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O Olhar Divergente — As Residências Artísticas do Pico do Refúgio como património prospetivo

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José Marmeleira

O Olhar Divergente é uma exposição que dá a ver uma multitude de experiências num lugar. 

Em O Olhar Divergente, no Centro de Artes Contemporâneas Arquipélago, nos Açores, as fotografias de António Júlio Duarte documentam e, ao mesmo tempo, enganam à prova do documental. O que o espectador vê, em certa medida, o artista também viu, mas o primeiro tem dificuldade em atribuir um sentido preciso às imagens. De onde vêm, o que representam? Por momentos, e embora possa saber onde foram realizadas, há algo que o desorienta, uma leve perturbação. E sem aviso, impercetível, o deleite da ficção instala-se. Nem por isso, a presença do real se apaga. O trabalho que o artista expõe no centro de artes açoriano tem uma proveniência irrefutável: foi realizado no programa de residência artísticas organizada por Luís Bernardo Brito e Abreu no Pico do Refúgio, em Ribeira Grande, São Miguel. Não poderia ter existido de outro modo. António Júlio Duarte encontrou, enquadrou, captou e revelou imagens: a do chão vulcânico de um charco, e a de uma figura que vemos de costas. O facto de haver um elemento comum — a tonalidade castanha e laranja do chão — sugere que possam ter sido feitas no mesmo lugar ou no mesmo dia, mas a capacidade transformadora da fotografia modera qualquer convicção perceptiva. Aquele lugar está ali e ao mesmo tempo já não é aquele lugar ali. Esta volubilidade das coisas e dos seres nas imagens e no mundo resulta de um modus operandi característico de António Júlio: aceitar o que lhe aparece, como foi dado à sua atenção sensível e ao seu gesto. A saber, a paisagem, no seu carácter mais delimitado, e o quotidiano do trabalho e da vida nas residências. Foram estes elementos que o projecto concebido por Bernardo Brito e Abreu lhe consagrou e a todos os outros artistas de O Olhar Divergente. Comissariada por Miguel von Hafe Pérez, esta exposição colectiva, na sua generosidade e heterodoxia, faz a revelação pública das experiências e trabalhos. Coloca-os sob a luz do Arquipélago, aceitando e reunindo os reflexos e as intensidades que cada emite.

Começou-se este texto pela prática fotográfica. Ela permitiu a alguns artistas estabelecer uma relação mais directa com a paisagem e o lugar. Reagiram ao que encontraram, sofreram o espanto do que viram antes de fotografar. E a exposição logra comunicar esse sentimento ao visitante acautelando a particularidade das propostas.

Da também cineasta Cláudia Varejão, o retrato fotográfico de um cavalo aparece vertical, na sua digna fragilidade o corpo branco a recortar-se do escuro. Faz parte de um projeto que a artista está a desenvolver sobre a fisionomia dos rostos e a parecença que vai caracterizando diferentes sujeitos depois de muitos anos de convívio e co-habitação. Mas ali, sem esse contexto, é a aparição do animal, tão real quanto fantasmática, que resplandece para lá do lugar onde foi feita. Algo de semelhante se poderia dizer da fotografia de Tito Mouraz que dá a ver a presença da vegetação, com sua impercetível força, a cobrir um muro de pedra. Falar-nos-á da ilha, da sua paisagem, da construção humana sob o avanço indiferente da natureza? Ou do contraste entre diferentes matérias e cores? Porventura de ambos, permitindo a quem vê fazer a sua própria montagem.

O trabalho de Daniel Blaufuks habita precisamente o interstício que separa o lugar da Ilha do lugar do artista. Composto de quatro séries de imagens fotográficas, que haviam sido mostradas na exposição O Monte dos Vendavais, na Galeria Fonseca Macedo, em São Miguel, explora o universo temático, intelectual e sentimental do artista, permite desenhar, nas paredes, um “arquipélago” metafísico, poético, artístico. Um dos conjuntos resultou de visitas ao interior do Hotel Monte Palace, situado junto ao miradouro da vista do Rei. Com vista para a Lagoa das Sete Cidades, a construção permanece abandonada há 28 anos, e foram, precisamente, as suas paredes, varandas, corredores, passagens, salas, terraços esvaziados pelo tempo que Blaufuks resgatou. Sem a presença de figuras humanas, são apenas elementos arquitectónicos sujeitos à paciente erosão dos elementos naturais. Há nesta série um encantamento pelo desencantamento da perda e do fim, ânimo que se expande à série realizada na casa, então abandonada, do escultor açoriano Canto da Maia. Blaufuks é um flâneur admirado por aquilo que já não é (o passado) e por aquilo que ainda não é (na incógnita de um futuro suspenso). Nutre e exprime uma sensibilidade pelas sombras que as memórias projectam nos lugares, pelo encontro da luz exterior com os limites e fronteiras das coisas que o tempo reclamou. E, no entanto, há momentos em que a luz fixa as coisas, e as palavras dão-lhes sentido, como acontece na sequência de polaroids feita na freguesia de Mosteiros ou nas imagens, em que, como escreveu o próprio artista no texto da exposição na galeria açoriana, “se eterniza a presença da água e de peças de fruta”. É nesse registo quase diarístico que reside uma possível aporia no fazer de Blaufuks: ele insiste em lembrar aquilo que devia ser alheio à lembrança: a repetição do processo natural de declínio e obsolescência. E ao fazê-lo está a afirmar, pois é um artista, a permanência das coisas.

