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THEM OR US! Um Projecto de Ficção Científica, Social e Política

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Sara Castelo Branco

“(…) jusques ici j’ai décrit cette terre, et généralement tout le monde visible, comme si c’étoit seulement une machine en laquelle il n’y eût rien du tout à considérer que les figures et les mouvements de ses parties.“

René Descartes, Les Principes de la Philosophie (1644)

 

Na natureza, conforme na técnica, o todo desponta usualmente da soma das partes. Manifestando-se por via da emergência, a adição das partes determina a integridade do todo, tecendo assim o que se pode denominar por ‘sistemas complexos’. É justamente a partir da filiação simbólica a este processo sinergético e a uma igual concepção morfogenética – isto é, do “desenvolvimento da forma”, do conjunto de leis que presidem a um processo sistémico de composição orgânica e molecular de um corpo, que é possível perspectivar a proposição curatorial ideada por Paulo Mendes para a exposição Them or Us!, que – talvez como que se inscrevendo no funcionamento destes processos internos –, procura propor uma espécie de experiência total: não no sentido da dissolução elementar no todo, mas antes na concepção de um devir colectivo. Trata-se, assim, de um conjunto de unidades que, interagindo e se induzindo entre si, expõem atributos colectivos, embora conservando as articulações e dicotomias que as distinguem no todo e fora dele – constituindo, portanto, não apenas o todo como todo, mas igualmente as partes enquanto partes. Desta forma, acolhendo diferentes fluxos de continuidade, ruptura, irregularidade, deslocamento e transformação, este devir colectivo ideado em Them or Us! circunscreve uma espécie de projecção estrábica da contemporaneidade – onde partindo de um mesmo ponto orientam-se diferentes eixos de visão, simultaneamente, retrospectivos e prospectivos.

Sob o comissariado do artista e curador Paulo Mendes, a exposição Them or Us!, na Galeria Municipal do Porto, apresenta mais de noventa autores nacionais e estrangeiros de diferentes áreas, que actuam aqui num “exercício colectivo de ficção científica, social e política”, utilizando como ignição o aparato conceptual relativo à ideia de "invasor" nas suas possíveis formulações. Them or Us! interpela, assim, parâmetros da ciência, da arquitectura, da política, da sociedade, da cultura, do arquivo/documento e da ficção científica, sendo precisamente nas particularidades desta última que a exposição parece singularmente desenvolver-se, ao aproximar-se de questões inerentes a este género sobretudo literário-cinematográfico (e à própria cultura contemporânea), como uma actuação sobre paradoxos temporais e espaciais; a ideia de fim do mundo; a comunicação com outras formas de vida; as múltiplas desconstruções entre o natural e o artificial, o humano e o não-humano, o real e o virtual; as transformações do político; a imaginação de civilizações futuras e alienígenas; a colonização, ou a invasão, em relação ao encontro com o outro; ou, finalmente, os exercícios do desastre, do apocalipse, da utopia e da distopia.

Realizando-se simultaneamente enquanto impulso retrospectivo (que olha para trás) e ímpeto propectivo (que faz ver adiante), a frase de Alexander Sokurov que dá mote à exposição – “Em História, falamos do que aconteceu. Na arte, falamos do que poderia ter acontecido” – convoca, justamente, uma proposição de cariz atemporal ligada à possibilidade da arte como algo dedutivo, postulado, que usa a contingência como alternativa. Por outro lado, Mendes procurou trabalhar sobre uma certa ideia retro-projectiva: obras cuja conduta crítica e imaginativa trata questões do passado ou do presente que se projectam para o futuro, transferindo assim fenómenos da contemporaneidade para outros espaços e temporalidades, a partir de um porvir especulativo e hipotético, num processo que por vezes ultrapassa a previsão para se determinar na descrição. Neste sentido, esta imaginação para o futuro reconfigurada pela mundividência contemporânea revê-se nas relações entre a arte, a História e a ficção científica, que partilham uma mesma vontade de entender o tempo (passado ou futuro), deslocando-se no campo das hipóteses (do que poderá ter sido ou do que poderá ser). A ficção científica – tal como a arte – corrói dicotomias e promulga temores, ânsias tecnológicas e tensões ideológicas e sociais, concretizando-se como espaço de recursos idealizados que, em si mesmos, contêm potência transformativa. Neste sentido, estes paradoxos temporais encontram fundamento numa das suas peças mais paradigmáticas da exposição, a obra Sem Título (1996-2017) de Fernando Brito, composta por cem espelhos que ocupam integralmente uma das paredes da galeria, criando um lugar ilimitado e caleidoscópio de continuidade, e, consentindo com um controlo constante sobre todo o espaço e a presença performativa do visitante. Esta obra inscreve portanto esse tempo simultâneo de cruzamento entre o passado e o futuro do espelho retrovisor, símbolo da reversibilidade, onde olhar para a frente é ver para trás. Desta forma, Them or Us! aporta, igualmente, nessa combinação de heterotopia e utopia que define o espelho, objecto de oposição entre o objecto e a imagem, que é simultaneamente utópico, por ser um lugar sem lugar, mas também heterotópico (no conceito foucaultiano), uma vez que une a realidade à não-realidade.

