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Leonor Antunes: a seam, a surface, a hinge or a knot

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Sofia Lemos

Em 1951, Angelo e Sabina Masieri encomendaram a Frank Lloyd Wright o projecto de uma moradia em Veneza. Projectada sobre o Grande Canal e na proximidade da ponte do Rialto, circunstâncias pessoais determinaram como a Senhora Masieri viria a colaborar estreitamente com Wright no desenho de uma residência e biblioteca para estudantes de arquitectura no Istituto Universitario di Architettura di Venezia (IUAV). Envolto em polémica, uma vez que os urbanistas se opuseram fortemente à fachada moderna do edifício, o projecto acabou por ver ser chumbada a licença para construção. Em 1968, Carlo Scarpa (1906-1978) recebeu a comissão, mas só em 1973 é que o projecto foi aprovado pela câmara municipal. Um dos projectos mais relevantes de Scarpa em Veneza, a Fondazione Masieri foi finalmente inaugurada em 1983, mas a contribuição de Savina Masieri continua em grande parte esquecida.

Masieri e Egle Trincanato (1910-1998), que foi director do Museo di Palazzo Ducale, professor da Accademia di Belle Arti di Venezia e director do Instituto de Restauro da Universidade de Arquitectura de Veneza, são duas das vozes de a seam, a surface, a hinge or a knot que Leonor Antunes cita [1] A representação oficial portuguesa da 58ª Bienal de Arte de Veneza 2019, com curadoria de João Ribas, une os modos como as práticas de transmissão, tradução e anotação operam enquanto formas de encontro intergeracional, e de como o estabelecimento de genealogias alternativas faz parte de um trabalho fundacional de produção de formas mais justas de conhecimento.

A investigação de Antunes introduz um gesto elegante, quase monumental de resistência e reconhecimento de estruturas de citação—aquelas práticas através das quais o racionalismo moderno é continuamente reificado. Como escreve Sarah Ahmed, “Descreveria a citação como uma tecnologia reprodutiva bastante bem-sucedida, uma forma de reproduzir o mundo em torno de certos corpos”[2].

Através da sua prática, a artista tem trabalhado consistentemente para desmontar a obliteração sistemática do legado de artistas, arquitectas e designers mulheres na história do modernismo, ao apresentar uma ética feminista da relação.

Esta prática também inclui a desmontagem de um acesso privilegiado a práticas intelectuais, que relegou ofícios, intercâmbios e artes locais para formas secundárias de produção de conhecimento.

Muitas vezes entendida como site-specific, a abordagem de Antunes pode ser melhor descrita como um processo de imersão em histórias locais e no seu meio. Ribas descreve esta metodologia como “context-specific”, ou seja, uma resposta a histórias globais de modernismo e as suas obliterações. Em a seam, a surface, a hinge or a knot, Antunes transforma o Palazzo Giustinian Lolin num espaço de encantamento, onde referências a Scarpa, Trincanatto e Masieri surgem ao lado de Franco Albini (1905-1977) e Franca Helg (1920-1989) — introduzidas mais cedo este ano nas exposições The last days in Galliate no Hangar Biccoca, em Milão, e na colectiva And Berlin will always need you na Gropius Bau. Iluminando e ocupando verticalmente o espaço, as suas formas são transformadas em esculturas feitas de mogno, cinzas e tília, entre outros materiais orgânicos, para os quais a artista colaborou com mestres carpinteiros e trabalhadores em couro, incluindo a Falegnameria Augusto Capovilla, uma célebre carpintaria veneziana que colaborou extensivamente com Scarpa.

É passada a entrada do Palazzo que a artista oferece pela primeira vez um cenário de ressonâncias. O visitante caminha sobre discrepancies with C.Z. #1, uma peça de chão feita de cortiça e um pano de fundo singular para discrepancies with C.Z. #2-3 (todas de 2019), duas esculturas feitas de madeira de tília, latão e aço que funcionam como biombos. Conduzindo ao Grande Canal, o pátio é iluminado por dois candeeiros desenhados por Trincanato para o Istituto Nazionale per L’Assicurazione Contro gli Infortuni sul Lavoro (INAL) em Veneza. No ‘piano nobile’, cada elemento formal começa a ganhar consistência como uma prefiguração anotada da sua memória. Aqui chegados, descobrimos discrepancies with Egle (2019), uma série de 153 perfis de alumínio revestido e aço que funcionam como elementos recorrentes ao longo das três galerias, baseadas nos displays expositivos de Trincanato. Há, sem dúvida, um sentido de diferença e repetição.

