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Matt Black and Rat

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Sofia Nunes

Naquela que é a sua primeira exposição individual em Lisboa, comissariada por Rita Fabiana, a convite do Museu Calouste Gulbenkian em parceria com a Bergen Kunsthall, Emily Wardill apresenta um conjunto de novos trabalhos que vêm interrogar a materialidade do objeto artístico. O que pode causar alguma estranheza, sobretudo se considerarmos que a artista trabalha preferencialmente com imagem vídeo projetada. No entanto, sendo imateriais, pois que partem de um meio composto de sombras e feixes de luz, as suas imagens são animadas por uma curiosa dimensão material.

Já nos anos de 1990, foram muitos os artistas que procuraram usar a vídeo projeção numa estreita relação com o espaço físico, trazendo os projetores e sistema de som para o centro da sala ou recorrendo ao formato de ecrãs múltiplos. Acontece que em Wardill, e em particular nos dois vídeos que acompanham a exposição, algo de diferente se passa. Se a atenção dada à materialidade-imaterial da imagem vídeo é também usada no sentido de contrariar as convenções associadas aos seus regimes de produção e receção, ela decorre predominantemente das teias que ligam dois eixos: por um lado, a imagem circunscrita ao ecrã simples e frontal no que respeita aos seus materiais significantes (a narrativa, a cor ou o som); por outro, o espectador, atendendo à posição que mantém relativamente à imagem.

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Emily Wardill, No Trace of Accelerator, 2017. Vídeo digital, cor, som, 48 min. Encomenda de Bergen Kunsthall e Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa, com apoio do Arts Council Norway. Cortesia da artista

O vídeo mais recente, No Trace of Accelerator, 2017, obedece a uma projeção clássica de cinema (sala às escuras, ecrã, plateia, projeção de cabine) e conduz-nos ao interior de um quarto fechado, cenário onde a ação se desenrola ao longo de 48 minutos. Duas personagens, um homem e uma mulher, leem de forma intercalada e em voz alta um texto que relata uma série de incêndios misteriosos ocorridos numa pequena cidade francesa perto dos Pirinéus, Moirans-en-Montagne, em meados da década de 1990. O incidente culminou na morte de dois habitantes, mas o facto de permanecer sem explicação até se provar que foi desencadeado por um ato criminoso motivado por ciúmes fez com que toda a comunidade, incluindo os moradores, os serviços públicos, o poder local e a imprensa nacional convocassem diversas causas possíveis de raiz científica ou mesmo sobrenatural. A veracidade do incidente é reforçada pelas vozes radiofónicas das duas personagens, que subitamente saem de uma posição exterior à história para a preencherem ficcionalmente, até ligá-la de novo aos factos reais. A mulher vive na mesma casa com o sobrinho, um homem com fortes perturbações mentais que está apaixonado pela própria tia. Quando se deflagram os incêndios, ela recebe a visita de um bombeiro que tenta tirá-la de casa. A mulher resiste, enquanto desenvolve um amor platónico por esse mesmo homem, que simultaneamente desempenha o papel do sobrinho. À medida que este triângulo amoroso se vai mostrando e adensado, o sobrinho é interrogado pelas autoridades e admite ter ateado os fogos que provocaram o assassinato da tia e do bombeiro, pelo que toda a trama volve não só como um pesadelo vivido e rememorizado pelo pirómano, como pelo próprio espectador que se sente perdido e sem qualquer controlo sobre a história. Será que a tia e o bombeiro já estão mortos e o que nos é dado ver são os fantasmas do sobrinho a deambularem pelo quarto como espelhos da paixão que o consome? A dúvida persiste, não se resolve e torna-se uma angústia que Wardill intensifica ao romper com uma série de convenções que aprisionam a imagem, à semelhança dos esforços de racionalização que procuram normalizar situações imprevisíveis. Tal como o fogo, a imagem aqui é um campo de instabilização, fragmenta-se em várias secções, pulveriza-se em diferentes perspetivas, adquire uma tonalidade branca, fantasmática e é entrecortada por silêncios, sonoridades computorizadas, fumos, até ganhar uma vitalidade que a retira de um lugar fixo, onde nos pudéssemos reconhecer e repousar. Aí imagem e espectador tornar-se-iam instâncias puramente petrificadas, antecipáveis, sem poder de desdobramento. Algo que o segundo vídeo da exposição também procura obstinadamente contornar.

