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Collaboration

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Miguel Mesquita

A inauguração do espaço de arte na Quinta do Quetzal surgiu, nos meios de comunicação social, sob cabeçalhos pretensiosos, alguns mesmo espampanantes, mas a notícia ecoou, quase exclusivamente, sobre a comunidade artística. Resultado de um enoturismo que já não se basta na sua configuração primária e no qual as arquitecturas icónicas esgotaram a capacidade atractiva, o Centro de Arte Quetzal veio estabelecer um espaço para a apresentação da colecção do casal Cees e Inge De Bruin - Heijn, proprietários da quinta de vinhos no Alentejo e mecenas das artes, com uma programação adaptada ao contexto Português e o intuito de envolver o meio local. Não sendo o primeiro exemplo da inclusão de programas paralelos como método de promover uma experiência diferenciada e direccionada ao enoturista, ao mesmo tempo que procuram cativar públicos secundários e especializados, o espaço de arte na Quetzal sugere ser um investimento engenhoso e promissor, que vem permitir a criação de diálogos de várias motivações entre uma colecção privada (que, não se conhecendo a extensão nem a composição, é tida como uma das mais importantes do mundo) e uma produção nacional discriminada, emergindo assim como organismo permeável a lógicas colaborativas.

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Vista geral da Quinta do Quetzal. Cortesia de Centro de Arte Quetzal.

É este regime de colaboração que se pode interpretar como fundamento de Collaboration a exposição que actualmente se encontra na Quetzal e que é composta por dois núcleos: obras da colecção De Bruin-Heijn, resultantes de colaborações entre vários artistas; e projectos temporários, complementares ao tema, concebidos por quatro curadoras convidadas (Filipa Oliveira, Ana Cristina Cachola, Isabel Carlos e Ana Luiza Teixeira de Freitas). Com expressões e influências variadas ao longo da história da arte, as colaborações na produção e criação artística estão associadas a movimentos de contestação político-ideológica, a questões de administração e rentabilidade financeira entre artistas e, também, a afiliações promotoras do lobby institucional ou artístico. No entanto, o conjunto de obras que integra o núcleo permanente da exposição não parece incluir qualquer tipo de reflexão ou manifestação sobre estas posições. Algumas realizadas num espírito de cumplicidade intelectual e estética, outras em género de contribuição formalista fomentada por uma conjuntura institucional, estas obras encerram narrativas isoladas que dificilmente se interligam numa lógica comum, suscitando alguma incerteza quanto a um intento expositivo consequente de um sistema de selecção distanciado da mera mostra da colecção. Não se trata de questionar a qualidade das obras ou a pertinência destas parcerias, mas antes a validade de um discurso sobre colaboração numa exposição onde esta prática sugere ser arbitrária. O propósito de incorporar projectos curatoriais convidados torna-se, assim, um elemento fundamental para a interpretação destas obras, estabelecendo novas perspectivas sobre o tema apresentado e impondo uma leitura dos processos colaborativos, não só na lógica objectual mas também conceptual.

O segmento da exposição comissariado por Ana Cachola, inaugurado a 8 de Julho, refere-se a uma práxis colaborativa permanente realizada sob vários níveis de mediação entre múltiplos agentes, uma condição traduzida no texto de sala sob a premissa “não há não colaboração”, cuja formulação sintática evidencia uma inevitabilidade na organização dos processos configuradores de uma identidade unitária. Se a exposição da Colecção De Bruin-Heijn poderia ser caracterizada como insípida no conteúdo e vazia de contexto, cingindo-se a uma curiosidade pelas obras seleccionadas, a proposta apresentada por Ana Cristina Cachola, colocando o tema sobre uma perspectiva de maior latitude, torna-se estruturadora da interpretação das práticas colaborativas a nível individual e colectivo. Ao convidar Igor Jesus e Mariana Silva para apresentarem obras separadas, a curadora não determina uma abordagem colectivista a uma proposta de colaboração, antes, promove o carácter colaborativo caracterizador das metodologias dos dois artistas que, recorrendo a abordagens distintas, representam uma consciência da alteração dos padrões da criação artística contemporânea na sua dependência das lógicas inter-relacionais do saber.

