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Greater than the Sum por Kunsthalle Lissabon - DRAF Curators’ Series #10

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Inês Geraldes Cardoso

A coletividade cultivada através de uma vida partilhada deve tornar-se ‘corporativa e corpórea; carnal.’ Esta é uma de várias divagações revolucionárias na peça de André Guedes, Nova Árgea, que poderia ser adotada enquanto refrão de Greater than the Sum, a exposição curada por João Mourão e Luís Silva, convidados para a décima edição da série ‘Curators’ Series’ da David Roberts Art Foundation. A corporalidade da proposta curatorial é ancorada na escala humana das suas obras, que convidam o espectador a projetar-se, física e ideologicamente no trabalho dos artistas, e por extensão, na estética-política da Kunsthalle Lissabon, a instituição de Mourão e Silva em Lisboa cujo alicerce é, desde a sua inauguração em 2009, uma praxis de amizade.

Somos acolhidos numa sala de chá composta por uma colecção de cadeiras, mesas e bules com formatos peculiares em GDM futur franchise, um capítulo recente do projeto de Laure Provoust, que assume a forma de um museu dedicado ao seu avô. Ao mesmo tempo que propõe um momento de convívio e troca, a obra, situada no contexto da DRAF em Londres, também invoca e genialmente subverte a tão Britânica instituição da hora do chá, parecendo assim ressoar com mais uma das frases na narração da comuna fictícia de Guedes: ’O progresso não é representado pela pátria materna, mas pela abolição desse arquétipo.’ Longe do chá enquanto símbolo nacional, a peça de Provoust gera estranheza num espaço que nos é imediatamente familiar pelos seus adereços domésticos universalmente reconhecidos, mas que se mantêm resolutamente fora de qualquer eixo comum. Flores secas, cadeiras com próteses improváveis, um bule sem função aqui, meio pão ali, e mesas que se equilibram precariamente sobre estacas de livros de arte. Ao percorrer as prateleiras e a lareira integradas na instalação, encontramos ainda pequenas esculturas ‘de Kurt Schwitters’ à venda: peças suplentes, sugere Provoust, para reparar cadeiras e mesas partidas. Será esta uma casa, uma oficina ou um showroom? Deparamo-nos com uma sala híbrida entre lar e comércio. Mas em Provoust, os curadores parecem sugerir que as franchises do futuro poderão vir a ser espaços de sociabilidade, guiados pelo afeto e caracterizados por um conjunto singular de sensibilidades diversas.

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Laure Prouvost, GDM future franchise, 2017.Cortesia da artista e carlier | gebauer (Berlim), e Galerie Nathalie Obadia (Paris e Bruxelas). Foto: Tim Bowditch.

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Laure Prouvost, GDM future franchise, 2017.Cortesia da artista e carlier | gebauer (Berlim), e Galerie Nathalie Obadia (Paris e Bruxelas). Foto: Tim Bowditch.

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Laure Prouvost, GDM future franchise, 2017.Cortesia da artista e carlier | gebauer (Berlim), e Galerie Nathalie Obadia (Paris e Bruxelas). Foto: Tim Bowditch.

De um franchise futuro a um lugar sem futuro, somos transportados da domesticidade excêntrica de Provoust a um palco de dançarinas banhadas pela luz de um eclipse lunar, em No Future in that Place de Diogo Evangelista. A cena, congelada no tempo, é teatral e cenográfica - as esculturas são imagens ampliadas de uma revista de dança Alemã do início do século passado. Por outro lado é literalmente encarnada, na luz da gigante lua vermelha, e nos dançarinas que formam uma comunidade de corpos em movimento: as personagens assemelham-se a extraterrestres que participam, exuberantes, de um qualquer ritual de modernismo atávico. Qual o futuro de um (algum) lugar abandonado, ou libertado dos elos de uma sociedade pré-concebida? Se o futuro é incerto nesse lugar, existem soluções propostas para uma vida em comum na obra vizinha de André Guedes.