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Emily Wardill, I gave my love a cherry that had no stone, 2016. Vídeo HD, cor, som, 8 min. Uma produção do Centre d’Art Contemporain Genève para a Biennale de l’Image en Mouvement, 2016, com o apoio do Fonds d’Art Contemporain de la Ville de Genève (FMAC) e do Fonds Cantonal d’Art Contemporain de Genève (FCAC), Faena Art, In Between Art Film e HEAD — Genève. Cortesia da artista.

I gave my love a cherry that had no stone, 2016 recupera o género do cinema mudo e regista um bailarino vestido de camisa branca e calças negras a movimentar-se no interior do foyer do Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian. Entre o bailarino e o espaço estabelecem-se estranhas continuidades, graças à performatividade da personagem, ao uso da câmara subjetiva e à introdução de pequenos sons que pontuam a ação subtilmente. O seu corpo caminha, ora com hesitações, ora de forma mais determinada. É dissonante. Às vezes parece perder o peso e flutuar, outra vezes comporta-se mecanicamente, ganhando uma presença bastante firme. Tanto assume uma configuração irreal, como desmesuradamente real. É curioso. Observa os elementos arquitetónicos modernistas em seu redor, aspeto que lhe faz crescer o olho, experimenta as peças de mobiliário e deita-se no chão alcatifado. É então que uma sensação de confiança com o espaço começa a crescer. Encontra um painel branco abstrato em relevo com motivos orgânicos gravados (Vítor Fortes) e usa-o como cenário para uma dança com a camisa que entretanto despe. Mexe-a brusca e aceleradamente até que ela se desenlaça e lhe escapa da mão. Como um espectro branco dotado de vida própria, já não lhe pertence. Assombra-o, assim como ao espaço da fundação na qualidade de um duplo virtual que goza sobre a materialidade de ambos, sem esquecer a posição do espectador. Desta vez não estamos sentados. A sala está às escuras, a intensidade cromática da imagem e a ligeira inclinação do ecrã atraem-nos até si, promovendo um efeito ótico que nos parece engolir e chutar para fora do seu espaço.

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Emily Wardill, Mattt black and rat, Vista da exposição. Fotografia: Carlos Azevedo. Cortesia da Fundação Calouste Gulbenkian.

Enquanto isso a camisa branca como que migra literalmente da imagem-vídeo para a sala situada ao lado da primeira projeção. Nela encontramos três duplos de uma camisa branca materializados em resina. Confundem-se facilmente com readymades, mas são baixos-relevos, que fazem da parede o seu habitat, continuando a descentrar a nossa perceção visual e a amplificar as tensões entre materialidade/imaterialidade, agora transferidas para o campo da imagem-objeto e também para o da imagem fotográfica. Veja-se a série de três fotogramas que completam a exposição. Iluminados e simultaneamente encadeados por vários pontos de luz industrial, transformam-se em superfícies duras, de difícil legibilidade, ainda que guardem as sombras do que nelas pousou. Letras soltas que os olhos vão seguindo e juntando, à medida que nos deslocamos no espaço e lemos: matt, black e rat. Crê-se que a pintura em preto mate evidencia com maior intensidade as qualidades físicas das superfícies e objetos pintados. Talvez Wardill não persiga senão esse projeto, o de explorar as camadas materiais da imagem a fim de situá-la numa condição de hibridismo constante e de lhe devolver possibilidades alargadas que embora não nos deem descanso, também é certo que não incomodam o mundo.

Sofia Nunes

Crítica de arte e doutoranda em História da Arte/Teoria da Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - UNL e na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Exerceu assistência de curadoria e produção de exposições no Museu do Chiado – MNAC, Ellipse Foundation e Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém (2000 a 2007). Foi professora convidada no Mestrado de Arte Contemporânea da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2009 a 2011). Escreve com regularidade para publicações de arte contemporânea e académicas.

 

Emily Wardill 

Fundação Calouste Gulbenkian

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Emily Wardill, Mattt black and rat, Vista da exposição. Fotografia: Carlos Azevedo. Cortesia da Fundação Calouste Gulbenkian.
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