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Vista geral da exposição THEM OR US!, Galeria Municipal do Porto. Paulo Mendes Archive Studio / Rui Pinheiro.

II

“Ao modificar a ordem, fazemos com que as imagens tomem uma posição.”

Georges Didi-Huberman, Atlas – Como Levar o Mundo às Costas? (2011)

 

“Há tempos de crise em que só a utopia é realista.”

George Steiner, Condições Escolares (2008)

 

Partindo de uma apropriação do espaço, a exposição Them or Us! transformou a Galeria Municipal do Porto num lugar transfigurado, labiríntico e quase indentificável, invertendo para isso uma das suas principais características: a habitual primeira visão integral sobre o piso térreo do espaço vê-se agora fragmentada, onde mesmo o acesso entre os dois pisos surge deslocado e transformado, sendo substituído por uma estrutura vertical de andaimes aparentemente vulneráveis, processivos e pendentes, a obra Beauty Knows No Pain (2017) de Nuno Pimenta, que cria diferentes níveis de visão sobre a exposição, assomando enquanto espécie de torre de vigia esventrada que rompe o tecto, e anui assim com a mesma condição disruptiva de Them or Us! ao transportar-nos para um possível outro lado não visível. O curador pretendeu transformar a galeria numa espécie de bunker, escurecendo-a e isolando-a claustrofobicamente do mundo exterior, através da pintura dos seus vidros que bloqueiam o espaço de fora para dentro, e, remetem identicamente para um “conflito latente”, que é também visível no material do exército distribuído pelo espaço. Por outro lado, esta relação de carácter espacialmente inesperável consente com uma tentativa constante de tirar o tapete ao espectador, dispondo-o numa experiência desconcertante e imprevisível, que é perceptível logo nas duas antecâmaras negras que iniciam a exposição. Se a primeira blackbox apresenta uma obra que nos devolve um olhar, o vídeo Sem Título (2016-2017) de Renato Ferrão, que mostra a incidência de reflexos lumínicos e intermitentes sobre várias faces que olham para algo que não vemos, sendo aqui também representativo de uma certa ideia simbólica de recepção das obras e da exposição; já, a blackbox seguinte, congestiona o acesso do visitante ao restante percurso através de Lodo (2017) de Fernando Brízio, onde a colocação de cola no chão da sala desconfortabiliza a saída desta, criando portanto uma espécie de resistência à própria entrada na exposição. Esta relação irónica com o visitante vai sendo assim construída ao longo da exposição – como na obra de Fernando J. Ribeiro, Untitled (Thank You) (2017), onde objectos que aparentam ser placas de reserva de restaurantes realizam um comentário irónico à visita do espectador –, instaurando, portanto, um percurso de disrupções, passagens e hesitações, compreensíveis identicamente nos elementos não estandardizados que vão habitando a galeria, como cacifos que segmentam parte do espaço expositivo (objectos de protecção e esconderijo individual, mas que aqui encontram-se abertos, sendo também suportes para obras), ou, outros displays não convencionais, onde a caixa de transporte de uma obra pode servir de sustentáculo a uma outra – permitindo assim descobrir novas possibilidades, afinidades e caminhos de reflexão para os objectos.