Baseada na cooperativa agrária A Comunal, estabelecida no PREC do pós-25 de Abril, Nova Árgea é alternadamente um manifesto e uma narrativa tecida através de depoimentos, que exploram o que constitui uma comunidade. A instalação alberga projeções de cenas do quotidiano na coletiva fictícia de Guedes, e à semelhança das esculturas de Evangelista, é construída com madeira compensada e aparentemente desmontável. As entradas na estrutura são os espaços negativos de formas geométricas, remetendo aos jogos com que a comunidade se entretém. Estas encontram-se recortadas e apoiadas como se por acaso, contra as paredes da galeria; como se a descoberta de novos modos relacionais fosse tão simples como uma brincadeira geométrica à escala humana, um baralhar de formas concretas e comuns a todos nós. De vez em quando, ecos das vozes dissonantes em Dinosaurs, a peça de Mounira Al Solh na última galeria, sobrepõem-se à dimensão lúdica de Nova Árgea, numa advertência ao impulso humano que sabota o potencial utópico da comunidade. Estas alterações rítmicas da socialização dos personagens na obra de Al Solh, realçam o aspecto mais sombrio na narrativa de Guedes: ‘Onde existem pessoas, existem problemas.’

André Guedes, Nova Árgea, 2012 (detalhe). Cortesia do artista  Galeria Vera Cortês, Lisboa. Foto: Tim Bowditch.

André Guedes, Nova Árgea, 2012 (detalhe). Cortesia do artista  Galeria Vera Cortês, Lisboa. Foto: Tim Bowditch.

Diogo Evangelista, No Future in that Place, 2012 (detail). Cortesia do artista. Foto: Tim Bowditch.

Diogo Evangelista, No Future in that Place, 2012 (detail). Cortesia do artista. Foto: Tim Bowditch.

A precariedade das relações humanas é um tema chave, que se encontra permanentemente em diálogo com uma resiliência representada na abordagem DIY (Do-It-Yourself) comum às obras da exposição, e que por sua vez é um dos principais eixos curatoriais da Kunsthalle Lissabon, manifestado numa ‘ética e estética DIY resultante do actual clima económico e que permite fluidez, agilidade e rapidez de acção e, sobretudo, autonomia e independência.’ Tudo na exposição sugere a possibilidade de construção e subtração, oscilando entre estrutura e desmoronamento. Em nenhuma obra essa sensibilidade é tão sentida quanto em 2 em 1 de Jonathas de Andrade, onde dois jovens carpinteiros seguem um manual técnico para a transformação de duas camas solteiras numa de casal. O comentário irónico e bem humorado sobre a impossibilidade de um manual para as relações, adiciona-se ao mesmo tempo às reflexões na exposição que tornam visuais e visíveis as possibilidades de novas estruturas e sistemas interpessoais. Em contraste com o eclipse dramático de uma nova ordem evocado na peça de Evangelista, 2 em 1 realça as articulações do esforço requerido na mudança gradual e na tentativa paciente da produção de algo que é mais do que ele mesmo, excedendo a soma das suas partes.

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Jonathas de Andrade, 2 em 1, 2010. CourtesIia do artista e Galeria Vermelho, São Paulo. Foto: Tim Bowditch.

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Jonathas de Andrade, 2 em 1, 2010. CourtesIia do artista e Galeria Vermelho, São Paulo. Foto: Tim Bowditch.

