12 / 16

Os paraísos nunca perdidos de Carla Cabanas

galeriacarloscarvalhocarlacabanasamda3.jpg
Maria Beatriz Marquilhas

A memória é qualquer coisa que nos interpela. E por vezes é algo que pomos em prática com empenho, é um exercício do desejo. Na sua nova exposição individual, patente na galeria Carlos Carvalho até 16 de Setembro e comissariada por Sérgio Fazenda Rodrigues, Carla Cabanas continua a explorar o processo através do qual uma ausência se converte em presença. Em A Mecânica da Ausência II, o modo como essa evocação se realiza coloca-nos no centro do que parece ser um ritual alquímico, um quase acto de magia a que damos o nome de memória.

A Mecânica da Ausência II (2017) empresta o nome à exposição e, mais do que um conjunto de objectos e imagens, é uma instalação cénica que representa o que se processa no terreno da memória. Na ampla sala da galeria, imersa na escuridão, uma série de projectores dispostos pelo espaço vai desenhando imagens nas suas paredes e em finas redes que pendem do tecto. O mesmo slide é por vezes duplicado em duas imagens, com distâncias, dimensões e níveis de focagem distintos. As linhas geométricas do espaço diluem-se, e a sala passa a ser uma câmara em cuja nebulosidade submergimos. No processo de subtracção do espaço, permanecem apenas as imagens: fotografias de paisagens e de famílias, de monumentos. Adquiridos pela artista na Feira da Ladra, tratam-se de fragmentos difusos que escaparam à erosão do tempo e que sintonizam a atmosfera de intimidade nostálgica de um passeio de família pelo campo ou de uma visita a uma cidade por conhecer. 

No trabalho de Carla Cabanas, a memória é sempre uma imagem que vai sendo esculpida pela passagem do tempo. A representação visual desse mecanismo de erosão tem constituído o fundamento transversal às obras da artista. Na primeira parte de A Mecânica da Ausência, uma exposição apresentada entre Outubro e Novembro de 2016 na Cooperativa de Comunicação e Cultura, em Torres Vedras, também com a leitura curatorial de Sérgio Fazenda Rodrigues, as imagens eram já apresentadas através da projecção de slides. A imprecisão - ou criatividade - da memória era então ilustrada pela subtracção ou pela adição de elementos, através do corte e da justaposição de referências nas fotografias.

A continuidade entre os dois momentos expositivos é manifesta. No entanto, se, no primeiro, a representação da perda de elementos estava sobretudo presente na manipulação visual das próprias fotografias, em A Mecânica da Ausência II, a capacidade transformadora da memória é apresentada como exercício com uma mecânica própria, numa performance em que o som dos projectores ao mudarem de slide e as focagens e desvanecimentos das imagens quebram a opacidade negra da sala. Tal como a chávena de chá e a madalena em La Recherche du Temps Perdu de Marcel Proust transportavam Charles para a sua infância, as imagens projectadas constituem passagens e activam um pretérito que se difunde num movimento ilusório, como se mimetizassem o próprio tempo na sua corrida. Deixamo-nos embalar pelo ritmo das várias evocações que se sucedem, num ambiente simultaneamente íntimo e solene.

Na sala contígua, O Miradouro (2017), A Conversa (2017) e O Piquenique (2017) definem um título e um contexto para as fotografias que se ocultam em três caixas de luz. A uma certa distância, vemos apenas pequenos rectângulos negros na parede mas, à sua volta, um halo luminoso denuncia o que se esconde dentro de cada caixa. No seu interior, uma fotografia é oposta à superfície espelhada que a reflecte e que nos permite, através de uma ranhura, perscrutar o instante ali enquadrado. Observamos um casal que conversa ao ar livre, duas mulheres que admiram a paisagem enquadrada por um miradouro e um piquenique; as roupas e os penteados denunciam uma época que passou e a naturalidade das personagens aponta para o contexto íntimo de um álbum de família.

Se, na primeira sala, o carácter cénico e performativo do dispositivo nos apresenta a imagem da memória como abertura, as caixas de luz, pelo contrário, obrigam-nos a invadir um espaço estático que se fechou e no qual seremos sempre observadores estrangeiros. Inicialmente, o passado é-nos revelado sob a forma de um convite para, de seguida, se ocultar, relembrando-nos o nosso papel de voyeurs e que por vezes as memórias não são de acesso directo.

Depois de as ausências estarem recortadas no retrato e de apagadas as luzes dos projectores, Carla Cabanas sabe que o resultado final da equação entre o que se esfuma e o que permanece é sempre o mesmo: o que o argentino Jorge Luis Borges reconheceu em 1985 no poema em prosa Posse de outrora, ao afirmar que "Não há outros paraísos senão os paraísos perdidos." É nosso aquilo que perdemos, a cada altar que lhe construímos, a cada elegia que lhe cantamos e a cada imagem a que regressamos. A "mecânica da ausência" mais não é do que o semi-círculo que as nossas cabeças desenham no espaço, de cada vez que olhamos para trás. 

 

Maria Beatriz Marquilhas

Licenciada e mestre em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo-se especializado em Comunicação e Artes com uma dissertação sobre o conceito na experiência artística. Contribui regularmente com artigos e ensaios para revistas. Vive e trabalha em Lisboa.

a autora escreve de acordo com a antiga ortografia

 

Carla Cabanas

Carlos Carvalho Arte Contemporânea

upload-a58b8b20-b354-11e7-913a-098086cab703

Carla Cabanas. A Mecânica da Ausência II. Vistas da exposição Carlos Carvalho Arte Contemporânea. Fotografia de Pedro dos Reis. Cortesia da artista e Carlos Carvalho Arte Contemporânea.

galeriacarloscarvalhocarlacabanasamda1

Carla Cabanas. A Mecânica da Ausência II. Vistas da exposição Carlos Carvalho Arte Contemporânea. Fotografia de Pedro dos Reis. Cortesia da artista e Carlos Carvalho Arte Contemporânea.

galeriacarloscarvalhocarlacabanasamda2

Carla Cabanas. A Mecânica da Ausência II. Vistas da exposição Carlos Carvalho Arte Contemporânea. Fotografia de Pedro dos Reis. Cortesia da artista e Carlos Carvalho Arte Contemporânea.

galeriacarloscarvalhocarlacabanasamda4

Carla Cabanas. A Mecânica da Ausência II. Vistas da exposição Carlos Carvalho Arte Contemporânea. Fotografia de Pedro dos Reis. Cortesia da artista e Carlos Carvalho Arte Contemporânea.

Voltar ao topo