como símbolo do impacto que esta construção deteve para os países do Sul, cujo desenho deste Ângela Ferreira reinterpreta; e, por fim, a torre de rádio de Shukhov, o modelo mais próximo da torre dedicada a Ingrid Jonker, desenhada por Vladimir Shukhov, engenheiro-matemático-arquitecto russo que inventou uma série de estruturas hiperbólicas a partir de formas de geometria não-euclidiana conhecidas como “hipérboles de revolução.” A forma é, neste sentido último, a expressão da revolução, veículo, mais do que suporte, - porque difunde, propaga pelo espaço, contaminando os nossos ouvidos e, com o tempo (será preciso compreender a mensagem do poema na sua repetição, devido à linguagem inacessível a muitos), o nosso corpo - de um conteúdo político, que devemos repensar, mesmo quando contemplamos a beleza do mar.

As fotografias de Mouille Point (realizadas em colaboração com Paul Grendon, fotógrafo-artista Sul-Africano) perfazem o ciclo de um dia, o ciclo da Natureza que assegura a continuidade da vida na sua própria performance: o mar, as ondas, as rochas, a areia, os pássaros sob as subtis variações da luz que tudo faz mudar. A paisagem é a da morte da poetisa que renasce nas palavras que se ouvem da voz de Mandela, ao mesmo tempo que se reconhece esse ponto longínquo e constante nas fotografias, a Ilha Robben, onde este esteve preso 18 anos durante o apartheid e muitos outros foram prisioneiros políticos. Certamente que nos questionamos: pode a morte voluntária – esse acto íntimo - ser um acto político? Ou nas palavras da própria Ingrid (sobre a morte da criança em Nyanga): “I thought what could be reached, what could be gained by death?

Susana Ventura

(Coimbra, 1978) Arquitecta de formação (darq-FCTUC, 2003), contudo prefere dedicar-se à curadoria, à escrita e à investigação, cruzando diferentes áreas do conhecimento. Gosta de pensar sobre arte, arquitectura, fotografia, cinema e dança, e ensaiar, ora em textos, ora em exposições, outras possibilidades de pensamento. (Por isso, também, doutorou-se em Filosofia, na especialidade de Estética, FCSH-UNL, 2013, sob orientação científica de José Gil). Recentemente, foi co-curadora de “Utopia / Distopia”, no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia de Lisboa (MAAT). www.susana-ventura.com

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia 

 

Ângela Ferreira

Appleton Square

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Ângela Ferreira. Talk Tower for Ingrid Jonker. Vistas da exposição. Appleton Square. Foto: Marco Pires. Cortesia de Appleton Square

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Ângela Ferreira. Talk Tower for Ingrid Jonker. Vistas da exposição. Appleton Square. Foto: Marco Pires. Cortesia de Appleton Square

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Ângela Ferreira. Talk Tower for Ingrid Jonker. Vistas da exposição. Appleton Square. Foto: Marco Pires. Cortesia de Appleton Square

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