Duas partes tornam-se uma também nas peças de Céline Condorelli e Amalia Pica, convidadas pelos curadores a explorarem a sua amizade de longa data na criação de uma proposta conjunta para a exposição. Como se de um trocadilho se tratasse, a peça de Pica, Joy in paperwork, só pode ser vista de perto ao subir The Double And The Half (to Avery Gordon) de Condorelli - um escadote equilibra-se em cima de uma mesa, por sua vez apoiada em mais dois escadotes, refletindo o interesse contínuo de Condorelli em estruturas de apoio e relembrando a precariedade das mesas bambas sobre livros na peça de Provoust que inicia a exposição. Na mesa de Condorelli, The Company She Keeps regista, entre outras, uma conversa sobre a amizade entre a artista e a socióloga Avery Gordon, que nos leva a refletir a respeito não só de quem, mas também de que ideias, nos acompanham. Mais uma vez entre a precariedade e a brincadeira, a peça opera enquanto um gesto que revela o desafio, o sacrifício e o equilíbrio implicados no chegar mais próximo do outro. Desafio esse, também (in)corporado: como as mesas que convidam o público a sentar-se e a trocar histórias na tearoom de Provoust, como os corpos que celebram a liberdade de reunião no ritual hedonístico de Evangelista, como a correspondência entre formas geométricas e sociais na cooperativa de Guedes, como os carpinteiros que fazem a cama a dois na obra de Andrade, como os amigos, que consomem álcool e se consomem uns aos outros em diálogos arrastados nos vídeos de Al Solh; aqui, também, a escala é humana e o corpo mobiliza-se para fazer a ponte entre Condorelli e Pica.

Giorgio Agamben defende, ‘aquilo que o Estado não consegue tolerar de maneira nenhuma, é que singularidades formem uma comunidade sem afirmarem uma identidade, que seres humanos co-pertençam sem qualquer condição representável de pertencer.’ A força da proposta de Mourão e Silva não se encontra na apresentação de um sentimento comum, mas num ponto de vista que evade uma definição fácil de comunidade por não temer uma singularidade problemática e desafiadora, fraterna mas nunca homogênea. Leela Gandhi sugere que um nome para a co-pertença de identidades não-idênticas é a amizade. Ao sair de Greater than the Sum, senti reforçada a convicção de que a amizade pode dar forma a um contexto de ação plausível.

Inês Geraldes Cardoso

Nascida em 1990, São Paulo, Brasil. Vive e trabalha entre Londres e Lisboa como curadora e crítica de arte. Formada em História de Arte e Antropologia Social na Universidade de St Andrews, interessa-se pelas intersecções da teoria e da prática e pela relação entre o político e o estético. Na sua tese de mestrado na Royal College of Art investigou a exaustão enquanto ponto de partida para a prática curatorial. Tem vindo a desenvolver projetos na Fondazione Sandretto Re Rebaudengo (Turim), no Curatorial Program for Research (Mar Báltico), na EGEAC (Lisboa), no Acme Project Space (Londres), e exerceu assistência curatorial na Kunsthalle Lissabon (Lisboa).

 

DRAF 

Kunsthalle Lissabon

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Céline Condorelli,The Double And The Half (to Avery Gordon),2014. Cortesia da artista. Artist Pension Trust London Collection. Amalia Pica, Joy in paperwork #148, 2016, Joy in paperwork #156, 2016 e Joy in paperwork #158, 2016. Cortesia da artista e Herald Street, London. Foto: Tim Bowditch.

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Céline Condorelli, The Double And The Half (to Avery Gordon), 2014. Cortesia da artista. Artist Pension Trust London Collection. Amalia Pica, Joy in paperwork #148, 2016, Joy in paperwork #156, 2016 e Joy in paperwork #158, 2016. Cortesia da artista e Herald Street, London. Foto: Tim Bowditch.

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Céline Condorelli, The Double And The Half (to Avery Gordon), 2014. Cortesia da artista. Artist Pension Trust London Collection. Amalia Pica, Joy in paperwork #148, 2016, Joy in paperwork #156, 2016 e Joy in paperwork #158, 2016. Cortesia da artista e Herald Street, London. Foto: Tim Bowditch.

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Mounira Al Solh, Dinosaurs, 2012 (detalhe). Cortesia  artista e Sfeir-Semler Gallery, Hamburg e Beirut. Foto: Tim Bowditch.

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Diogo Evangelista, No Future in that Place, 2012 (detail). Cortesia do artista. Foto: Tim Bowditch.

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