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O mundo que os artistas pintam

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José Marmeleira

Nos finais dos anos 90, do século XX, na cena artística que então emergia em Lisboa, a pintura parecia empurrada para um lugar mais discreto, enquanto um conjunto heterogéneo de artistas proclamava a emergência do vídeo, da instalação, da produção de objetos. Não apenas ou sobretudo para os tornar, entre outros, meios de produção de obra, mas para lhes consagrar a sua actividade. Comentava-se a chegada de uma geração que elegia livremente outros suportes e, em surdina, lá se ia dizendo que a pintura, findado o seu regresso nos anos 80, nunca mais recuperaria a visibilidade de outrora. Género associado à tradição e aos valores da sociedade burguesa, não apenas carregava consigo o peso, desconfortável, da história, como continuava a tropeçar, mais facilmente, nas armadilhas do mercado. E, a pouco e pouco, lá se foi afirmando a percepção de que recuara para um plano secundário, existindo, em termos locais, refinada a um conjunto reconhecível de nomes. No final do século XX, o seu lugar era o de um limbo, por mais imaginário que fosse.

A verdade é que os artistas continuaram a pintar e continuaram a mostrar as suas pinturas. O género e a prática persistiram, sobreviveram e não apenas pela mão daqueles que nesses anos desenvolviam as suas carreiras no circuito galerístico. A título de exemplo, recorde-se o trabalho realizado pelo Museu de Serralves, dando a ver a produção de artistas nacionais, tão diferentes, como António Sena e Albuquerque Mendes ou internacionais como Luc Tuymans, Eberhard Havekost e Christopher Wool. Ou a presença de Bruno Pacheco e Gil-Heitor Cortesão na edição de 2004 do Prémio União Latina. Ou, ainda, a programação de Ricardo Nicolau e Bruno Marchand, entre 2006 e 2012, no espaço Chiado 8 (um projecto de Miguel Wandschneider), do qual constaram artistas como José Loureiro, João Queiroz ou Sónia Almeida. Esta breve contextualização, à qual se deverá acrescentar o trabalho de outras instituições museológicas, das galerias e dos coleccionadores, não é, nem pode ser, exaustiva, mas assevera uma realidade: a pintura vivia, afinal, depois da sua proclamada morte, contaminada e contagiada pela vertigem do seu desaparecimento. Refazendo-se, exactamente, sob o iniciar dos artistas.

A liberdade da pintura

Refazendo-se como outra pintura e, no entanto, pintura, tem-se manifestado numa profusão plural de universos, abordagens, metodologias. De alguns, muitos artistas: Tiago Baptista, Catarina Dias, Gil Heitor Cortesão, Gonçalo Pena, Pedro Casqueiro, Paulo Brighenti, Jorge Queiroz, Miguel Branco, Diogo Evangelista, João Queiroz, Ana Manso, Marta Soares, Pedro Vaz, Luís Silveirinha, Mariana Gomes, Luísa Jacinto, José Loureiro, Pedro Sousa Vieira, Luís Paulo Costa, João Gabriel, Bruno Pacheco, João Marçal, Francisco Vidal, João Fonte Santa, Alice Geirinhas, Daniel Fernandes, João Jacinto, Hugo Canoilas, Sónia Almeida, Fátima Mendonça ou Carlos Correia. Uma lista incompleta, absolutamente heterógena, habitada por oposições, intervalos, distinções e provavelmente, nos ritmos e energias que a compõem, instável, inconstante — no momento desta escrita, é provável que, por exemplo, a relação de alguns artistas nomeados com a pintura tenha arrefecido, ou pelo contrário, se tenha intensificado.