Volvendo ao conceito da heterotopia, é possível também interpelá-lo em Them or Us! para além da sua definição foucaultiana, abordando antes a sua significação médica, ou seja, a da localização ou deslocamento anormal de um órgão ou tecido – algo que se identifica com a possível “alteração da ordem das coisas” de Didi-Huberman, uma condição manifesta na passagem aurática benjaminiana da obra para dentro do museu, mas, aqui, sobretudo, na transformação pelo deslocamento e reintegração de objectos usualmente ausentes da prática artística, retirando-lhes os seus discursos habituais e dando-lhes outras perspectivas. É em face desta alteração da ordem das coisas, e da relação desconcertante e amotinada com o espectador, que se pode convocar diversos trabalhos nesta exposição, como a obra À Procura da Utopia (Estado Actual) (2014-2015) de Rodrigo Oliveira que, aparentando-se num primeiro olhar a um mapa de urgência do espaço, vê as suas directrizes desfuncionalizadas, inscrevendo assim uma busca pela utopia ironicamente sem desenlace possível; a viga metálica de vidro Beam (2011) de Christian Andersson, que dá a ver sintomaticamente a sua frágil interioridade por uma falha no objecto; ou, então a obra ¿Con Cuántas Piedras Se Hace una Balsa? (2012), também de Rodrigo Oliveira, uma instalação composta por quatro boias de cimento espalhadas pela galeria que, numa possível leitura política das travessias marítimas dos refugiados, contrariam a sua função intrínseca ao estarem materialmente prontas a afundar. Este trabalho a partir de uma desorientação do espectador é similarmente explorado de outra forma por via da fotografia, como nas imagens da série fotográfica White Noise (2011) de António Júlio Duarte, que embora fotografadas em casinos de Macau, aparecem com uma quase localização indefinível, que advém de uma certa estranheza espacial da cor, do brilho e do flash, numa abstracção que advém da ostentação e alucinação decorativa, criando um forte estado de sonho sem nexo de realidade, tempo ou espaço.

Para Giorgio Agamben, a fractura original da manifestação de uma presença cumpre-se num concomitante ocultar-se: “é este co-pertencimento originário da presença e da ausência, do aparecer e do esconder, que os gregos expressavam na intuição da verdade como desvelamento, e é sobre a experiência dessa fractura que se baseia o discurso que nós ainda chamamos com o nome grego de ‘amor à sabedoria’.” A partir da apropriação desta asserção de Agamben, é viável a um nível especulativo, interpelar em Them or Us! o conceito de retrato – concepção que compõe um dos segmentos da exposição, presente na primeira área visível após a saída das duas câmaras negras –, onde existem duas séries fotográficas que exprimem formas distintas de omitir e revelar a imagem. Disposto na parede em frente aos restantes retratos, o tríptico Kiev 88 (2003) de Christopher Williams, apresenta três visões distintas sobre uma mesma máquina fotográfica, a Kiev 88, uma réplica soviética da famosa Hasselblad, pertencente à iconografia cultural da Guerra Fria, convocando assim um objecto que, invertendo-se para o lugar da representação, aufere uma magnética atracção de ordem morfológica. A ideia de cópia (seja pela dimensão iconológica da reprodução imagética inerente à câmara fotográfica, ou, mesmo pela deliberação original da criação da máquina) concilia-se aqui na convocação contingencial da fotografia tornada invisível enquanto medium, aludindo a uma reflexão sobre a concretização da materialidade fotográfica e uma presentação da fotografia como que dobrada sobre si mesma. Já, as imagens que iniciam e finalizam a parede onde se encontram a maioria dos retratos pertencem à série Ocultações (2008) de Jorge Molder, sendo os únicos auto-retratos presentes neste segmento, embora realizando-se pelo alinho da negação, através de um exercício de ocultação, concretizado entre os olhos e as mãos. Entre o ver e o ocultar, o mostrar e o fingir, as fotografias em que Molder usa o seu rosto deixam de ser auto-retratos para se tornarem personagens que, de acordo com o artista, não coincidem completamente consigo mesmo, sendo assim coexistências de um outro no seu corpo, que persistem nas formas da duplicidade e da alteridade. Trata-se, portanto, da possibilidade de divergir, e, identicamente, de uma ideia de projecção do outro em mim, que se propala igualmente no modo verbal pronominal do verbo retratar: a circunstância simultânea de retratar o outro, mas, também, a auto-representação, um reflectir-se, espelhar-se, revelar-se a si mesmo no prolongamento com o outro, e, nas formas volúteis de relacionamento com o mundo.

