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Anne Lefebvre: Kraczevo

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Isabella Lenzi

Uma alquimista

Kraczevo, primeira grande individual de Anne Lefebvre em Portugal, marca o regresso da artista francesa ao país no qual passou um curto, mas importante período, da passagem da vida infantil para a adolescência. Eram os anos da Revolução dos Cravos e respirava-se um ar de liberdade. Anne, que vinha de uma temporada na Bélgica, cinzenta e rígida, logo sentiu a diferença. No mundo ibérico tinha as tardes livres e vivia na rua, na casa de músicos e artistas. “Era um banho de cultura que não se autodenominava cultura. Estávamos sempre produzindo coisas, mas naquela época ninguém falava em arte. Não haviam rótulos nem distinções, tudo acontecia junto e eu era uma esponja, ia absorvendo tudo. No caminho de carro para a escola, de Cascais a Lisboa, preparava tintas. Durante o percurso via nos muros da cidade mensagens revolucionárias. Tudo estava fresco e fui tatuada com esse passado”, conta.

Os anos lisboetas foram fundadores e determinantes na decisão de Anne em tornar-se artista e no que viria a produzir mais adiante. Aos dezoito, dezanove anos começou a fotografar. Muitas dessas primeiras imagens foram capturadas em Portugal, em viagens de verão que realizava ao país, onde já não morava e nunca voltou a morar. A exposição em cartaz na Zé dos Bois, e sua obra em geral, carregam essa nostalgia, essa atmosfera turva e fantasmagórica do passado. A sensação é reforçada pelo fato da artista sobrepor numa mesma imagem fotografias de épocas distintas, por vezes com grandes intervalos de tempo entre elas.

“O meu tempo é elíptico e circular. Não penso de maneira linear e evolutiva. Para mim uma foto nunca fica velha. Hoje vivemos a aceleração do tempo, eu estou noutro ritmo.”

De fato, o tempo-espaço de Kraczevo é outro. Ao entrar na exposição entramos num mundo pausado e suspenso. As paredes pintadas de lilás ajudam a baixar a ansiedade e a criar este ambiente, ao mesmo tempo tão íntimo e pessoal. Anne explica que muitos dos que aparecem nas fotografias são conhecidos, amigos ou familiares e que o tom das paredes, na realidade, remete diretamente para as experimentações que realiza com a fotografia. O lilás vem do aspecto que o papel fotográfico adquire quando exposto à luz solar. Quanto mais tempo ao sol, mais rosada/ violeta fica sua superfície. Mas, o suporte fotossensível tem um nível máximo de cor que uma vez atingido não sofre mais alterações. No entanto, a água quente tem a propriedade de potencializar esse efeito. “Foi isso que fiz para chegar no tom da parede. Além de expor o papel à luz, fui ao limite da cor colocando ele na água quente”. Compreender a complexidade deste processo e suas várias etapas, de alguma forma, ajuda a entender o modus operandi geral de Anne. A cor da parede antecipa aquilo que veremos em suas fotografias. A artista trabalha no limite dos materiais, maltrata-os e, assim, descobre fenómenos que lhe interessam.

Anne começou na pintura. Com o auxílio de uma bolsa foi estudar na Parsons de Paris. Lá percebeu que se interessava verdadeiramente pelo que os outros alunos jogavam no lixo, pelo que era descartado. “Sempre fui atraída pelo que não se pode fazer, pelo ‘proibido’. Sempre gostei de contrariar as regras e a fotografia tem regras muito específicas”. Em seu trabalho, a captura de uma determinada situação é apenas o princípio. A verdadeira “revelação” acontece no processo aquoso de ampliação de seus negativos e no momento de formação das imagens. Nesta etapa, Anne realiza uma infinidade de operações e “exageros”, ainda hoje considerados por muitos manuais — escritos e vivos — como “erros fotográficos”, que sujam e enchem de ruído suas fotografias. “Sempre trabalhei com fotografias que não eram muito ‘estéticas’ ou consideradas bonitas dentro dos cânones. Mas buscava justamente outras belezas. Buscava imagens cinzentas, pouco contrastadas. Buscava um branco com um efeito lavado, quase nuclear, de Hiroshima. Mas a fotografia tradicional tinha outros códigos.”

