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Casos há em que a vontade continua a sua marcha

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Eduarda Neves

 

"Mas o que é a Europa e a sua cultura? A que Europa é preciso ir? À do senhor Churchill ou do senhor Blum? À de Hugh Dalton ou do doutor Schadt? À Europa de Thomas Mann ou de Céline? De Massis ou Bertrand Russell? De Sartre ou de Sertillanges? De Lucaks ou de Malraux? Quem não vê que é à consciência da própria contradição viva recoberta por cada um desses pares de nomes que é necessário ir? Quem não se apercebe que é justamente a consciência desse conflito que nos é necessária? A realidade cultural da Europa tem hoje a complexidade dos múltiplos apelos que a constituem, apelos e contribuições quase inumeráveis. Estar ou poder estar à altura das suas exigências é ser capaz de compreender e aceitar o tremendo diálogo que constitui o processo da consciência europeia desde os tempos jónicos do VI século." [1]

1. a vontade doente

Nesta superestrutura que conhecemos como civilização ocidental, confrontada com uma revolta interna e as contradições da sua própria história, afirmam-se a extrema direita, movimentos populistas, nacionalistas e xenófobos. Aumentam os refugiados, a pobreza, o trabalho precário e as mobilizações de rua, entre tantos outros exemplos que dão forma à realidade. As forças económicas, a primazia conferida aos mercados financeiros, a reivindicada estabilidade monetária e o tão proclamado rigor orçamental, anulam tanto as lutas e conquistas sociais dos últimos séculos, como as acções colectivas e as estruturas solidárias. É cada vez mais claro que continuam a ser minimizadas questões de verdadeira política social e habitação, o emprego, o direito ao trabalho ou o salário mínimo, tal como a unificação monetária apenas continua a exprimir a perversidade da concorrência. A crise da Europa, que é também a falência das suas representações políticas, exprime-se através de diversas manifestações de cidadãos como, por exemplo, os Indignados, em Espanha, as mobilizações que conduziram ao Brexit, até, mais recentemente, os Gillets Jaunes, em França. Se a construção europeia tem vindo a reforçar o imperativo da sua consciência gregária, não é menos verdade que o suposto movimento democrático e progressista da sua história tem, igualmente, edificado trabalhadores úteis e utilizáveis, motivados para a escravidão, treinados para o sacrifício e assim tornados europeus. 

Estes sinais, que nos apontam para uma vontade doente e fraca, uma moral de rebanho, que Nietzsche já diagnosticara em Para além do bem e do mal, continuam a difundir-se por toda essa Europa cada vez mais obscura. Tudo o que contribui para elevar o impulso, a vida, a força, a alegria trágica, logo é estigmatizado. O ar dos tempos paralisa a vontade, dá-lhe uma forma resignada. Nestes tempos que talvez ainda não compreendemos mas tentamos descrever, os de uma Europa em falência, a crença no rebanho colectivo exprime a fé dos europeus em si próprios, homens delicados e fatalistas:

“Nós, 'bons europeus', também temos horas em que concedemos a nós mesmos um corajoso patriotismo, uma queda e uma recidiva em velhos amores e horizontes estreitos (...) horas de fervor nacional, de ânsia patriótica e todo o género de antigas efusões sentimentais. (...) Posso pensar em certas raças apáticas e hesitantes que, na nossa Europa em decadência, necessitariam de meio século para superar tais acessos de patriotismo e de ligação à terra e regressar à razão, ou seja, ao 'bom espírito europeu'”. [2] 