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Vista geral da exposição THEM OR US!, Galeria Municipal do Porto. Paulo Mendes Archive Studio / Rui Pinheiro.

A vinculação dos objectos a outras possibilidades e alternativas distantes do seu alinhamento normativo, daquilo que lhes é constante, contínuo e persistente, é uma característica frequente nos projectos que Paulo Mendes tem vindo a desenvolver, onde tem trabalhado usualmente a partir de materiais pertencentes à própria estrutura com a qual está a colaborar, neste caso os depósitos da Câmara Municipal do Porto, unindo assim obras criadas por artistas a materiais de repositório, e, a outros elementos apropriados. Estes últimos tratam-se geralmente de objectos em desuso, votados a um processo de redução gradativa e consequente desaparecimento face à sua obsolescência. Neste sentido, em Them or Us!, as obras dos artistas são interpostas com peças de outros contextos, como material informático antigo do Museu da FEUP, objectos do Museu Anatómico do ICBAS ou as peças artesanais da Rosa Ramalho, que comungam também com trabalhos criados por arquitectos e foto-jornalistas, bem como obras de arte contemporânea pertencentes a colecções privadas e públicas (cuja relação equalizada entre os objectos desconstrói a própria concepção mais mercantil inerente à colecção de arte). Desta forma, o subtítulo da exposição, uma “ficção científica, política e social” relaciona-se, identicamente, com este dispositivo cénico criado por Mendes, associando obras de arte, a livros, a objectos científicos ou a material militar – de onde se destaca mobiliário de campanha como uma grande tenda militar que serve de abrigo à projecção de uma série de filmes de artistas como Axel Stockburger, Francisco Queirós ou Miguel Soares – , através de uma acção de nivelamento que os coloca sob o mesmo plano, desmantelando ou invertendo a fronteira entre arte e realidade. Embora os materiais estejam variadamente disseminados pelo espaço da galeria, há na exposição uma área particular que se distingue neste contexto pela comparência de várias vitrines que agregam em si diferentes narrativas: seja um comentário à realidade política contemporânea a partir de material informativo recente combinado com armas do exercito português, e, sintomaticamente, com um livro sobre o imaginário das seitas americanas, The Hidden World (2014) de Jim Shaw; três versões distintas de Tintim no Congo (1931), talvez a obra mais polémica de Hergé, que apresentam perspectivas distintas do colonizador e do colonizado, sendo colocadas aqui juntamente com o livro Impressions d’Afrique (2010) de Raymond Roussel, o que convoca o pensamento ocidental modernista sobre África; ou, a irónica disposição em vitrines de obras como MAKEREVOLUTION* The Disobedience Collection (2005) – ‘Cocktail Molotov Deluxe Kit’ de António Caramelo, onde aparecem desagregados os vários elementos que geram um cocktail molotov, desfuncionalizando-o não apenas pela fragmentação dos seus componentes, mas também pelo seu próprio processo de museologização. Neste sentido, um dos livros mais sintomáticos que integra uma das vitrines é a obra de ficção científica Fahrenheit 451 (1953) de Ray Bradbury, que convoca justamente a relação entre a arma e o livro pela medida de perigosidade comum entre a disseminação das ideias pelos livros e o uso de armamento. É, precisamente, a frase que despoleta a insurreição do incendiário dissidente da obra de Bradbury que forma uma das asserções da instalação Poem To Extinguish (2017) de Hugo de Almeida Pinho, que utiliza um extintor para dar visibilidade a uma série de frases inscritas de forma transparente nas paredes, fazendo com que a anulação-apagamento do extintor dê lugar ao nascimento-aparição da imagem oculta. Relacionando-se com o lado mais inflamável da exposição, onde as frases manifestam igualmente convocações enviesadas do fogo, esta obra foi activada através de um happening fugaz realizado durante a inauguração, onde ocorreram outras acções como um concerto dos !Von Calhau! ou uma performance duracional de Erwin Wurm, entre outros.