Em suas obras, pouco é planejado e muito é resultado do acaso. Como uma alquimista, Anne potencializa ao máximo as possibilidades mágicas do espaço do laboratório. E tudo acontece como em um golpe de dados, um tanto de sorte e de casualidade jogam um importante papel. Logo após formada recebeu da galerista Marion Meyer a tarefa de catalogar e fotografar uma enorme quantidade de originais de Man Ray e Marcel Duchamp. O contato com este espólio foi para ela transformador. Anne havia encontrado seus pares. Suas imagens deixam claro que ela absorveu muito da técnica e, principalmente, da atitude livre com que ambos artistas lidavam com a fotografia. Mas apesar dos pontos de contato e de alguns procedimentos comuns, sua obra tem outra temperatura de cor, outra vibração.

Grande parte de suas fotografias são provas únicas, resultantes de sobreposições, rasuras, solarizações, além de intervenções com tinta, grafite ou outros objetos pontiagudos. Nas palavras de Natxo Checa, curador da mostra da ZDB, o resultado de todos estes “acidentes” é uma “coleção de imagens veladas, às vezes difusas, onde coexistem coisas de universos muito distintos, como nos sonhos, onde tudo é a preto e branco e a intensidade do que se vê nem sempre depende da sua importância no enredo que se está a sonhar...”. Uma mulher inclina para trás seu corpo nu, mas sua cabeça foi substituída pela silhueta branca de uma lâmpada. Um esqueleto de dinossauro flutua em frente do que parece ser uma antiga fábrica ou estação de trem. Notícias de jornal e réguas acrílicas sobrepõem outras imagens, remetendo a documentos e materiais de arquivo — talvez confidenciais. O empilhamento e a justaposição de distintas intervenções e procedências trazem às fotografias um dado enigmático e onírico.

A junção entre realidade e ficção parecem interessar à Anne. O título da mostra deixa isso claro. Kraczevo pode ser um lugar que só existe na imaginação, um lugar fantástico. Mas também refere-se a um local geográfico concreto, Croix de Chavaux, onde ela manteve ateliê durante seis anos. Naquela altura, dividia o espaço com o artista russo Juli Susin e “kraczevo” era a maneira eslava de pronunciar o nome desta zona de Paris. Segundo conta, esta é uma das poucas regiões onde ainda é possível alguma liberdade, ainda há fábricas desativadas e espaços vazios nos quais artistas podem trabalhar e experimentar em uma cidade tomada pelo capital e pelo mercado.

Ter tempo e espaço para experimentar e imaginar é algo fundamental para Anne. Como seu nome já indica — Lefebvre provavelmente deriva da palavra latina “faber”, que designa um “artesão” —, ela é alguém do fazer manual, analógico, fotoquímico. “Talvez haja uma influência do nome na maneira de ser, de viver e de agir das pessoas. No meu caso, sem dúvida há. Os nomes influenciam, mas não determinam tudo. Mas algo fica no ar e faz trabalhar a imaginação.”

Anne Lefebvre

Galeria Zé dos Bois

Isabella Lenzi. São Paulo, Brasil 1986. Curadora independente, editora e pesquisadora, desde 2011 desenvolve ensaios críticos, edições, programas públicos e exposições para instituições e publicações no Brasil e exterior. Desde 2013 dirige o espaço cultural do Consulado Geral de Portugal em São Paulo, no qual consolidou um local de experimentação para jovens artistas e difusão de artistas portugueses históricos. Em 2017, atuou como pesquisadora na Whitechapel Gallery, em Londres, e, mais recentemente, colaborou na primeira grande individual do artista brasileiro Alfredo Volpi realizada, em 2018, no Nouveau Musée National de Monaco. De 2013 a 2015 também integrou o núcleo de programação da Videobrasil, associação cultural focada na difusão e mapeamento da arte contemporânea do Sul geopolítico. Antes disso, trabalhou na Galeria Vermelho, em São Paulo, e, em 2011, foi assistente de curadoria na XI Bienal de Cuenca, no Equador.

 

O texto foi escrito em português do Brasil.

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Anne Lefebvre, Kraczevo. Vistas da exposição na Galeria Zé dos Bois. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista e Galeria Zé dos Bois.

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