Ora, é nesta configuração que um tipo antigo mas com novas roupagens se celebra: o do artista fraco, engenhoso e obediente, que sabe perfilar-se no rebanho. Atraído pelo excesso de categorias comerciais, este homem de negócios projecta um dos efeitos centrais do capitalismo: a alienação de si no processo de trabalho, sendo este entendido como o processo de transformação de um dado objecto num produto determinado para o qual são utilizados instrumentos definidos desse mesmo trabalho. Apesar de fundamentalmente direcionadas para as análises económicas e as suas implicações relativas à espectacularização e mercantilização da arte ou à sua inserção nos circuitos internacionais de produção e circulação de mercadorias, as reflexões críticas desenvolvidas pelo marxismo ocidental, em torno das relações entre arte e capitalismo durante o século XX, ocuparam um lugar essencial. Importa-nos aqui reinscrever aquelas reflexões no âmbito do debate sobre a teoria da alienação, tentando  compreender até que ponto ela representa a situação do artista consigo mesmo e em que medida ele próprio se torna forma estranha e destituída do seu trabalho.

Sendo o conceito de alienação bastante antigo e estando próximo da noção de “idolatria”, usada pelos profetas do Antigo Testamento [3]. E ainda, por ter sido usado tradicionalmente, no quadro clínico da loucura, será absolutamente central [4] nos manuscritos económico-filosóficos de Marx, de 1844, obra na qual o autor denuncia radicalmente a alienação. É no carácter instrumental deste conceito que encontramos o potencial crítico da análise que nos importa, seguidamente, operar.

2. é uma vontade alienada

A partir da relação valor-trabalho, Marx explicita o efeito de dominação da propriedade privada e a submissão do proletariado entendida como processo de alienação. Influenciado pela filosofia de Feuerbach e analisando a importância do trabalho produtivo para a saúde psíquica do indivíduo, o autor salienta a natureza alienada do trabalho no capitalismo. A alienação como estranhamento, sendo inerente à propriedade privada e à consequente divisão do trabalho, conduz a que o homem “desconheça”, “estranhe” a totalidade do produto do seu trabalho. O pensamento está ausente das condições materiais de produção.

É o dinheiro que, constituindo-se objecto, adquire a soberania e poder, tornando o não-ser em ser.

O papel do dinheiro e a inversão de valores que ele representa, contribui para anular a subjectividade e favorecer uma outra subjectivação porque a estrutura capitalista produz outra forma de existência. Passa a existir aquilo que podemos pagar. Quantos mais objectos o trabalhador produz, tanto menos ele possui e cada vez mais fica sob o domínio do seu produto, do capital. Se, por um lado, a relação com o produto do seu trabalho é a mesma que existe com um objecto estranho, por outro, é a relação que o trabalhador estabelece com o trabalho que constrói a relação do capitalista com esse mesmo trabalho. Desta forma, a propriedade privada é o produto, a consequência do trabalho exteriorizado, do homem e da vida estranhados. Quanto mais poderoso se torna o mundo objectivo, tanto mais empobrecido fica o seu mundo interior e, portanto, ele mesmo. Face à consciência alienada de si mesmo, a sua vida é depositada no objecto, como se o seu trabalho fosse de um outro e não lhe pertencesse. A relação do trabalho com o seu próprio interior, do trabalhador com a sua própria actividade, com o acto da produção, é vivida como impotência e miséria. Castrada que é a energia psico-física, ou seja, a vida, pois que esta é actividade, temos, então, a vida revoltada contra si mesma. Diz Marx:

“Mas o estranhamento não se mostra somente no resultado, mas também, e principalmente, no ato da produção, dentro da própria atividade produtiva. Como poderia o trabalhador ficar alheio ao produto da sua atividade se no ato mesmo da produção ele não se estranhasse a si mesmo? O produto é, sim, somente o resumo da atividade, da produção. ( …) No estranhamento do objeto do trabalho resume-se somente o estranhamento, a exteriorização na atividade do trabalho mesmo. (…) Em que consiste então a exteriorização do trabalho? (…) o trabalho externo ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, (…) mas nega-se nele, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica a sua physis e arruina o seu espírito." [5] 

