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Jesper Just: Servitudes | Circuits (Interpassivities)

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Isabel Nogueira

A Galeria Oval do MAAT propõe ao visitante uma instalação site-specific, que define um percurso por entre andaimes, estabelecendo um enfoque do olhar e da espacialidade. A curadoria é de Pedro Gadanho e de Irene Campolmi; as obras são do artista dinamarquês Jesper Just (n. 1974). A instalação é constituída por dois núcleos. Servitudes é uma vídeo instalação em oito canais, apresentada pela primeira vez em 2015. Circuits (Interpassivities) é uma peça multimédia, de 2018, mostrada pela primeira vez em contexto museológico. Há qualquer coisa de corporal, performativo, etéreo, enigmático e imagético — ao mesmo tempo — no trabalho de Jesper Just.   

Circuits (Interpassivities) acciona mecanismos que ligam o movimento ao som, o ser humano à máquina, a imagem à estrutura tridimensional. O visitante passa por entre uma instalação em que se destacam os fios, as plataformas de madeira ou o martelar ostensivo e mecânico nas cordas de um instrumento. Este instrumento, cujo som é evocativo de um piano através de uma espécie de caixa com cordas e martelos, poderá contemplar uma ligação, à maneira de raccord, com Servitudes, a instalação de grande escala, que ocupa a quase totalidade do espaço expositivo. Esta instalação — composta por ecrãs de grande dimensão, nos quais são projectados oito filmes de nove minutos cada, em loop — é poderosa e levanta diversas questões. Vejamos.

As protagonistas das acções mostradas em cada um dos ecrãs — como janelas que se abrem sobre histórias, ao modo albertiano — são a mesma mulher (Dree Hemingway) e uma menina (Rylee Sweeney). Todas apresentam uma qualquer inquietação, dificuldade, obsessão, atrofia física, ou mesmo uma aparente melancolia. A menina é quem toca o piano a que atrás se fez referência. À medida que o filme se desenvolve, percebemos que a menina tem uma atrofia nos dedos provocada pela doença neurológica de Charcot-Marie-Tooth, contudo, e apesar disso, e contrariamente ao que seria expectável, não parece haver interposição na sua actividade musical. A melodia — Opus 17, de Frédéric Chopin — é encantatória e cristalina. Como, a seu modo, o é a criança. E tudo converge numa beleza transcendental e universal. Como se a falha, ao ser assumida e num processo de auto-superação, formasse, afinal, algo de ainda mais sublime e encantador.

A mulher é sedutora. Em algumas situações olha-nos de frente, como a Olympia de Édouard Manet, sem pudor, em assumida exposição, e até vulnerabilidade. Não estamos certos de ser a mulher ou as imagens da mulher o que mais nos seduz, recordando o conhecido ensaio de Edgar Morin, Le cinema ou l’homme imaginaire (1956), no qual o autor chamava a atenção para o facto de, nos primórdios do dispositivo cinematográfico, o que atraiu as multidões não foi o real, isto é, a chegada do comboio, mas a imagem da chegada do comboio, captada num plano fixo e projectada naquele dia 28 de Dezembro de 1895. As imagens de Jesper Just entram-nos também desde modo exuberante, estando nós, espectadores, agora, num andaime sem saída.

Numa das histórias, uma mulher possui umas mãos robotizadas, que procuram agarrar uma espiga de milho e levá-la à boca. Tentativa atrás de tentativa, a tarefa mostra-se maioritariamente frustrante. Ela olha-nos e repete a acção. Num outro ecrã, a mulher debate-se para dormir. Roda sobre si própria, puxa os lençóis, mexe-se com evidente impaciência. Uma outra história mostra-nos a mulher a proferir frases soltas, aparentemente sem grande sentido. Neste ecrã, a determinada altura, surge uma bela e poderosa imagem da mulher de costas a olhar a imensa paisagem de Manhattan, numa clara solidão, pós-11 de Setembro.

Esta solidão é partilhada connosco, que, sós, também olhamos inevitavelmente pela mesma janela. E de novo a ideia de janela: a janela-ecrã e o ecrã sobre a própria janela, num movimento de mise-en-abyme.  

Efectivamente, a melancolia e a beleza da imagem perpassam todo o espaço da galeria. Do ponto de vista expositivo, parece-nos melhor conseguida esta instalação — Servitudes — do que Circuits (Interpassivities), pois possui inequívoco espaço de respiração, suspensão, tensão, contemplação, existência. No final, tudo poderia voltar ao início, numa organicidade sedutora, mas, ao mesmo tempo, num qualquer limite do desespero. Há no ar uma elegância que aparentemente vai conseguindo contê-lo. Não se sabe ao certo até quando. A explosão parece iminente, como uma dor fina que sobe e desce, e que se torna mais aguda ou mais discreta. No final, fica-nos ainda uma poética da inevitabilidade e a beleza de uma certa aceitação que redime e eleva. As imagens, à sua maneira, podem representar-nos, e apropriamo-nos, ao sentir isso, das emoções que potencialmente nos despertam. Quer dizer, empatizar com elas.

Em suma, trata-se de um instalação envolvente não só do ponto de vista da plasticidade imagética, mas também pelo potencial emotivo, poético, que pode suscitar. A grande dimensão dos ecrãs naturalmente que para tal contribui, assim como para a relação individual, isto é, cada história parece ser capaz de cultivar um tipo de recepção intimista, individual. E tudo pode inevitavelmente voltar ao começo.

Jesper Just

Maat — Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia

Isabel Nogueira (n. 1974). Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte (Universidade de Lisboa) e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne). Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014); "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015); "Théorie de l’art au XXe siècle" (Éditions L’Harmattan, 2013); "Modernidade avulso: escritos sobre arte” (Edições a Ronda da Noite, 2014). É membro da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte).

 

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Jesper Just. Vistas gerais da instalação Servitudes | Circuits (Interpassivities). MAAT — Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e MAAT — Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia. Fundação EDP.

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