No livro O Exercício Experimental da Liberdade (Orfeu Negro, 2017) Delfim Sardo permite-nos especular sobre os factores mais mundanos desta sobrevivência. Escreve o crítico, curador e professor, que a pintura conferiria aos artistas maior autonomia, em termos de trabalho e manejamento dos materiais, que outros suportes [1]. Com efeito, a
produção de filmes ou instalações implica, normalmente, uma maior diversidade de meios e técnicas e exige a colaboração de outros agentes e profissionais. Já o artista que sobretudo pinta dispensa, à partida, a complexidade e a escala intrínsecas ao trabalho colectivo; a sua aproximação é mais directa, menos mediada. Isolado no seu estúdio, tem a liberdade de controlar, sem interferência alheia, os seus processos de trabalho, na companhia exclusiva do seu pensar e dos materiais que seleccionou. Isto não significa, obviamente que esteja alheio ao mundo ou que rejeite a sua interpelação. Por exemplo, alguns dos artistas mencionados demonstram ou demostraram uma sensibilidade atenta à produção retilínea de imagens, bem como aos efeitos da tecnologia nessa mesma produção (note-se os exemplos de Diogo Evangelista, Gil-Heitor Cortesão, João Gabriel, Bruno Pacheco ou Carlos Correia falecido, com 43 anos, este ano). Resumindo, para lá das idiossincrasias de cada universo artístico, das particularidades de cada fazer, a enunciação destes factores é pertinente dado que permite aferir condições que são, em certa medida, as do fazer da pintura.

Contudo, elas não existem por si mesmas, mas são indissociáveis de uma conjuntura: a da, já mencionada, morte da pintura e do luto que esse acontecimento provoca. De novo com o auxílio de Delfim Sardo [2] importa considerar que se a pintura tem persistido como género, e não apenas como prática, transportando consigo uma série de narrativas, histórias, passados, procedimentos, motivos, modelos, saberes, referências, também se confronta com um conceito amplo de arte, que acarreta a sua reinvenção ou re-articulação. Nestes termos, a especificidade do suporte (da pintura) torna-se num diferencial que transcende os limites da própria fisicalidade (da pintura).

 

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7 Prisma, 2018, vidro, d. 6,5x5 cm
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Pedro Vaz, vistas gerais da exposição Azimute. Galeria 111, Lisboa. (Patente entre 5 de Maio e 28 de Julho). Cortesia do artista e Galeria 111.

Um movimento pendular

É nestas condições, enfrentando-as, que os artistas trabalham. Como assinala Delfim Sardo, definindo os seus campos de procedimento e competências, estabelecendo mecanismos, retomando ficções, narratividades, procedimentos e tradições, a partir dos quais fazem obra. Este movimento de recuperação não consiste numa reconstrução dos cânones e tradições, que as vanguardas estilhaçaram, mas numa transfiguração pós-traumática, que opera com aquilo que a pintura deixou sedimentado, sob a forma de ruínas ou marcas: memórias, referências, imagens, ideias, géneros, modelos, motivos, modos de fazer.

Continuando na companhia das reflexões de Delfim Sardo, e partir das questões entretanto levantadas, propomos olhar, num breve exercício exploratório, para quatro exposições: Azimute, de Pedro Vaz na Galeria 111 (que termina a 28 de Julho) com curadoria de Sérgio Fazenda Rodrigues, A Invenção do Sim e do Não, exposição de Jorge Queiroz, comissariada por Natxo Checa, na Galeria Zé dos Bois, a retrospectiva dedicada à obra de Michael Biberstein, na Culturgest de Lisboa, com a curadoria de Delfim Sardo e, finalmente, a exposição INNER 8000er, de João Marçal com a curadoria de Sara Antónia Matos e Pedro Faro no Pavilhão Branco do Museu da Cidade. São eventos diversos, com princípios, modalidades e histórias distintas. Azimute corresponde a um momento definido no seu percurso, a exposição de Michael Biberstein é uma exposição retrospectiva e póstuma, de grande fôlego cronológico em torno da sua produção, enquanto as restantes reúnem trabalhos realizados ao longo de vários anos.