Se o trabalhador vende a força de trabalho e não possui os meios de produção, pois que estes são propriedade do capitalista, sabemos que, no caso da produção artística, o artista não só os possui, como detém o produto do seu trabalho. Porém, neste caso, a alienação ocorre no processo produtivo e não na relação do produtor com o produto. Sujeitando o processo de produção, desde logo a intencionalidade da acção produtiva, às solicitações do mercado, à máquina totalitária económico-ideológica, aliando-se ao poder financeiro e orientando o seu trabalho por essa espécie de influencers como os directores de fundações e colecionadores, este artista-homem de negócios submete-se ao mecanismo da alienação. Tendo, habitualmente, jogado o jogo da ideologia dominante, através do qual obteve capital simbólico, este autêntico activo financeiro transforma a relação consigo mesmo numa espécie de trabalho obrigatório, respeitosamente forçado. Se a liberdade que sente fora do trabalho é correspondente à alienação que existe quando trabalha, então a relação a si mesmo encontra no auto-sacrifício uma das modalidades da fraqueza. Esta circunstância não confere apenas às obras a condição de mercadoria e de estranheza em relação ao seu produtor; é o trabalho que se produz a si mesmo e ao próprio artista como mercadoria. 

Nepotismo, oligarquia, dinheiro, sucesso, luxo e fama configuram o art world  que, sustentado pela ideologia liberal, quanto mais proclama a globalização, menos potencia o colectivo.

Banalizados o silêncio, o cinismo, a indiferença e a culpa (?), reforçados os acordos entre poderes económico-financeiro e político, este artista-mediador comercial subjuga o acto próprio do fazer artístico, ao processo de estranhamento, dando-lhe assim forma. À semelhança de um qualquer outro trabalhador, esta consciência alienada de si mesmo, esta condição de estranho perante si próprio, exprime o mundo objectivo do capital que, assumindo o papel do ídolo poderoso, anula, nas palavras de Marx, a actividade vital. A vida produtiva, propriamente considerada, aparece como simples meio de vida. Ajustando-se à “encomenda“, [6] este artista de “espírito livre”, verdadeiro caso de sucesso, responde às solicitações do Dasein: toda uma nova variação existencial caracteriza o seu modus operandi que produz tanto para os mercados democráticos, ao serviço dos rankings das “preocupações da actualidade” (ou, se preferirmos, dos “temas fracturantes”), [7] como para países que não só compram o que proíbem aos seus habitantes, como situam a arte no território do luxo. A geo-política do imperialismo contemporâneo, como lhe chamou Samir Amin, encontra neste singular interlocutor do campo da arte um instrumento eficaz. O produto da relação com o seu trabalho e consigo mesmo, aplica-se, igualmente, à relação do homem com outro homem e, portanto, do artista com outros artistas: “na relação do trabalho estranhado, cada homem considera, portanto, ou outro, segundo o critério e a relação na qual ele mesmo se encontra como trabalhador. (...) Se o produto do meu trabalho me é estranho, a quem pertence, então?" [8]

É a relação do artista com o seu trabalho que, igualmente, constrói a relação do capitalista com o trabalho. A proximidade com o poder financeiro e os investidores, apenas espelha a condição geral em que se encontra, a da estrutura mercantil. Sendo a arte parte integrante da superestrutura e indubitavelmente determinada pelo modo de produção e pelo sistema económico, é cada vez mais clara a sua dependência absoluta das condições sociais de produção. Estas castas de artistas, à semelhança das castas políticas, procuram conservar os seus privilégios, estando ao serviço do respectivo patronato. Se o mundo da arte parece inquestionável, mais ainda o parece esse a priori, isto é, a natureza do trabalho do artista num mundo economicamente absurdo. Se, como refere Peter Sloterdijk, a propósito de alguns factos que separam os regimes da Antiguidade e Modernidade, as energias se subordinam ao produto, incluindo o “produto abstracto que tem o nome de lucro, ou ainda do fetiche estético que é exibido e coleccionado com o nome de 'obra'" [9], torna-se vital, pensamos nós, a afirmação de um trabalho artístico que continue o processo de um certo ruminar, à maneira de Nietzsche ou, como diria Michel Foucault, retomando os gregos, se construa como um “cuidado de si”. Uma afectação das paixões. Porque se exigiria menos a um artista que a um qualquer operário?

