Curated Curators I, II, III
Parece que, hoje em dia, todos querem ser curadores e que se pode fazer curadoria de tudo. Aqui há uns anos atrás apareceu no The New Yorker uma vinheta com um homem e uma mulher a conversarem numa festa, com ele a dizer: “I curate children’s parties”.
Mas o que é que um curador faz exactamente? E, no fundo, os curadores não nutrem ambições secretas de ser artistas?
Assim, quando Sara & André fazem a curadoria de um ciclo de três exposições intitulado Curated Curators espera-se que esta dupla de artistas acrescente ao cepticismo sobre o papel do curador o seu tom irónico habitual que por vezes pode irritar e até ofender.
E assim foi, pelo menos inicialmente. A primeira exposição, Curated Curators (I) juntou curadores que tinham formação em artes plásticas, e que tinham tido ou continuam a ter uma prática artística, pedindo-lhes que mostrassem uma obra por si produzida. Na folha de sala Sara & André declararam que esperavam tornar estes artistas “tímidos, cansados ou mesmo falhados” em “artistas de culto”. Quem já tinha dúvidas sobre os curadores terá pensado: “Ai está! Os curadores são artistas falhados!”
Mas não é assim tão simples, claro. Alguns curadores são artistas de sucesso, havia umas peças bonitas nesta exposição e começou-se a vislumbrar o íntimo destas figuras, algumas incontornáveis, do mundo da arte contemporânea portuguesa.
A segunda exposição, Curated Curators (II), começava a contar outra história.
Sara & André contam que quando começaram a pensar sobre quem queriam expor, entre curadores de exposições marcantes dos últimos tempos, curadores estabelecidos e outros em início de carreira, chegaram a 90 nomes, os quais se dividiam em três categorias distintas: os, já vistos, que se tinham licenciado em artes plásticas, os da história ou da história de arte, e os que tinham estudado outras coisas, ex. filosofia, letras, arquitectura, sociologia, comunicação, direito.
A segunda exposição era sobre estes outros, aos quais pediram para partilhar uma obra que tivesse nascido de um diálogo entre artista e curador, ou na qual o curador de alguma forma tivesse intervindo.
Talvez os cépticos da curadoria terão começado a admitir que afinal os curadores servem para alguma coisa.
E de um discurso de ego - nem que seja ferido - passou-se a falar em diálogo.
Ou talvez ainda mais amplamente do que isso. Passou-se a falar de um mundo, que tem a má fama de ser de egos, de trabalho solitário, de concorrências, mas que também pode ser um de colaboração, de comunidade, de troca de ideias, de desierarquização. Esta é também a filosofia da Zaratan, segundo a qual “artistas, curadores, galeristas, críticos e públicos são todos considerados “jogadores” do mesmo jogo”.
Enquanto artistas, Sara & André colaboram e dialogam constantemente com o mundo da arte, sobretudo portuguesa, com outros artistas, contemporâneos e históricos, e mesmo na folha de sala deste ciclo apropriaram-se livremente de comentários sobre curadoria feitos por outros, a saber: Johannes Cladders, Jens Hoffmann, Rui Chafes, João Fernandes, Bruno Marchand.
Por um lado é o que os diverte, por outro questionam a divisão de trabalho no mundo da arte e a sua má reputação já descrita supra, mas, sobretudo em CC (II) criaram um espaço de partilha criativa. Porque no fundo, os da arte são animais sociais, que desenvolvem ideias com outros, que precisam dessa interação, deste estímulo - intelectual, emocional, físico - para criar e sobreviver.
E, na realidade, como o presente nos dá novas perspectivas sobre o passado, esta convivência estava já lá na primeira exposição, no trabalho de Sandro Resende, Maria do Mar Fazenda, Natxo Checa, Luísa Santos, Bruno Marchand e Frederico Duarte.
Na segunda exposição viu-se mais especificamente as formas que estas colaborações podem tomar. Como um curador, enquanto pessoa de fora, pode chegar com novas perspectivas e tornar uma obra, uma exposição, uma colaboração, uma realidade, como aconteceu no caso de Delfim Sardo com a obra Drift (2004) de John Baldessari, Julião Sarmento e Lawrence Weiner. Ou como uma curadora pode abrir portas para uma intervenção colaborativa, como Leonor Nazaré fez com as portas da Gulbenkian para Mário Pires Cordeiro e João Lima Duque (ASSAULT PT, 2009). Ou, ainda, como um curador pode pôr em evidência uma parte menos conhecida da obra de um artista, como Sérgio Mah em relação à fotografia de Ângelo de Sousa, Cadernos de Imagens, 2017.
Viu-se também como uma amizade pode alimentar a criatividade, como no caso de Pedro Gadanho e João Paulo Feliciano, o primeiro tendo desenhado a casa do segundo, o qual, por sua vez, criou uma colagem fotográfica desta mesma casa, Around the House, 2010.
E tornou-se evidente como, mesmo numa era dominada pelo virtual - ao qual este ciclo de exposições não escapou -; Óscar Faria com Pedro Sousa Vieira, Sem título, 2017, CC (II)) o mundo da arte é sobretudo de fisicalidade. As exposições acontecem maioritariamente em espaços físicos onde a nossa presença física é convocada, assim como as relações que se criam são presenciais.