Numa diferente segmentação do espaço emerge um outro discurso particular em Them or Us! que se inicia com uma versão binária da Declaração Universal dos Direitos Humanos em Universal Declaration of Human Rights and an Image of Beauty Converted Into Binary Code (2014) de João Onofre, onde a congénita subjectividade universal do código, neste caso do sistema binário utilizado em máquinas de circuitos digitais, origina aqui um crítico processo de abstracção, sintomaticamente enfatizado pela obra-armadilha de Not Funny (2012) de Luís Paulo Costa, uma casca de banana colocada no chão como uma emboscada, anunciando assim a futura queda que acontecerá posteriormente num conjunto de trabalhos posteriores, e que se relaciona com o enunciado que congrega o conjunto de trabalhos deste segmento: a Europa e o Ocidente, as suas crises políticas, económicas, culturais e sociais. É, portanto, neste contexto que surge o tema da desaparição e da memória de Christian Boltanski; a questão monetária da UE por Antoni Muntadas; a imagem fronteiriça, real ou ficcionada, da antiga RDA de Filipa César; o cruzamento irónico do imaginário da fronteira norte-americana de Jonathan Monk; ou, a ironia de Ignasi Abali. Desta forma, e anuindo com as diversas rupturas e quedas que vão acontecendo ao longo da exposição, também esta parede abre uma fenda em si por via da forma do buraco: cuja representação revela-se na imagem pertencente à série com a denominação sintomática O Princípio da Acção Explosão; O Conhecimento é Explosivo; Implosão (2015) de André Alves, obra que transpõe parte da peça de Stefan Bruggemann, um papel de parede denominado Conceptual Decoration (2009) – onde se desenvolve um jogo verbal entre o significado e a representação que dispõe o visual e o mental numa espécie de crise tautológica e abismal –, que é utilizado, igualmente, como fundo para uma pintura de Bruggemann, Wipe Out Sound / Obliterated Work / Wipe Out Image (2008), que representa novamente a ideia de queda.

Convocando noções de deslocamento, dispersão e invasão, Them or Us! trabalha sobre uma ideia de fora de lugar, que desponta aqui quer pela transformação e desvio de objectos não estandardizados para o interior da galeria, como pela questão invasiva, que implica a ausência de um elemento do seu lugar de origem para um outro. Esta questão projecta-se, precisamente, na concepção dicotómica entre o Eles e o Nós que denomina a exposição, onde a interjeição do titulo enfatiza essa circunstância obrigatoriamente optativa do ‘ou’ que liga os dois pronomes pessoais, mas cujo carácter abstracto e anónimo (quem na verdade são o eles e o nós?), remete analogamente à outra significação do ‘ou’ – já não no sentido da alternativa, mas no da equivalência. Ou seja, trata-se também de perspectivar como o medo da invasão do refugiado ou do turista conflui muitas vezes numa projecção do eu sobre o outro, sobretudo, quando se levantam novos muros e a crise económica reforça a instabilidade social e a intolerância com identidades “exteriores” à Europa democrática. Desta forma, se a fronteira é um espaço intermediário e de transição espacial e sociológica, Them or Us! convoca-a numa perspectiva múltipla e complexa, em que mais do que a entender de forma recta, circunscreve-a entre o avesso e o direito. Neste contexto, podemos convocar diversas obras na exposição, como a instalação fotográfica From One Place to Another (2017) de Hugo de Almeida Pinho, composta por um conjunto de imagens dispersas pela galeria que se manifestam numa forma dúplice, encerrando simultânea e fantasmagoricamente dois lugares e tempos distintos numa mesma imagem. Estas imagens apresentam um movimento implícito, referindo-se internamente a uma série de moções relativas à invasão (turística, biológica ou política), bem como um movimento explícito, de imagens fixas que se movem dependendo do movimento do espectador; numa perspectiva da invasão, surge o conhecido filme Neighbours (1952) de Norman McLaren, uma parábola inspirada na Guerra da Coreia, sobre dois vizinhos que embarcam num conflito crescente por causa de uma flor que fronteia as suas propriedades, recriando assim uma série de sequências satíricas que levam a um final irresoluto e destrutivo; mas, também, e encarando a invasão numa outra perspectiva, o filme de Tiago Alexandre, Rich Kids From Sacavém (2015), que parece remeter ironicamente para o universo da cultura anglo-saxónica, embora feita à portuguesa, convocando talvez a invasão pelo prisma da importação de estilos e formas de estar; e, ainda um entendimento da invasão através do espaço, pela presença de inúmeros lugares que, embora relativamente reconhecíveis, despontam revestidos de uma cobertura de estranheza, como as fotografias de Rogério Ribeiro ou Tito Mouraz, ou, a série fotográfica Untitled (2015) de Rui Manuel Vieira sobre um espaço comercial do Porto que, já não sendo usado na sua função inicial, funciona agora através de uma outra ocupação distinta.