Uma abordagem às obras de João Marçal em INNER 8000er, permite, desde logo, descobrir um aspecto característico da pintura na modernidade que não desapareceu: trata-se de um movimento pendular. Endógeno, na direcção de si mesma, para as propriedades materiais e físicas que a determinam, para o seu interior. E, paradoxalmente, na direcção do exterior, para o mundo: nos padrões de objectos produzidos industrialmente, como os lençóis da série Migalhas, os azulejos evocados em Inner 8000er ou os elementos gráficos das caixas das cassetes vídeo VHS, na série Remote. Este movimento, sublinhe-se, é duplo e paradoxal: as pinturas engolem os objectos e as experiências do quotidiano, não para os substituir à arte, mas para os transfigurar, arrancado deles sentidos que influem sobre própria arte. Ou dito de outro modo, a arte, neste caso a exposição de João Marçal, vai em viagem ao mundo para interrogar os procedimentos e especificidades que constituem a sua própria e irredutível natureza.

Atente-se na série de pinturas Inner 8000er. Numa prateleira, estão dispostas, em tamanhos e geometrias distintas, quatro superfícies recortadas e tridimensionais que reproduzem azulejos de uma casa de banho. Ao mesmo tempo que alude ao compartimento de uma habitação, a sua presença na espaço expositivo alude ao questionamento da relação entre que o está dentro do enquadramento (o que está pintado) e as margens físicas do suporte, entre a literalidade e a ilusão, entre a pintura como objeto que é exposto na parede e a possibilidade da sua expansão ao espaço, entre a sua dimensão objectual e a sua promessa pictórica, entre o monocromatismo e a impressão do monocromatismo.

Sobre essa tensão entre o que é interior e exterior, e a propósito da série Migalhas, João Marçal teve a oportunidade de comentar:

“Cada pintura tenta reproduzir com exatidão alguns dos padrões dos lençóis da cama dos meus pais. O tamanho das pinturas são também o tamanho exato do colchão. As migalhas, feitas de tinta acrílica, são posteriormente aplicadas e tentam reproduzir migalhas de pão ou biscoitos. Existe de facto uma relação entre o plano horizontal (do corpo/do quotidiano) e o vertical (da pintura/do sonho) que me interessava muito explorar neste trabalho. Sempre gostei da cama do Rauschenberg, por exemplo. Uma outra referência que gosto em relação a esta ideia, é o de um texto de R. Krauss [em Optical Unconscious] a propósito da verticalidade nas pinturas do Pollock, o facto da tinta não escorrer. Neste caso penso que também é importante as migalhas estarem fixas, não caírem. Tento que existam várias camadas, criando alguma tensão entre um território abstracto e autónomo na pintura, e a literalidade das histórias e das formas. É quase um abstraccionismo sentimental, ou formalismo nostálgico”. 

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João Marçal, vistas gerais da exposição INNER 8000er, Pavilhão Branco, Galerias Municipais de Lisboa. Cortesia do artista e Galerias Municipais/Egeac. Fotos: Bruno Lopes.

 

Para o espectador completar

Esta dialética reaparece nas outras exposições embora em graus e significados diferentes. Torna-se razoavelmente patente nos dípticos em que Michael Biberstein representa paisagens, contrapondo-lhes superfícies monocromáticas que permitem ao espectador — nas palavras do artista, numa entrevista com o comissário [3] — reflectir sobre a profundidade ilusória e qualidade da superfície. Esses monocromos, contudo, não são pinturas, como Delfim Sardo nota, mas simples tecidos negros de algodão, que “capitalizam a memória histórica do monocromo desde Rodschenko e Malévitch como luto da pintura”. O que interessa aqui salientar é que essa conjunção do monocromo com a paisagem, mesmo sendo interior e não realista, parece corresponder, de algum modo, à ideia desse movimento pendular.

