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Alfredo Jaar e como recuperar o respeito pelas imagens.

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Vítor Belanciano

Já quase ninguém o afirma, mas ele continua a fazê-lo. “Quero mudar o mundo.” O chileno Alfredo Jaar (Santiago do Chile, 1956), o artista daquele país de maior reconhecimento internacional a viver há 35 anos em Nova Iorque, continua a acreditar, apesar de todos os reveses idealistas das últimas décadas, que a arte só faz sentido se tiver esse propósito. “A minha forma de entender o mundo é ser artista. A arte pode originar mudanças e por isso sou artista”, declara.

Também arquitecto e cineasta, foi no universo da arte, com participações nas mais importantes bienais e exposições nas mais relevantes instituições do mundo, que foi encontrar uma forma de comunicar singular. Uma das suas motivações é processar, de forma crítica, o turbilhão de imagens a que somos hoje em dia sujeitos pelos meios de comunicação social. Analisa-as, disseca-as, mostra-nos o que elas têm lá dentro, percebendo-lhes os mais diversos sintomas sociais, culturais ou ideológicos. Num contexto como o actual, onde somos confrontados, a toda a hora, com um número infindável de fotos é como se tentasse resgatar o respeito pelas imagens. É em parte isso que está em evidência em Shadows, a magnífica exposição das Carpintarias de São Lázaro em Lisboa, patente até 3 de Setembro.

Trata-se do segundo trabalho de uma trilogia dedicada a uma única imagem – que não é da sua autoria, mas da qual se apropria. Em The Sound of Silence (2006), primeiro tomo da trilogia, concentrava-se numa imagem do fotógrafo sul-africano Kevin Carter, tirada no Sudão do Sul, que lhe valeu o prémio Pulitzer pouco tempo antes de se suicidar. Shadows, por sua vez, centra-se numa imagem do fotógrafo holandês Koen Wessing, falecido em 2011, tirada em Esteli, Nicarágua, durante os últimos dias do regime de Somoza em 1978.

É uma extraordinária fotografia que capta a dor dilacerante de duas jovens que acabam de saber da morte do seu pai. Um trabalho anterior de Koen Wessing, desta vez em 1973, quando o holandês presenciou o golpe militar de Pinochet em Santiago do Chile, acabou por servir de inspiração à instalação agora presente em Lisboa. Dessa experiência resultaria o pequeno livro Chile Setembro 1973, que mostrava o horror desses dias sem uma única palavra. Em Shadows o dispositivo é semelhante. Trata-se de dar todo o foco à imagem.

O que temos são sete fotografias, envolvidas por um espaço minimalista, de iluminação focada, uma espécie de encenação cuidadosamente criada que dá condições para que o espectador possa imergir lentamente no que vê. Três dessas fotos constituem o antes. Conduzem-nos à principal, a expressão de dor, os gestos dos corpos, sinalizando todas as emoções que uma notícia tão brutal pode provocar em seres humanos. E as restantes sinalizam o depois.

De repente, ali, somos isolados do ruído comunicacional contemporâneo. Somos impelidos a concentrarmo-nos realmente nas imagens. A actividade do fotojornalista é enaltecida. Mas é mais do que isso. Somos confrontados com a força e dignidade das fotografias. Num momento histórico de saturação de imagens, o que conduz quase inevitavelmente a um processo de banalização das mesmas, Alfredo Jaar, depois de analisar e conceber uma ideia do que elas pretendem transmitir, cria dispositivos para que tenhamos espaço e tempo para compreendermos a inteireza de cada uma delas.

Mas ele quer ir mais longe. Na sua visão os seres humanos perderam a capacidade de se comoverem. Há que procurar novas estratégias, sem paternalismos ou instrumentalizações, no sentido de a arte procurar esse ponto instável onde a informação se alia à poesia. Nestas circunstâncias a imagem informa, mas também emociona.

Como em todos os seus projectos, Alfredo Jaar cria modelos de pensamento de como observar o mundo, cumprindo com a sua ideia de comunicar, criando espaço entre os espectadores e a arte contemporânea por meio de trabalhos que questionam os limites da representação. Sempre com uma perspectiva critica investiga acontecimentos políticos ou sociais, e pelo tratamento de imagens e de textos, lança um olhar penetrante sobre o papel dos meios de comunicação. Um dos seus projectos mais conhecidos é uma série referente ao Ruanda, de 1994, território onde esteve nessa ocasião.

Ali morreram um milhão de pessoas, que foram assassinadas ao longo de 100 dias, perante a indiferença do mundo. Para o mostrar juntou uma sequência de 17 capas da revista Newsweek, desde que o genocídio começou até à primeira menção ao mesmo na publicação, e debaixo de cada uma das capas escreveu o que se passou no Ruanda, semana a semana, perante o alheamento geral. Hoje esse trabalho é tão analisado em aulas de jornalismo como de arte contemporânea. E o mesmo modelo haveria de estar presente em Searching for África in Life (1996), quando dissecou 2.500 capas da revista Life publicadas entre 1936 e 1996, para mostrar que nesses anos África esteve sinalizada apenas em 5 dessas capas, sendo representada por animais, como se não existisse mais nada de relevante no continente.

Na grande maioria das suas obras Alfredo Jaar mostra os efeitos tangíveis da realidade económica e política sobre a vida dos indivíduos, enunciando situações de pobreza, exploração ou genocídio. O objectivo acaba por ser transformar a informação sintetizada em instalações ou vídeo-instalações que possam funcionar como formas de pensar a realidade, reflectindo sobre as imagens, porque todas contém uma concepção ideológica da realidade. No fim de contas, tem razão, interessa-lhe mudar o mundo.

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© Celina Brás [revista Contemporânea].

Vítor Belanciano

Jornalista, crítico, cronista, professor, consultor, DJ. Equivocou-se em Direito, passou para Sociologia, formou-se em Antropologia e regressou nos últimos anos à Sociologia. Cresceu no subúrbio, vive no centro de Lisboa, mas gosta é do campo. Está no jornal Público há quase vinte anos na área da cultura, mas apenas porque esta é também política, economia, sociedade, ideias, é reflexão, análise e crítica sobre práticas, é traduzir de forma simples realidades complexas.

o autor escreve de acordo com a antiga ortografia

 

Alfredo Jaar

Carpintarias de São Lázaro

Lisboa, Capital Ibero-Americana de Cultura

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