Numa possível aproximação ao próprio contexto da arte, a utopia posiciona-se como alternativa em relação a um universo de referência, sendo construída por paralelo a algo: é uma relação directa ou invertida do espaço real, mas, sobretudo, advém pela veia do contraste, do paradoxo e da antinomia. Neste sentido, e partindo da comunhão entre tensões utópicas e distópica, Hans Belting sugere que a tecnologia desponta como o lugar utópico da contemporaneidade devido à sua potência transformativa – independentemente das tecnofilias ou tecnofobias, a tecnologia serve também de intermediária entre o humano e o que lhe é estranho, entre espaços reais e imaginários. Neste contexto, é possível citar na exposição as projecções Sem Título (2017) de Renato Ferrão, que representam uma espécie de segunda vida das coisas, projectando espectralmente, a partir de pequenos dispositivos escultóricos, imagens de máquinas de reprodução de imagem, de onde emanam reflexos fantasmagóricos: trata-se de um virar-se sobre si mesmo, convocando a condição intrínseca de duplicação da imagem destas máquinas, bem como uma tensão sobre a materialidade da máquina e a fantasmagoria da imagem, a estaticidade e o movimento. Num paralelismo entre o digital, o tecnológico e o analógico, esta obra de Ferrão convoca igualmente a questão da obsolescência, um conceito perceptível noutras obras da exposição, como a série Photoshop Gradient Demonstrations de Cory Arcangel, que parte igualmente de uma interpelação irónica à reprodução contemporânea imagética com Photoshop CS: 84 by 66 inches. 300 DPI, RGB, square pixels, default gradient ‘Blue, Red Yellow’, mousedown y=7600 x=8600, mouseup y=7850 x=8600 (2011), cuja imagem abstracta criada a partir do Photoshop foi denominada com as instruções do seu próprio processo de concepção, permitindo portanto a recriação da mesma imagem. As obras de Arcangel desafiam as ideias preconcebidas do espectador em relação à hierarquia do estatuto da arte, através de trabalhos que convocam os cânones da História da Arte, numa época de regeneração tecnológica perpétua, oscilando assim numa reflexão sobre a crescente acessibilidade ao consumo das tecnologias e a habitual natureza inacessível da arte contemporânea.