Já as pinturas de Azimute de Pedro Vaz lidam de um modo mais directo e vivencial com a paisagem. O exterior, o que está fora da pintura, ganha uma ressonância mais concreta, quase documental. As imagens remetem para a vivência de um caminho, para a experiência de uma geografia, nos picos da Serra da Estrela. Neste caso, a relação com o género não é apenas conceptual ou influenciada pela sua história, mas nasce da memória de uma relação física com um lugar. Diz o artista: 

No meu trabalho, a paisagem é a fórmula do modo como me relaciono com a natureza. Ela depende de uma experiência, e não de uma visão dela, que são coisas distintas. A relação corpórea com a natureza é a condição para a paisagem ser formulada. A visualidade é um campo essencial na expressão artística em que me movimento, mas, no entanto, ela aparece incluída na experiência presencial física. Digamos que é o olhar levado pelo corpo, em vez do corpo ser levado pelo olhar.”

Refira-se que, na Galeria 111, as pinturas não constituem em si mesmas um mundo, mas ameaçam expandir-se à arquitectura, numa instalação que aponta à tridimensionalidade. Destituídas de moldura, evitam definir os seus limites, para ameaçar transcendê-los. Por outro lado, o que se vê é também matéria, pura superfície, representação de uma experiência da visão e do corpo ou memória dessa experiência, abertura de um espaço para o espectador. Regressemos às palavras do artista, agora a propósito do seu processo de trabalho:

“A primeira pintura que levo a cabo é praticamente figurativa e é seca até aproximadamente cinquenta por cento, com uma pistola de ar quente. A isso segue-se uma lavagem com uma mangueira de água corrente. Através deste processo é retirado o excesso de informação e aberto um espaço vazio que pode ter diversas leituras, mas que para mim é a abertura de espaço para o espectador completar o que falta, e se poder ligar à paisagem. Da minha experiência, a intervenção do espectador aumenta quanto mais apagadas forem as pinturas”.

 

Cópia de © DMF 2018 Jorge Queiroz ZDB-9597
Cópia de © DMF 2018 Jorge Queiroz ZDB-9585
Cópia de © DMF 2018 Jorge Queiroz ZDB-9579
Cópia de © DMF 2018 Jorge Queiroz ZDB-9600
Cópia de © DMF 2018 Jorge Queiroz ZDB-9618
Cópia de © DMF 2018 Jorge Queiroz ZDB-9611
Cópia de © DMF 2018 Jorge Queiroz ZDB-9575
Cópia de © DMF 2018 Jorge Queiroz ZDB-9615
Cópia de © DMF 2018 Jorge Queiroz ZDB-9651
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Cópia de © DMF 2018 Jorge Queiroz ZDB-9639
Cópia de © DMF 2018 Jorge Queiroz ZDB-9641
Cópia de © DMF 2018 Jorge Queiroz ZDB-9629
Cópia de © DMF 2018 Jorge Queiroz ZDB(3)-9656

Jorge Queiroz, vistas da exposição A invenção do Sim e do Não. ZDB, Lisboa. Fotografias: Daniel Malhão. Cortesia do artista e ZDB.

A marca do trabalho manual

Na exposição de Jorge Queiroz, a relação interior-exterior, o processo exógeno-processo endógeno da arte, afiguram-se mais esbatidos, diluídos. De que modo as pinturas de A Invenção do Sim e do Não saem de si mesmas ou rementem para um exterior, para o mundo? A existir um fora-de-campo, pode tratar-se da história da pintura, do próprio corpo da obra do artista, de fragmentos de figuras, silhuetas, situações vistas e recordadas. A sensação, porém, é que tudo o que pintura representa ou pode representar, dissolvido, fundido, é da ordem da pintura, pertence à pintura de Jorge Queiroz. A distorção, a aparição e a desaparição de motivos e contornos, a deriva, o fluxo pertencem à pintura, àquelas telas. Se permitem que as exploremos, que as sondemos, não deixam de se constituir como mundo em si mesmas, com as suas coordenadas cromáticas e espaciais. E esta é uma autonomia que chega a ser material, orgânica. Com efeito, há algo de líquido, de móvel, de coagulante, de carnal. Embora suspensas, reificadas, estas pinturas movem-se, animadas, como se vivas. O encontro das cores, o lastro das pinceladas cria fissuras, buracos, uma incandescência volúvel. E, no entanto, é pertinente pensar nelas como outra coisa. Dê-se a palavra a Natxo Checa, curador da exposição:

“Quando se olha para uma porção considerável dos trabalhos de Jorge Queiroz, como se pode fazer nesta exposição, é muito natural que se coloque a hipótese de cada uma destas peças fazer parte de um longo e, cada vez, mais sofisticado jogo, no qual o artista testa os limites da sugestão como estratégia basilar para o estabelecimento de uma relação com o espectador. Contudo, algo de muito diferente é também possível: que estejamos frente a retratos tão fiéis quanto possível do modo como se desenvolve a construção de uma memória. Um esforço que não é só feito de imagens, mas de uma profusão de elementos, de sensações e de intensidades, tantas vezes sobrepostos, confusos e mesmo aparentemente contraditórios”. 

Se o exterior é nas pinturas de Jorge Queiroz um lugar de difícil acesso, tal o poder centrifugador das suas pinturas, a presença da mão, o trabalho manual é incontestável, inclusive nas imagens em que as superfícies são mais monocromáticas ou lisas. As marcas da mão do artista, a singularidade, a subjectividade do seu fazer, aquilo a que poderíamos chamar de estilo atravessa toda a exposição. Esse é outro aspecto da sobrevivência da pintura que Delfim Sardo assinala no seu livro, a superação de um dos medos modernistas mais marcantes, o medo da manufatura" [4], e que as exposições replicam, embora com alcances distintos: se nas pinturas de Pedro Vaz esse gesto é discernível, nas propostas de João Marçal, com a evocação dos padrões industriais, aparece subentendido, escondido, disfarçado, embora não eliminado, como esclarece o artista:

“Nunca tenho a intenção de apagar o trabalho manual, pelo contrário, gosto de preservar algumas subtilezas que permitam, a quem vê a obra, poder reconstruir o processo. Na série "Migalhas", por exemplo, os elementos resultam da repetição de um mesmo gesto, mas no final todas as marcas são diferentes. Acaba por ser um trabalho com um lado performativo. Na peça com som há um triângulo a lápis, alguns centímetros ao lado de outro que está pintado, que se pode ver, tendo alguma atenção, embora esteja um pouco apagado por camadas de branco. Na altura, considerei que não o devia apagar completamente para que se pudesse perceber o processo manual. A pintura a azul vertical com a ‘gema’ amarela, tem um escorrido na lateral que, na minha opinião, dá uma leitura diferente a toda superfície”.

Concentração e dispersão

Se a marca da mão é um tópico debatido e, porventura, ultrapassado no âmbito da morte da pintura, como pensar o processo de decisão do artista face à profusão de imagens e referências que cumulativamente formam um arquivo à sua disposição? Atente-se na série Remote, de João Marçal. Será pertinente interpretar as capas das cassetes como modelos, referências, objectos, imagens para serem imitadas ou, melhor, representadas? Nesse caso, o que representam? E que de modo o resultado desse gesto extravasa, na direcção da realidade, o campo que é intrínseco ao processo criativo? Sobre a série, diz-nos João Marçal:

“São pinturas a acrílico, pintadas à mão com recursos pontuais a fita-cola, para execução de algumas máscaras. O suporte são painéis de madeira preparados com gesso. Normalmente, recorro a imagens já com alguma maturação na minha cabeça, memórias de infância, elementos gráficos datados, formas e padrões nostálgicos. Demoro algum tempo a decidir avançar para um trabalho. A decisão nunca é meramente estética. Esta colecção de cassetes VHS já não existe, foi para o lixo há alguns anos, mas consegui, através da minha memória e também da ajuda da minha mãe e irmã, lembrar-me das marcas e modelos de cassetes, e dos filmes gravados”.

