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Ficção e Fabricação. Fotografia de Arquitectura após a Revolução Digital 

Fiction and Fabrication exhibition view. MAAT, 20 March - 19 August 2019, courtesy of EDP Foundation. ∏ Bruno Lopes (17).jpg
José Marmeleira

Comece-se com um facto: a presença em Ficção e Fabricação de uma selecção de artistas portugueses. Comissariada por Pedro Gadanho e Sérgio Fazenda Rodrigues, a exposição compreende, também, um conjunto relevante de artistas internacionais consagrados no domínio da prática fotográfica. Abreviando, obras de artistas como Tatiana Macedo, André Cepeda, Edgar Martins, Isabel Brisson ou Mónica de Miranda partilham o mesmo espaço com obras de Doug Aitken, Jeff Wall, Sabine Hornig ou Thomas Ruff. Ou seja, participam todos na mesma conversa sem som, formando uma topografia de ecos, passagens, elos, correntes. E se tal sucede é porque responderam, mediante a fotografia, à paisagem que o homo faber tem vindo a edificar. Evocada, fixada ou manipulada, ela é o pano de fundo e o objecto do trabalho dos artistas: aquela que o intelecto e a mão humana, a técnica e a tecnologia construíram.

Este é um elemento estruturante da narrativa que se estende pela galeria das exposições temporárias do MAAT. Os 50 trabalhos reunidos são imagens fotográficas (embora não apenas) de elementos, produtos e experiências da arquitetura: edifícios, casas, prédios, ruas, interiores, janelas, pontos de vista, detalhes arquitetónicos, fachadas, ruas. Reais e fictícias, emolduradas na parede, sob vitrines, de aspeto escultórico ou bidimensionais, menos ou mais expandidas, distorcidas, desfocadas, manipuladas, com ou sem a presença humana. É entre as superfícies e os objetos, percorrendo a sala, que o visitante pode construir um percurso, identificando raccords, conexões, atento a disjunções, intervalos, cortes. E, sobretudo, desperto para os enganos, as promessas e as histórias que elas trazem e revelam.

Porque, como o título sugere, esta é uma exposição em que a arquitetura e a fotografia não são o que parecem.

As duas surgem enquanto fabricação e ficção, interpelando o espectador, na expectativa de que possa articular as faculdades da memória e da perceção na mesma experiência. Memória do espaço urbano, da construção, da cidade, da arquitetura, da história; e perceção das imagens fotográficas. Portanto, se a primeira, talvez lide, sobretudo, com questões sociais, políticas e históricas, a segunda defrontar-se-á com problemas que são intrínsecos à natureza da própria fotografia: o seu carácter indexical, documental, a sua relação dúbia, limitada com a verdade, a capacidade de produzir ilusão e ficção, de ampliar ou obscurecer detalhes, modelos e motivos. É precisamente no interstício entre o político/social e o artístico (entendido como mecânica interna do fazer) que Fabricação e Ficção encontra o seu eixo conceptual e hermenêutico.

A questão do digital e a invenção do Photoshop são elementos norteadores, mas a exposição não se esgota numa tematização. Poder-se-ia dizer que são, sobretudo, as modalidades do trabalho fotográfico na crítica e na representação da arquitetura que assomam como fio condutor.  E nelas, a enfâse numa das potencialidades da própria prática: a manipulação das imagens ou, para se ser mais rigoroso, a sua produção inventiva, exploratória, exacerbada pelas técnicas digitais da computadorização. Num sentido que, frise-se não é apenas disciplinar ou autorreflexivo, mas mundano, extra-artístico. Note-se por exemplo, as correspondências entre os trípticos de Antoni Muntadas e a fotografia de Bas Princen. Em termos formais e estéticos não serão próximas, mas ambas aludem à relação entre arquitectura e formas imateriais, não visíveis de controlo ou de dominação, sejam regimes políticos, conglomerados financeiros ou económicos. Outro exemplo é dado pelo modo como Isabel Brisson e Martha Rosler exploraram, na fotografia, as possibilidades da manipulação digital enquanto colagem; a primeira desenhando uma construção imaginária, uma metáfora visual de Portugal em termos arquitetónicos, urbanos e políticos, enquanto Rosler introduziu no interior arquitetónico (da esfera privada) referentes e signos que deslocam o lugar do espectador para realidades que transcendem o domínio da superfície fotográfica. Diante de uma e de outra, o visitante é confrontado com as violências que se escondem por detrás ou dentro da arquitetura.