A inversão da escala e o volume dos objectos, entre o detalhe e a sua relação com uma escala humana, são elementos recorrentes na prática de Antunes. Egle (2019) é o título de uma série de doze candeeiros de vidro e latão, azuis e vermelhos, para os quais Antunes colaborou com sopradores de vidro em Murano, cada sala com a sua cor. Gae é uma série de quatro esculturas verticais feitas de aço inoxidável, couro e fio que, em conjunto com nove esculturas de madeira, borracha e latão, Savina e Carlo (todas de 2019), chegam ao tecto da galeria desvendando como a citação simbolicamente se materializa e fragmenta.

a seam, a surface, a hinge or a knot dedica também um amplo programa de performances a Éliane Radigue (n. 1932), pioneira francesa da electroacústica sobre a qual escrevi num ensaio que pode ser lido aqui. A graciosidade do seu solo OCCAM e das peças para conjuntos revelam-se com uma imponente gravidade no Palazzo. Intitulada a partir das perspectivas de William of Ockham de que a opção mais simples é sempre a melhor, Antunes liga as suas genealogias feministas da escultura a tons e séries harmónicas efémeras. Partindo da provocação de Ahmed, “A citação é a forma como reconhecemos a nossa dívida àqueles que vieram antes de nós; àqueles que nos ajudaram a encontrar o nosso caminho quando este não era claro, porque nos desviámos dos caminhos que nos diziam para seguir”[3], a seam, a surface, a hinge or a knot de Antunes é um esforço afectuoso em direcção às artes que encarnam e politizam a relação.

O Pavilhão de Portugal foi encomendado pelo Governo de Portugal — Ministério da Cultura — Direcção Geral das Artes. Uma publicação que inclui ensaios de Briony Fer, Suzanne Cotter, Ana Teixeira Pinto e João Ribas, bem como um ensaio visual de Antunes baseado nos desenhos de Trincanato, será publicada pela Sternberg Press. O programa ao vivo continua com a série OCCAM de Rádigue a 7 Setembro e 24 Novembro. A exposição está patente no Palazzo Giustinian Lolin, em Veneza, até 24 de Novembro de 2019.

Leonor Antunes

Direção Geral das Artes

Bienal Internacional de Arte de Veneza

Sofia Lemos é curadora de artes visuais, escritora e investigadora sediada em Nottingham e em Berlim. É Curadora do "Programa Público e Investigação" de Nottingham Contemporary, Reino Unido e co-fundadora (com Alexandra Balona) de PROSPECTIONS for Art, Education e Knowledge Production.

 

Traduzido do inglês por Gonçalo Gama Pinto

 

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In 1951, Frank Lloyd Wright was commissioned to design a dwelling in Venice by Angelo and Savina Masieri. Projected onto Canal Grande and near the Rialto bridge, personal circumstances determined how Mrs. Masieri was to closely collaborate with Wright in designing a residence and library for architecture students at the Istituto Universario di Architettura di Venezia (IUAV). Mired in controversy as the city planners strongly objected to its modern façade, the project was eventually denied building permission. In 1968 Carlo Scarpa (1906-1978) received the commission, yet it was not until 1973 that the project was approved by city officials. One of Scarpa’s most relevant designs in Venice, the Fondazione Masieri finally inaugurated in 1983, yet Savina Masieri’s contribution remains largely forgotten. 

Masieri alongiside Egle Trincanato (1910-1998), who served as director of the Museo di Palazzo Ducale, professor of the Accademia di Belle Arti di Venezia, and director of the Institute of Restoration of the University of Architecture of Venice, are two of the voices Leonor Antunes’s a seam, a surface, a hinge or a knot carries forward in citation [1] The official Portuguese representation at the 58th La Biennale di Venezia Biennale Arte 2019, curated by João Ribas, strings together how practices of transmission, translation and annotation operate as forms of intergenerational encounter, and how establishing alternative genealogies is part of a foundational work of producing more just ways of knowing.

Antunes’ research introduces an elegant, almost monumental gesture of resistance and acknowledgment of citational structures—the practices by which modern rationalism is continuously reified. As Sarah Ahmed writes, “I would describe citation as a rather successful reproductive technology, a way of reproducing the world around certain bodies" [2].

Through her practice, the artist has consistently worked towards disarming the systemic obliteration of self-identified women artists, architects and designers’ legacies in the history of modernism, by putting forth a feminist ethics of relation.