A memória da infância e das imagens, a abstração, as possibilidades da pintura, a cultura vernacular. Será pertinente dizer que esta série de João Marçal representa todos estes elementos? A montante, as quatro exposições suscitam outro “problema”: o da percepção das obras. Como se faz? O que solicitam elas ao espectador? Ainda a respeito da exposição de João Marçal é interessante constatar, diante da série Lençóis, o efeito ótico das pinturas, como se o seu apagamento viesse, paradoxalmente, encadear a vista e contaminar o espaço, transformando-o em puro ambiente. Noutro plano, encontram-se as paisagens ou atmosferas de Michael Biberstein a propósito das quais, refere Delfim Sardo, na entrevista ao artista, suscitam uma atenção não concentrada, mas difusa. Poder-se-ia dizer algo semelhante acerca das pinturas de Jorge Queiroz? Comenta Natxo Checa:

“Uma das características mais marcantes do trabalho do Jorge talvez seja, precisamente, o facto de nos deixar confrontados com uma experiência que vai oscilando entre a atenção concentrada e a atenção difusa. Sobretudo porque a constante metamorfose das formas em manchas, ou da representação em puras intensidades de cor e matéria, obriga a um movimento que bascula entre o reconhecimento e o despiste do sentido, em favor da pura sensação. Na verdade, o encontro com as obras do Jorge produz sempre um movimento, não propriamente uma imagem/instante, como se atravessasse a pintura ao invés de a reconhecer ou identificar o seu assunto, por assim dizer”.

Regresse-se, então, à exposição de Michael Biberstein. Podemos dizer que, ao contrário da de Jorge Queiroz, ela tem um assunto (embora sem a ele se reduzir) e que esse assunto é a paisagem? A resposta será ambígua. Citando Delfim Sardo, diremos “que a relação que o artista estabeleceu com a paisagem assenta no estabelecimento de um campo pictórico que, como um ecrã (com toda a carga projetiva que o termo comporta), não pretende representar paisagens, mas estabelecer um campo visual que se afirma, ele mesmo, como possibilidade de paisagem — necessariamente interior e não correspondente a um qualquer campo visual que lhe é externo e modelar”. Se acrescentarmos, seguindo ainda o raciocínio de Delfim Sardo, que a pintura de Michael Biberstein promove a imersão do espectador, propondo-se como uma pintura imersiva, como experiência global, não pode a sua exposição na Culturgest configurar, a partir das possibilidades da paisagem, uma crítica à pintura como representação e, em simultâneo, uma crítica da mitologia da contemplação?

Seja qual for o sentido da resposta, uma conclusão parece aceitável: como as outras exposições, a retrospectiva de Michael Biberstein sinaliza essa tensão, ou se se preferir, esse diálogo entre, por um lado, a história do suporte, o contexto, a realidade e, por outro, “a autossuficiência radical do interior do pictórico" [5]. E a consciência de que o mundo que o artista “pinta” "não é necessariamente constituído por coisas, mas por relações, conexões, semelhanças, metáforas e outras entidades (...) [6].

João Marçal | Galerias Municipais

Jorge Queiroz | ZDB

Michael Biberstein | Culturgest

Pedro Vaz | Galeria 111

José Marmeleira Jornalista e crítico nas áreas da música pop e da arte contemporânea. Colabora no jornal Público e na revista Time Out Lisboa. Lecciona Fundamentos do Jornalismo na Universidade Europeia e está a realizar o doutoramento em Sociologia no Instituto de Ciências Sociais (ICS-UNL). 

 

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Vistas da exposição Michael Biberstein. Culturgest, Lisboa. Fotos: ©DMF. Cortesia da Culturgest.

Notas:

Delfim Sardo: O Exercício Experimental da Liberdade (Orfeu Negro, 2017)  

[1] Ver páginas 56-57

[2] Ver páginas 55-56

[3] A publicar no livro da exposição

[4] Pág. 85

[5] Pág. 94

[6] Pág. 97, 98

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