 

A par destas correspondências, encontram-se claros núcleos temáticos. Por exemplo, aquele que dialoga com uma certa modernidade na arquitetura, com peças de Veronika Kellndorfer, Céline Condorelli, Rodrigo Oliveira, Lucia Koch ou Inés Lombardi. Neste caso, a manipulação ou uso do digital, permite aos artistas pensar certas obras (nomeadamente as de Lina Bo Bardi, Carlo Scarpa, Rino Levi, Le Corbusier ou Óscar Niemeye) fazendo-as aparecer transfiguradas, fragmentadas nos seus elementos mais subtis, ressuscitando as suas possibilidades, propostas ou, até, aspirações. Rodrigo Oliveira e Céline Condorelli dão-nos a explorar a sensualidade da cor e das formas, Lucia Koch recria, pela luz e o cartão, o encontro com uma passagem, Veronika Kellndorfer encena a experiência da fotografia e da arquitectura como transparências. Por vezes, a própria imagem torna-se objecto, ganha tactilidade (Aglaia Konrad) ou volume (Condorelli), ou vai desvelando a ilusão que a constitui, solicitando ao visitante uma capacidade de espanto e pensamento reflexivo (de novo, Lucia Koch). De algum modo, é como se estes artistas introduzissem o espectador dentro das obras que evocam, numa experiência mediada, diferida, “reencantada” das relações entre o interior e o exterior, a luz e sombra, iluminando ou obscurecendo passagens e espaços fechados, fachadas e fundos, animando ressonâncias temporais e espaciais.

Aquilo que se vê na superfície da fotografia da arquitetura é outro aspeto abordado. Pode ser um reflexo, um detalhe, um padrão, uma transparência. Uma das qualidades da exposição é precisamente o modo como sugere ao visitante que repare na abstração que o detalhe concentra, nas sobreposições de vidros e superfícies translúcidas, nos interiores que as imagens deixam entrever, nas experiências que arquitetura acolhe e produz. Note-se nas esplêndidas fotografias de Tatiana Macedo ou Sabine Hornig. Há nelas, um pedido mudo: reparem neste mundo de imagens e construções, no contágio que entre elas se produz e que nos condiciona, por vezes, maravilhando-nos.

Saindo do mundo, mas não da fotografia há obras que intensificam a relação com o real, recorrendo à própria abstração (Roland Fisher, Andreas Gursky) ou por meio da distorção e da manipulação que o digital proporciona (Hiroshi Sugimoto ou Thomas Ruff).

A própria arquitetura torna-se fotografia, espaço para intervenções, alterações. Um modelo moldável, um texto aberto às recombinações narrativas da ficção.

Tal gesto pode conter uma efabulação de alcance político, por exemplo nas obras de Jeff Wall ou de David Claerbout. Aí, a arquitetura constrói-se como visibilidade e invisibilidade, passível de ser humanizada pela presença do outro. Pela ficção, transforma-se em lugar de uma potencial pluralidade humana, subvertendo ou suspendendo a sua faceta mercantil e filistina. Em suma, o que estas imagens fotográficas nos dizem é que aqueles espaços são lugares da vida humana e não apenas obras de um cânone. Da ficção, a exposição percorre, em seguida, um caminho que a leva a imaginários futuros, fantásticos, a construções que ainda não existem, como as que Oliver Boberg e Beate Gütschow “documentam”. No seu gigantismo e escala inumana, recordam-nos o processo incessante de construção e inovação destruidor que torna o mundo um lugar inabitável, ou, como as imagens pixelizadas de Jonathan Lewis, sugerem, irreconhecível.

A fotografia tem a capacidade de evocar a arquitetura, de colocar personagens no seu interior, de a ficcionar, de a humanizar, de a resgatar como objeto de uma perceção sensível, na multiplicidade dos seus elementos. Resta saber que influência terá na atividade e nos produtos da própria arquitectura. Se contribuirá para que se esta afirme como puro desígnio de fabricação e ocupação do território e da paisagem, ou se, pelo contrário, no sentido de indagar as suas expectativas, promessas, horizontes. Duas obras assinalam de forma exemplar tal encruzilhada: a instalação de Nicolas Grospierre e o trabalho de Mónica de Miranda. O primeiro, seduzindo o espectador a olhar para um abismo sem fim, o segundo, interrogando-se diante do passado e das possibilidades que ele ainda guarda.

MAAT Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia

José Marmeleira. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação Para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

Fiction and Fabrication exhibition view. MAAT, 20 March - 19 August 2019, courtesy of EDP Foundation. ∏ Bruno Lopes (7)
Fiction and Fabrication exhibition view. MAAT, 20 March - 19 August 2019, courtesy of EDP Foundation. ∏ Bruno Lopes (3)
Fiction and Fabrication exhibition view. MAAT, 20 March - 19 August 2019, courtesy of EDP Foundation. ∏ Bruno Lopes (5)
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MAAT, Fiction and Fabrication exhibition view. Courtesy of EDP Foundation ∏ Bruno Lopes (1)
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Ficção e Fabricação. Fotografia de Arquitectura após a Revolução Digital. Vistas gerais da exposição no MAAT. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da Fundação EDP.

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