This practice also includes demounting a privileged access to intellectual practices, one that has relegated crafts, trades and local artistry to secondary forms of knowledge production.

Often read as site-specific, Antunes’ approach is better described as a process of immersion in local histories and their milieu. Ribas describes this methodology as “context-specific,” in other words, a response to global histories of modernism and its obliterations. In a seam, a surface, a hinge or a knot, Antunes transforms the Palazzo Giustinian Lolin into a space of incantation where references to Scarpa, Trincanatto, and Masieri appear along with Franco Albini (1905-1977) and Franca Helg (1920-1989)—introduced earlier this year in the exhibitions The last days in Galliate at Hangar Biccoca, Milan, and at the group exhibition And Berlin will always need you at Gropius Bau. Vertically occupying and illuminating the space, their designs are transformed into sculptures made from mahogany, ash and lime wood, among other organic materials, and for which the artist collaborated with master carpenters and leather workers, including Falegnameria Augusto Capovilla, a renowned Venetian carpentry that worked closely with Scarpa.

It is upon entering the Palazzo that the artist first offers a scene of resonances. The visitor steps onto discrepencies with C.Z #1, a cork floor piece and singular backdrop punctuated by discrepencies with C.Z #2-3 (all 2019), two lime wood, brass and steel sculptures that function as screens. Leading onto Canal Grande, the courtyard is further illuminated with two lamps designed by Trincanato for the Istituto Nazionale per L’Assicurazione Contro gli Infortuni sul Lavoro (INAL) in Venice. In the ‘piano nobile,’ each formal element begins to cohere as an annotated prefiguration of its memory. Arriving here, one finds discrepancies with Egle (2019) a series of 153 coated aluminium and steel profiles that function as recurring elements across the three galleries, based on the exhibition displays by Trincanato. There is undoubtedly a sense of difference and repetition.

The inversion of scale and the volume of the objects, between detail and its relationship with a human scale, are recurrent elements in Antunes’ practice. Egle (2019) is the title for a series of twelve blue and red coloured glass and brass lamps for which Antunes collaborated with glassblowers in Murano, each colour with its dedicated gallery. Gae is a series of four stainless steel, leather and yarn vertical sculptures that alongside the nine wood, rubber, and brass sculptures Savina and Carlo (all 2019) rise to the height of the gallery in an insight into how citation symbolically materialises and partitions.

a seam, a surface, a hinge or a knot also dedicates a comprehensive performance programme to Éliane Radigue (b.1932), a French electroacoustic pioneer I have written about in a previous essay here. The grace of her OCCAM solo and ensemble pieces unfolds with stately gravity in the Palazzo. Titled after William of Ockham’s views that the simplest option is always the best, Antunes weaves her feminist genealogies from sculpture to ephemeral partials and overtones. Following from Ahmed’s provocation, “Citation is how we acknowledge our debt to those who came before; those who helped us find our way when the way was obscured because we deviated from the paths we were told to follow,” [3] Antunes’ a seam, a surface, a hinge or a knot is a caring effort towards arts that embody and politicise relation. 

The Pavilion of Portugal was commissioned by the Government of Portugal – Ministry of Culture – Directorate-General for the Arts. A publication featuring essays by Briony Fer, Suzanne Cotter, Ana Teixeira Pinto, and João Ribas, as well as a visual essay by Antunes based on drawings from Trincanato is forthcoming with Sternberg Press. The live programme continues with Rádigue’s OCCAM series on September 7 and November 24. The exhibition is on view at the Palazzo Giustinian Lolin in Venice through 24 November, 2019.

Notes:

[1] My use of the term citation refers to a practice of non-verbal scoring that candidly gives voices to intergenerational and intersectional practices of transmission, translation and annotation. O meu uso do termo citação refere-se a uma prática de anotação não verbal que dá voz a processos de transmissão e tradução intergeracionais e interseccionais. 


[2] Ahmed, Sarah. “Making Feminist Points.” Feminist Killjoys. Web. 11 September 2013.


 

[3] Ahmed, Sara. Living a Feminist Life. Duke University Press Books, 2017. p.17.

 

— Images: Installation views of ‘Leonor Antunes: a surface, a seam, a hinge, or a knot’, Portugal Pavilion, 58th International Art Exhibition of la Biennale di Venezia. Courtesy the artist and Air de Paris, Paris; Marian Goodman Gallery, New York, Paris & London; kurimanzutto, Mexico City & New York; Galeria Luisa Strina, São Paulo. Photos: Nick Ash.

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