São presenciais e, por vezes, acontecem fora dos locais habituais, como a galeria, o museu, o ateliê, a academia, e ganham forma mais naturalmente em bares, discotecas, jantares. Isto faz parte da premissa para Night Studies (2017), de Rita Ferreira, desenhos encorajados pela coletiva curatorial Pipi Colonial através de fotografias de saídas noctívagas.
Outras revelações são feitas à noite, às vezes mais íntimas.
E a intimidade do ciclo ganhou intensidade com a terceira exposição (patente até 13 de Agosto), a dos curadores historiadores de arte, a quem foi pedida a revelação do seu momento de epifania que lhes mostrou que a história de arte era a sua vocação.
Além de mostrar cenas de anos formativos, relações parentais, ambientes domésticos, esta exposição de documentos, postais, livros, fotografias, desvenda um grupo de pessoas apaixonadas, dedicadas, algumas até obsessivas, e que na história da arte, na arte, e, por extensão, na curadoria, encontraram o seu par, alguma forma de correspondência. Isto é estranhamente evidente na colecção de bilhetes de estudante e de estudo da Sandra Vieira Jürgens ou nas notas escolares de Inês Grosso, 333333335 (2017), tendo sido a sua melhor nota, o 5, a educação visual .
Outra característica que junta vários destes curadores é o facto de terem tido a sua epifania em viagem, ou em relação com: Antónia Gaeta em Itália e França, Miguel von Hafe Pérez em Berlim em 1988, Rui Prata nos Rencontres d’Arles em 1987, David Santos em Londres, em 1989, Luísa Especial em Roma no início dos anos 2000, Marta Jecu com os slides de fotografias que a sua mãe tinha tirado na Argélia e na Tunísia quando viveu e ensinou em Argel, nos anos 70, antes da curadora romena nascer. Até Saul se converteu na estrada para Damasco, portanto talvez não seja assim tão estranho: viagens são propícias a epifanias, a mente está mais aberta. No entanto, o que consta desta convergência coincidente de experiências é a ideia da abertura ao mundo e das possibilidades que isto traz. Este encontro com o mundo terá sido particularmente relevante e marcante num Portugal dos anos 80 ou numa Roménia comunista, mas com os tempos que correm, sobretudo em termos geopolíticos, não é menos urgente. E aqui, talvez, esteja o que um curador, no seu melhor e com um trabalho de qualidade, pode ser e fazer: abrir horizontes.
E estes horizontes não são necessariamente reais, ou para mundos existentes, mas podem ser para fantasias, possibilidades ou memórias, que tanto podem ser enganadoras como reveladoras. Como a memória de João Pinharanda de um retrato seu tirado em Lourenço Marques, em 1960, aquando da inauguração do monumento ao V centenário da morte do Infante D. Henrique não corresponde com a própria fotografia que foi tirada uns dias depois.
As exposições que os curadores às vezes imaginam são fantasias que não podem realmente existir, ou então remetem para memórias românticas, mas se o curador não é um artista acompanha este último numa prática de criar outros mundos e de ajudar a propor uma interpretação sobre eles.
E um dos horizontes é, claro, o futuro.
Na intimidade de algumas peças, sobretudo as da III, surgiu a importância da cultura, passada de pais para filhos, nem que tenha sido pelo mero facto de ter um livro em casa (Alda Galsterer e Lourenço Egreja), de ter levado um filho a um evento importante (João Pinharanda), ou de ter dado a uma filha a liberdade de escolher o curso que realmente queria fazer (Catarina Alfaro). Esta formação feita num ambiente familiar reflecte a responsabilidade que qualquer curador pode ter, na medida em que cria uma identidade cultural de uma geografia ou de um tempo, que por sua vez será passada a gerações futuras.
Isto é evidente em todo o trabalho de Sara & André na forma como colaboram e dialogam com a criação artística portuguesa contemporânea. Assim, ao longo de três exposições, Curated Curators formou um trabalho artístico no sentido mais lato, e nos moldes habituais de Sara & André, dado que evidenciou e valorizou o mundo da arte contemporânea portuguesa como um ecossistema muito especifico, e com a sua própria genética. Serviu para fazer um retrato da contemporaneidade em Portugal, às vezes de forma bastante íntima, como também para dar uma visão de 360° do que pode ser o papel de um curador, no seu melhor.
Porque, no seu melhor, um curador pode ser e ter tudo aquilo que a arte é, ou seja tudo. Nas palavras de Lígia Afonso, a arte é aquela área capaz de relacionar e conter em si todas as outras: A memória do que não é, é melhor do que a amnésia do que é, 2017.
Eva Oddo
Curadora independente, trabalha com arte contemporânea, filme e música, e também escreve para exposições. Organizou e co-organizou exposições individuais e colectivas em Lisboa (Museu Geológico, Espaço AZ, galeria Round the Corner, Mercado de Santa Clara), Londres (Old Operating Theatre, Central Saint Martins) e Guimarães (Fábrica ASA). Vive e trabalha em Lisboa. Licenciada em História da Arte e Russo pela Universidade de Glasgow (2005), tem um Mestrado em Culture, Criticism and Curation pela Central Saint Martins School of Art and Design em Londres (2014).
a autora escreve de acordo com a antiga ortografia