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Tudo o que é profundo ama a máscara

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José Marmeleira

Tudo o que é profundo ama a máscara, exposição comissariada por Ana Cristina Cachola na Galeria 3+1, em Lisboa, amplia a ressonância pública das obras de dois artistas cujos currículos autorizam o espectador a evocar a palavra “jovens”. António Neves Nobre (nascido em 1993) e Rita Ferreira (nascida em 1991), licenciados em Pintura, são de facto artistas com percursos construídos nesta década, mais precisamente nos últimos cinco anos. O primeiro participou em várias exposições colectivas, tendo realizado em 2016 uma exposição individual, Testemunhas, na Travessa da Amorosa, em Lisboa. Já Rita Ferreira venceu no ano passado a Bolsa Jovens Criadores do Centro Nacional da Cultura e realizou a sua primeira exposição individual este ano na Galeria Diferença.

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Tudo o que é profundo ama a máscara, (detalhe de vista de instalação). Foto: Francisco Ferreira. Imagem cortesia dos artistas e 3+1 Arte Contemporânea,Lisboa.

Consagram ambos um sentido genuíno à expressão “iniciar” e as suas obras, pelas superfícies pictóricas que as constituem, pelos modos de experiência que proporcionam aos espectadores, pelo modo como envolvem o sujeito que quer ver e olhar, pelas relações que entre si suscitam, apresentam-se e cumprem-se como promessas. É de pintura que as obras expostas partem e, sobretudo, do interior da interrogação a que a disciplina continua a ser objecto. As pinturas de António Neves Nobre não são (apenas) pinturas, podem ser designadas como ecrãs, instalações, objectos, atmosferas, esculturas, têm uma ou duas faces, repousam no chão ou na parede. Desdobram-se em vários formatos, sob diferentes modos de fazer, organizam, de modos distintos, a nossa percepção.

Em Tudo o que é profundo ama a máscara manifesta-se uma tensão entre a representação das coisas e a transfiguração operada pelos conceitos e processos que guiam as mãos dos artistas. Nos tracejados, nas linhas, nas sombras, o espectador perscrutará formas, referências que o reconduzam à realidade natural ou cultural. Pode imaginar a representação de paisagens, objectos, superfícies, elementos geológicos, palavras. Mas, no fim, é a realidade da pintura aquilo que a exposição afirma.

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Rita Ferreira, Queria morrer anonimamente no deserto, 2017, óleo sobre papel e estrutura de latão (7x) 54 x 40 x 15 cm (Poliptico) Tudo o que é profundo ama a máscara, (detalhe de vista de instalação) Foto: Francisco Ferreira. Imagem cortesia dos artistas e 3+1 Arte Contemporânea, Lisboa.

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António Neves Nobre, (de esquerda á direita) Sem título, 2017, óleo sobre tecido 220 x 267 x 135 cm; Sem título, 2017, óleo sobre tela, 60 x 40 cm e Sem título, 2017, óleo sobre tela, 60x 40 cm. Tudo o que é profundo ama a máscara, (detalhe de vista de instalação). Foto: Francisco Ferreira. Imagem cortesia dos artistas e 3+1 Arte Contemporânea,Lisboa.

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Rita Ferreira, Anel |Joelheira (esquerda) e Leite de Cabra | Pétala (direita), 2017. Óleo sobre papel e estrutura de latão 215 x 181 x 36 cm (cada). Tudo o que é profundo ama a máscara, (detalhe de vista de instalação). Foto: Francisco Ferreira. Imagem cortesia dA artistas e 3+1 Arte Contemporânea,Lisboa.

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António Neves Nobre, (de esquerda á direita) Sem título, 2017, óleo sobre tecido 220 x 180; Sem título, 2017, óleo sobre tela, 220 x 180 cm. Tudo o que é profundo ama a máscara, (detalhe de vista de instalação). Foto: Francisco Ferreira. Imagem cortesia dos artistas e 3+1 Arte Contemporânea,Lisboa.

Os trabalhos de Rita Ferreira, feitos sobre papel, solicitam um movimento à volta das imagens, a maioria das quais se encontra suspensas em estruturas de latão, com escalas distintas, que funcionam como pequenos separadores ou divisórias. Os de menores dimensões “Fino” e “Foguete” sugerem uma fragilidade, uma presença diáfana que o efeito da luz sobre as cores vem acentuar. Os nomes das pinturas “Fino” e Foguete” “Anel/Joelheira” e “Leite de Cabra/Pétala" induzem o visitante a criar imagens mentais, mas é o encontro com as condições de possibilidade da pintura, com a sua materialidade que Rita Ferreira proporciona. Nas outras pinturas, sopram o humor, a representação, o desenho, a sugestão de uma relação entre a escrita e as imagens, a presença de elementos que moderam ou contrariam o monocromatismo. Ou, em “Pétala”, a possibilidade de uma pintura dentro de uma pintura. Este é o trabalho mais forte de Rita Ferreira, aquele em que pintura se faz abertura, passagem, a uma escala humana, física, epidérmica, sobre a superfície.

Assente na adição e na subtração de camadas, na ocultação e na revelação, a pintura de António Neves Nobre mostra-se com uma visceralidade que tanto se aquieta (nas telas de menores dimensões), como sai para lá dos limites da tela (no trabalho em que a pintura rompe com a sua autonomia, os seus limites, estendendo-se ao exterior). A relação entre a forma e o fundo aponta para a possibilidade de representar algo (veios, curvas, formas orgânicas, paisagens, pontos de vista sobre lugares) e o olhar percorre as marcas, as manchas, os contornos. E, no entanto, o que ressalta é a impossibilidade de uma percepção em termos figurativos. As imagens são reveladas e obscurecidas, descobertas e ofuscadas, vibram nessa dialéctica sob o efeito que a luz produz nas modulações cromáticas das cores. A pintura de António Neves Nobre afirma-se como acontecimento na experiência do espectador, acontecimento em constante devir, sem se fixar na representação ou na reificação das coisas que confere objectividade à realidade. E, embora feita sobre tela e tecido, conserva e comunica uma certa intangibilidade. Hesita, delicada e discretamente, entre uma (a sua) autonomia (pictórica) e a expansão concreta, material sobre a realidade mundana. É pintura numa tela e tecido sobre o chão da galeria.

Distintos, os processos de trabalho e as obras de Rita Ferreira e António Neves Nobre conduzem o espectador para um território que lhes é comum, que partilham. Aquele constituído por uma interrogação da natureza e da condição da pintura, da percepção das suas imagens, da relação que ela ainda mantém com a realidade e a representação. Mas não o fazem como uma prescrição, no quadro de um programa, e sim no domínio de uma exploração, de uma indagação livre, espontânea, em que as formas, a luz, as cores, os materiais participam. Essa é a grande promessa que a exposição nos deixa e acompanhar o rumo dessa exploração é a promessa que as obras merecem.

José Marmeleira

Jornalista e crítico nas áreas da música pop e da arte contemporânea. Colabora no jornal Público e na revista Time Out Lisboa. Lecciona Fundamentos do Jornalismo na Universidade Europeia e está a realizar o doutoramento em Sociologia no Instituto de Ciências Sociais (ICS-UNL).

 

o autor escreve de acordo com a antiga ortografia

 

António Neves Nobre

Rita Ferreira

3+1 Arte Contemporânea

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