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O Efeito do Observador

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José Marmeleira

 

À volta da fotografia na Coleção Norlinda e José Lima no Centro de Arte Oliva.

 

O Efeito do Observador: À volta da fotografia na Coleção Norlinda e José Lima patente no Centro de Arte Oliva, com a curadoria de Pablo Berástegui Lozano não é uma exposição temática, isto é, não se submete a um tema ou um assunto. Se parte de uma proposição ou se se inspira numa ideia — neste caso, o fenómeno do efeito do observador da física quântica, que avalia as alterações provocadas pela observação na realidade — não se lhes reduz. Afinal, trata-se, também de uma exposição que participa na apresentação pública de uma colecção, que dá a ver, pela primeira vez, certamente, a muitos visitantes, obras pouco, senão raramente, vistas.  O significado da descoberta é um dos seus elementos. No espaço do Centro de Arte Oliva, o visitante tem a oportunidade de apreciar, por exemplo, uma obra como The Bronx de Sophie Calle, de revisitar o trabalho fotográfico de Júlia Ventura, de reencontrar a produção de Carlos Roque ou de ver, porventura pela primeira vez, uma obra de Carlos Azeredo Mesquita.

A exposição procede da fotografia — que, em termos disciplinares, surge privilegiada — para encetar aproximações subtis ao desenho, à instalação ou à pintura, entendidos, também, enquanto modos de percepção e observação humana. Nestes termos, a questão inicial poderia reformular-se: o que podem esses modos, que são os da arte, mudar no mundo? Na condição de espectadores, é pouco provável que o nosso olhar venha, por si só, a transformar o mundo, nomeadamente se esse olhar for contemplativo. Contudo, se por si não transforma o mundo, ao ser movido pela experiência artística, pode alterar a nossa relação com o mundo. Reformulando: o nosso olhar é transformado pelas obras o que equivale a dizer que o nosso pensar sobre o mundo e, em certo sentido a nossa acção (por mais ínfima que seja) se fazem depois das obras. Esta experiência ressalta diante de Le Passeur (2008) de Filipa César, de Magical Land [from the Mozambique series] de Ângela Ferreira ou com a fabulosa, e já referida, série The Bronx (1980) de Sophie Calle que a exposição permite descobrir e redescobrir.

O mundo em termos físicos, concretos e até sociais, pode persistir, mas passado o encontro com cada obra artística e — passe o cliché — não somos os mesmos. A nossa percepção do mundo, a nossa sensibilidade à memória da resistência política, à vida na cidade de Nova Iorque ou às experiências pós-coloniais afinam-se. Mas não só: a própria obra é modificada por cada experiência, sem deixar de ser a mesma. Expande-se mediante as suas condições de possibilidade. Não a encontramos do mesmo modo, nunca repetimos a reflexão anterior que nos provocou, aquela do encontro passado. As ideias que cada trabalho estimula, em cada momento, são sempre outras ideias. Por exemplo, diante do manequim humano de Noé Sendas (Unsaid, 2000) ou das cores e dos cadernos de imagens de Ângelo de Sousa.

Reconhecer que a experiência da obra modifica a perceção da obra é uma condição para que outra faculdade se possa manifestar. A de perceber a porosidade entre disciplinas, imagens ou formas, de compreender e jogar com o facto de as fronteiras entre as linguagens se terem esbatido e diluído, pondo em causa as suas essências. De enfim, reconhecer a dispersão da arte, a sua condição de fluxo de fluxos, o seu ecletismo contra o estilo histórico ou a síntese da classificação. Neste sentido, há obras numa transformação aparente diante do observador. Quase se poderia dizer que se alteram com a presença deste. O vídeo S. Paulo 24/9/2001 de Rui Toscano pode ser tomado por uma imagem fixa, mas percebe-se no seu interior a presença de um discretíssimo movimento. Já Gasse mit Platanen, Wuhan (1997) de Thomas Struth é uma imagem fotográfica que, por instantes, parece animada por ambientes e atmosferas. Os trabalhos de João Maria Gusmão + Pedro Paiva (O Oculto de 2007) e de João Louro (Highway de 1995) na sua relação com a paisagem, proporcionam uma incerteza semelhante. Qual das duas obras é mais fotográfica? Qual daquelas paisagens é a mais real?

Outros trabalhos solicitam ao observador outra coisa para além da mera percepção: memórias (de experiências), uma cultura, porventura, uma certa familiaridade com a história das imagens e os lugares retratados.

São estes elementos que transformam a realidade documentada em série Posto de Trabalho (2013) de Valter Vinagre ou as imagens de performances musicais da instalação de Ângela Ferreira. Por vezes, é a percepção do próprio espaço da (exposição) que as obras, ainda que subtilmente, alteram. Torna-se cenográfico com a escultura de Noé Sendas ou transporta-nos para o domínio sensorial da natureza num dos lados de Le Passeur de Filipa César. O efeito do observador corresponde, afinal, à liberdade de todo do espectador para se apropriar das obras, de acordo com os desígnios dos artistas ou indiferente às suas intenções ou propósitos.

Comparada com a actividade do espectador, a dos artistas é, por assim dizer, menos discreta. Eles intervêm diretamente no mundo, fazem deste, inevitavelmente, o seu material. A sua observação é menos distante e não raras vezes, altera o objecto sobre o qual se realiza. É precisamente nessa posição que alguns trabalhos nos colocam, em particular, e de novo, Le Passeur de Filipa César ou, de um modo diferido, The Radiant City/The Others (Brussels) de 2013, uma série surpreendente de Carlos Azeredo Mesquita ou The Bronx de Sophie Calle, trabalho que se altera a cada olhar. Como o descrever? Fotografia, literatura, jornalismo, antropologia, documento? Poder-se-ia dizer que todas as imagens fotográficas, em si mesmas, participam dessa transformação. Afinal são enquadramentos da realidade, pedaços do visível, imagens de percepções ou percepções fabricadas. Veja-se as imagens fotográficas, entre si tão distintas, de João Maria Gusmão + Pedro Paiva, de Daniel Blaufuks ou André Cepeda. Se não transformam ou transformaram a realidade, resultaram de uma acção sobre a realidade, para num momento posterior, alterarem a nossa percepção da realidade da arte e do mundo.

O observador, na condição de espectador ou artista, não logra transformar, por si só, o mundo. O que ele adquire, pela arte, é um aguçar da sua actividade. É o olhar ou o ver, dela constituintes, que são continuamente transformados. Nesse processo, talvez, isto é, sem certezas, algo do mundo possa vir a ser tocado. E, levemente, deslocado.

 

Centro de Arte Oliva

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 








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O Efeito do ObservadorÀ volta da fotografia na Coleção Norlinda e José Lima no Centro de Arte Oliva. Vistas gerais da exposição. Fotos: Dinis Santos. Cortesia de Centro de Arte Oliva.

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