A obra de Mariana Silva, uma vídeo-instalação onde a projecção incide impecavelmente circunscrita a uma tela circular suspensa no espaço, traça uma parametrização evolutiva suportada e influenciada por um sistema de informação científica alargado, que questiona os modelos de relação social, baseado na interpretação e observação de sistemas colectivos. Do ponto de Vista do Mamífero (2017), entremeia uma sucessão de imagens onde o dispositivo de projecção ora convoca uma lógica de óptica voyeurista, enfatizada pelo momento de transição dos planos de imagem, ora uma lógica vectorial, informatizada e pragmática. Mariana Silva constrói, assim, uma linguagem neoprimitiva que transforma uma percepção orgânica numa tecnológica em função de uma dissipação das barreiras entre as anatomias biológicas e mecânicas, consequente de uma combinação morfológica das práticas de observação, bem como pela homogeneização da relação entre os processos de produção e reconhecimento automatizado e humanizado. Esta hibridação do homem com a máquina é acentuado pela voz do narrador, um suspirar confundível com o som da estática de TV, que confere à mecânica do sonar uma forma de investigação visual dos paradigmas da existência e movimentação em grupo.

Fruto de uma análise interdisciplinar, a obra de Mariana Silva constitui, apesar de tudo, uma leitura particularizada da experiência colaborativa, estanque na sua circunstância e não se distinguindo, neste sentido, das obras que constituem o núcleo permanente da exposição. Por sua vez, a obra de Igor Jesus adquire um carácter fundamental para uma compreensão ou interpretação global da exposição. Com uma prática onde geralmente aborda a relação entre os mecanismos biológicos e os tecnológicos, a obra de Igor Jesus centra-se, desta vez, numa relação corpórea, uma relação manual decorrente de um processo de compreensão e percepção mental de todas as obras enquanto exposição. Mais do que em termos formais, a obra de Igor Jesus é, em termos conceptuais, uma folha de sala. Sem um corpo de texto inteligível, as folhas de sala que desenha impelem a uma pós-imagem, à construção de uma unidade que existe sujeita às memórias pessoais e que, por isso, depende da interacção com o espectador, uma colaboração que satisfaz um envolvimento consciente para a existência da obra de arte. A obra opera como meio mediador, uma “imagem crítica” em concordância com a definição de Georges Didi-Huberman em O que nós vemos, o que nos olha. Ao definir-se como imagem que constrói a exposição e os nossos modos de olhar as obras que a compõem, a obra de Igor Jesus torna-se o dispositivo que, citando o filósofo francês, permite “escrever esse mesmo olhar, não para o transcrever mas para o constituir”.

Ambas as obras colocam o tema da colaboração como presença constante na arte contemporânea ao mesmo tempo que constituem representações de uma percepção do colectivo, contaminando assim as leituras interinas das obras em exposição. À colecção permite-se um estado dormente até ao confronto com as opções dos curadores convidados, insinuando uma vontade de enquadrar novos testemunhos sobre possíveis convivências. Num texto intitulado What About Collecting?, Sofía Hernández Chong Cuy examina as consequência das práticas curatoriais sobre as estratégias do coleccionismo, sugerindo que, fosse o coleccionismo de arte um tema nas discussões da curadoria contemporânea, a colaboração deveria aparecer como um dos tópicos condutores, quer no que respeita aos métodos de construção das colecções e das suas leituras, quer relativamente ao desenvolvimento dos grupos artísticos que as sustentam. Dentro deste espírito, aguardamos com expectativa o papel que a Quetzal irá desempenhar no futuro.

Miguel Mesquita

Licenciado e Mestre em Arquitectura pelo Departamento de Arquitectura da FCT - Universidade de Coimbra e Mestre em  Estudos Curatoriais pelo Colégio das Artes - Universidade de Coimbra. Em  2013 integrou o Centro de Estudos Sociais como Jovem Investigador em projectos interdisciplinares com foco nas áreas de arquitectura, sociologia e arte. Entre 2014 e 2015 estagiou no Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves. Desde 2015, exerce o cargo de Director Artístico na galeria Baginski. 

o autor escreve de acordo com a antiga ortografia

 

Igor Jesus

Mariana Silva

Quinta do Quetzal 

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Vista da exposição Collaboration (pormenor) Obras da Colecção De Bruin-Heijn. Centro de Arte Quetzal. Cortesia da Colecção De Bruin-Heijn.

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Vista da exposição Collaboration (pormenor) Obras da Colecção De Bruin-Heijn. Centro de Arte Quetzal. Cortesia da Colecção De Bruin-Heijn.

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