Por outro lado, partindo da relação de proximidade semântica entre as noções de utopia e exílio, a viagem é um tema igualmente central em Them or Us!, convocando um dos impulsos humanos básicos que é o da expansão do Homem para além dos limites físicos: seja pela conquista do céu em direcção às estrelas e às galáxias, perceptível nas obras de Miguel Palma, Orange Skin and Cases (2012) e Desert Shuttle (2012); pela viagem do refugiado que se manifesta aqui não pela representação directa da travessia em si, mas sintomaticamente através dos seus resquícios, como as boias de Rodrigo Oliveira ou os casacos de Estelita Mendonça; ou, a presença da migração como escapismo entre o exílio e a utopia do filme Verão Eterno (2012) de André Trindade e Filipa Cordeiro, que narra uma história inspirada pela recente migração europeia para o Brasil referindo simultaneamente a ideia de viagem para o paraíso. Num outro sentido, a exposição trata também das utopias modernistas da arquitectura aludindo aos discursos, modelos e conceitos agregados ao Modernismo da sociedade contemporânea, através de peças como Discrepancies With Lima #6 (2015) de Leonor Antunes, Estudo para Casa de Morcego (2016) de Ângela Ferreira ou Plataforma #1 (Modelo para uma Catedral) (2015-2016) de Rodrigo Oliveira, que convoca aqui especificamente a arquitectura de Brasília, através de uma escultura-maquete da sua catedral projectada por Óscar Niemeyer, trabalhado portanto sobre uma cidade que formou-se num processo de fundação extremamente simbólico.

Um dos percursos possíveis de Them or Us! termina com duas obras que remetem a universos simultaneamente distantes e próximos: a vídeo-instalação Initio Foedere Pollicitus Transatlanticum (2017) de Hugo de Almeida Pinho associa o acordo económico transatlântico entre os EUA e a EU à filmagem da espécie de tartaruga mais invasora da Europa devido a uma excessiva exportação da Flórida, sendo que este animal quase imutável desde a época primitiva vai assim reflectir-se nas fotografias cósmicas de Rui Toscano, Journey Beyond the Stars Logbook P.10 (2015) e Pequena Nebulosa #4 (2015) – que se encontram justamente à sua frente –, convocando assim no final da exposição essa dicotomia entre a escala universal e a escala terrestre, o micro e o macro, o tempo atmosférico e o tempo terráqueo, que conflui sobretudo numa espécie de regresso à origem, ao lugar incomensurável e limiar dos primórdios de tudo. Neste sentido, esta tematização de uma invisibilidade entre o familiar e o estranho parece ser um dos fundamentos curatoriais que Paulo Mendes desenvolveu para esta exposição, onde as fronteiras parecem revelar-se no próprio movimento da sua transgressão: se a fronteira é sempre um entre dois, um ponto de fuga ou fluxo, é precisamente nesta dimensão intersticial que se forma Them or Us!, compondo uma acção de perspectiva múltipla que se reconhece na complexidade do real.

Sara Castelo Branco

Doutoranda em Ciências da Comunicação/Arts et Sciences de L’Art na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - UNL e na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Mestre em Estudos Artísticos – Teoria e Crítica da Arte pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP) e licenciada em Ciências da Comunicação e da Cultura (ULP). Na área da crítica e da investigação sobre as áreas do cinema e da arte contemporânea, tem colaborado regularmente com textos para revistas, catálogos e outras publicações de âmbito académico e artístico.

 

a autora escreve de acordo com a antiga ortografia

 

Galeria Municipal do Porto (Jardins do Palácio de Cristal, Porto)

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Vista geral da exposição THEM OR US!, Galeria Municipal do Porto. Paulo Mendes Archive Studio / Rui Pinheiro.

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Vista geral da exposição THEM OR US!, Galeria Municipal do Porto. Paulo Mendes Archive Studio / Rui Pinheiro.

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Vista geral da exposição THEM OR US!, Galeria Municipal do Porto. Paulo Mendes Archive Studio / Rui Pinheiro.

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Vista geral da exposição THEM OR US!, Galeria Municipal do Porto. Paulo Mendes Archive Studio / Rui Pinheiro.

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Vista geral da exposição THEM OR US!, Galeria Municipal do Porto. Paulo Mendes Archive Studio / Rui Pinheiro.

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Vista geral da exposição THEM OR US!, Galeria Municipal do Porto. Paulo Mendes Archive Studio / Rui Pinheiro.

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Vista geral da exposição THEM OR US!, Galeria Municipal do Porto. Paulo Mendes Archive Studio / Rui Pinheiro.

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