 

AJD_AÇORES
AJD_DION
Claudia Varejao_hortensia
Jose Pedro Cortes_wood
Jose Pedro Cortes_plastic and coins
Duarte Amaral Netto_Atlantis_004
Marcio Vilela_SL8 Rocket Body
João Paulo Serafim_CAC6272N3
Ana Catarina Pinho_viagem sem retorno_foto 2
Valter Ventura_de A para B
tito mouraz_creditos

 

Noutra latitude, próxima ou contígua à de António Júlio Duarte, estão as imagens de José Pedro Cortes. Nelas, por momentos o visitante não consegue indicar o lugar, o modelo ou a coisa apreendida e composta pela luz. O orgânico confunde-se com o sintético, a sombra com o brilho, o movimento com a paragem, o detalhe com a vista geral. Colocadas lado a lado, formulam uma conjugação dialéctica de cores, lugares e objectos que existem no mundo. E permitem descrever a prática de José Pedro Cortes: a de um respigador das imagens das coisas, nas suas mais inusitadas e inquietantes mutações.

A pintura também assoma na exposição, mediada pelo registo fotográfico. Ana Catarina Fragoso e Pedro Vaz recorreram ambos ao meio antes de iniciarem o trabalho pictórico em processos e com resultados absolutamente distintos. As pinturas da artista, realizadas sobre papel e metal assinalam, pela sua exuberância material e cromática, uma surpresa. Será talvez o trabalho mais próximo e mais distante da paisagem envolvente com as suas cores, fundos e elementos atmosféricos e geológicos. Distante, porque se trata da pintura — com os seus intransponíveis limites, com os elementos que lhe intrínsecos — próxima porque é como se nele ainda estivesse presente (mas já não visível) a impressão que o ser real da paisagem provocou no espírito e no corpo. É esse espanto experimentado pela artista que regressa, pela pintura, ao olhar do visitante.

A abordagem de Pedro Vaz é distinta, uma vez que dialoga com uma representação preexistente dessa paisagem, a realizada pelo pintor, etnógrafo e historiador Luís Bernardo de Ataíde. Desse diálogo não resulta qualquer palimpsesto, mas a partilha, embora separada por um século, do mesmo prazer: o do maravilhamento. O artista deslocou-se aos lugares dos quais o pintor havia feito as suas obras, e, por meio do registo fotográfico, traduziu pictoricamente a sua própria experiência. Nas telas suspensas não se vêem cores quentes, massa, substância — como nas de Ana Catarina Fragoso — mas uma pintura que foi sendo despojada da sua presença material e concreta mais manifesta. Que se tornou num ambiente. Este efeito ressurge no vídeo que o artista apresenta no qual diferentes planos se sobrepõem e se movem, ganham uma natureza fotográfica ou se aproximam do cariz pictórico. A paisagem move-se como se a pudéssemos ver dentro da memória, do pensamento ou da imaginação, fragmentada, nas suas gradações de verde, amarelo, azul, já não apreendida pelos sentidos.

A paisagem é, igualmente, o topos de outras artistas. É estrelar e tecnológica no trabalho de Márcio Vilela, social e humana nas fotografias de Andreia Santolaya, técnica na pesquisa documental de Valter Ventura, arquitectónica no vídeo, nos desenhos nos trabalhos site-specific de Graham Gussin. E, ainda, topográfica na proposta de Miguel Palma. A estas declinações junta-se o encontro com o lugar, entendido como arquivo nos trabalhos de João Paulo Serafim, Duarte Amaral Netto e Ana Catarino Pinho. Ou enquanto palco de uma história que Miguel von Hafe Pérez teve a sensibilidade de trazer para a exposição: a de Luísa Constantina, professora, artista, dinamizadora cultural precocemente desaparecida, mãe de Luís Bernardo Brito e Abreu. É da sua autoria a escultura que nas galerias subterrâneas vemos banhada pela luz natural e é ela que, no mesmo espaço, Thurston Moore (outro participante nas residências do Pico do Refúgio e na exposição) evoca poeticamente. Por fim, foi sobre uma fotografia do seu rosto que Carla Cabanas fez uma comovente colagem. De um recorte de várias profundidades, a artista criou uma espiral de papel, no centro da qual vemos a imagem de Luísa Constantina a ser fotografada por alguém. O espectador vê assim não apenas a fotografia, mas o acto que lhe dá origem: o desejo de eternizar algo ou alguém num lugar. Neste caso, uma mulher apaixonada pela arte e pelos artistas que viveu naquele território, naquela paisagem.

Arquipélago — Centro de Artes Contemporâneas

Pico do Refúgio — Residências Artísticas

José Marmeleira. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação Para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

JOAO PAULO SERAFIM
DANIEL BLAUFUKS
LUISA CONSTANTINA
MIGUEL PALMA
GRAHAM GUSSIN
PEDRO VAZ

Imagens:

Foto de capa: © Daniel Blaufuks. Cortesia do artista e Luís Bernardo Brito e Abreu. 

1º slideshow: António Júlio Duarte; Cláudia Varejão; José Pedro Cortes; Duarte Amaral Netto; Márcio Vilela; João Paulo Serafim; Ana Catarina Pinho; Valter Ventura e Tito Mouraz. Cortesia dos artistas e Luís Bernardo Brito e Abreu. 

2º slideshow: Vistas gerais da exposição "O Olhar Divergente". Fotos: Rui Soares. 

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