A acção dramática, enquanto desenha o sentido do trágico, arrasta os personagens que continuam a querer ignorar o papel que representam. O possível desfecho desta intriga nebulosa, para ser dominado precisa de ser compreendido. É certo que, como declarou Nietzsche:

“os artistas (...) sabem bem que só quando já nada fazem “arbitrariamente” e tudo fazem por necessidade, é que o seu sentimento de liberdade, subtileza, pleno poder, criatividade, ordenação e configuração atinge o auge — em resumo, necessidade e liberdade da vontade são, para eles, uma só coisa." [10] 

Há escritores e artistas que pertencem a todos os tempos. São inactuais e antecipam outras travessias. São os que importam. Não desistem de nós.

 

Eduarda Neves. Licenciada em Filosofia e Doutorada em Estética. Professora de teoria e crítica de arte contemporânea, área na qual tem vários trabalhos publicados. Curadora independente. A sua atividade de investigação e de curadoria, cruza os domínios da arte, filosofia e política.

 

[A autora escreve de acordo com a antiga ortografia]


Notas:

[1] Eduardo Lourenço, Heterodoxia I. Lisboa: Editora Gradiva, 2005, pp. 24-25.

[2] Friedrich Nietzsche, Para além do bem e do mal. Lisboa: Relógio D´Água Editores, 1999, p.p.191-192.

[3] “Os ídolos do idólatra são a prata e o ouro, obras da mão do homem. Têm boca e não falam; têm olhos mas não vêem; também há poucas respirações nas suas bocas. Têm ouvidos, mas não ouvem; narizes têm, mas não cheiram. Têm mãos, mas não apalpam; pés têm, mas não andam; nem som algum sai da sua garganta. A eles se tornem semelhantes os que os fazem, assim como todos os que neles confiam.” (Salmos 115).

[4] Como sabemos, apesar de influenciado por Hegel e Feuerbach, Marx situa a alienação nas condições materiais do homem e na relação que este estabelece com o produto do trabalho.

[5] Karl Marx, Manuscritos económico-filosóficos (1844). São Paulo: Bomtempo Editorial, 2004.p.82.

[6] “Já repararam que (...) desde a queda do Muro de Berlim e, sobretudo, nos últimos vinte anos, podemos vender produtos de luxo, carros, champanhe, iates, alta costura e arte contemporânea a um russo? Compreendem o mercado representado pelo antigo bloco soviético? Já estamos habituados a poder vender arte aos chineses? Pode até ser vendida a Africanos, este continente tribal. E ainda mais incrível, não ficamos sem conhecer os grandes mercados abertos dos países árabes. Mesmo nas áreas mais respeitadas da Sharia, abrem-se pistas de ski, estádios de futebol e sumptuosas feiras de arte contemporânea.” Werner Moron, Le Wall Street de nos désirs et de nos désillusions. Une poésie comptable . Multitudes, nº 57, 2014/3, p. 144.

[7] Que importa a alguns destes artistas-funcionários a sobrevivência e a fome dos outros, apesar de se preocuparem tanto com as questões de género, os imigrantes, os refugiados, o planeta, a ecologia, a gentrificação ou o colonialismo? Que importa gastar mais de 30 milhões de euros a recuperar o barco do projecto de Cristoph Büchel (Barca Nostra) para a Bienal de Veneza, em 2019, mesmo sabendo que é o barco no qual morreram mais de 700 migrantes? A estetização da tragédia e a superação da nossa má consciência também se exerce em lugares de privilégio.

[8] Karl Marx, Manuscritos Económico - Filosóficos (1884)...p.86.

[9] Peter Sloterdijk, Tens de mudar de vida. Lisboa: Relógio d´ Água, 2018, p. 266.

[10] Friedrich Nietzsche, Para além do bem e do mal. Lisboa: Relógio D´ Água Editores, 1999, p.157.

 

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