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Existir em: contextos, estados, formas, fragmentos  

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Rodrigo Hernández. Plasma,Vistas da exposição Galeria Madragoa. Cortesia do artista e Madragoa

David Silva Revés

Na galeria, um corpo fragmentado. Uma existência em fragmento ou fragmentos que criam uma existência.

Poderíamos a partir daqui perguntar se a nossa individualidade enquanto seres unos, não falando na nossa existência física indivisível, será isso mesmo - única, singular - ou se, pelo contrário, padecemos de um estado composto por fragmentos que se unem num todo biconvexo, arredondado para dentro e para fora: cada fragmento, uma parcela - cada parcela, a razão de um estar isolado, em contexto, em adequação permanente. Uma modelação às circunstâncias mesmo quando estas não existem - ou talvez existam sempre.

Sim, existem sempre. E talvez sejam todas essas parcelas em contexto, a soma das partes diferentes, que constituem a essência da nossa individualidade - a sua característica constante e em potência.

Seremos um, porque composto por vários, ou seremos os vários que se compõem num e que, para todos os efeitos, é a sua aparência exterior? A psicologia e a sociologia entrariam aqui com relações de maior pertinência e especulação mas, com alguma certeza (aquela que é minha), as oscilações dos nossos ânimos permanecerão envoltas em incompreensíveis mistérios. Ou talvez esses mistérios não mereçam ser compreendidos (eu não os quererei compreender, pelo menos). Sigamos no fluxo do plasma que é a vida. Flutuemos com a consciência de que se flutua.

Mas, por agora, regressemos e fixemo-nos naquilo a que nos propomos e que incita estas deambulações de um pensamento que poderia parecer desconexo ou rebuscado - sem um referente mais imediato que não estas mesmas palavras (a obra está longe mas fá-la-emos perto, espero). Porque a arte tem essa valência, essa predisposição - despertar as volutas de um pensar que dali decorre no seu próprio ritmo e no seu próprio espaço. Para pensá-la, à arte ela própria - para nos pensarmos. É isso que lhe dá manifesto valor. Mas, a essas volutas, lá voltaremos.

Entro na Galeria Madragoa e rapidamente os meus movimentos ficam constrangidos pela instalação de Rodrigo Hernández, Plasma. Uma estrutura em grelha de madeira pintada onde assentam várias placas metálicas, de iguais dimensões, que mostram partes de uma mesma figura humanizada, moldada no mesmo metal das chapas onde repousa. No arranjo daquela composição, encontra-se o desarranjo da figura e tentamos, num esforço quase inconsciente e imaginário, recompor, no espaço do olhar, a forma, dita, original, ou originária - procuramos o todo. Reconfiguramos a figura pela projecção da nossa pretensa configuração externa. Somos um corpo - um todo em estrutura e união físicas - em procura dessa mesma união no corpo fragmentado que se apresenta diante de nós. Tentamos ver aquilo que já sabemos conhecer, que pensamos conhecer porque nos pensamos conhecer a nós próprios - a silhueta unida daquela figura. Um confronto entre forma e conteúdo, entre imagem e conceito, entre imagem e referente, entre aquilo que é e aquilo que parece ser, entre aquilo que achamos que deveria ser.

E assim, o constrangimento e estranhamento do momento inicial de entrada, causado pela ocupação da obra na quase totalidade do chão do pequeno espaço de galeria, rapidamente se transforma num jogo inesperado mas lúdico de conformação àquela realidade - aquele que acontece no meu olhar e aquele que acontece nos meus pés. Curioso notar que estes dois movimentos partilham uma continuidade real e mental entre eles - a superação de um estado que nos é proposto ou a entrada nesse mesmo estado. O esforço de união material realizado mentalmente transpõem-se na circulação algo desorientada na forma, mas orientada no fim, que ali desenvolvemos - o movimento dos nossos pés como o movimento dos dedos dos famosos puzzles infantis de reordenação de uma figura sectorizada e desordenada, à qual falta uma peça, e que, com menor ou maior certeza, já todos jogámos - o movimento do nosso encontro com o todo. Da desordem à ordem. O nosso encontro connosco próprios? Ou a tomada de consciência da multiplicidade de estados que enformam a nossa existência - cada peça de metal, cada nosso passo dentro da grelha de madeira, a metáfora para um estado diferente? Provavelmente os dois. Provavelmente tudo isto. Provavelmente muito mais.

Rodrigo Hernández gosta, também ele, de jogar. Joga com diferentes visualidades, referências históricas e estilísticas que, mais do que possibilitarem a formação de um objecto esteticamente apelativo e com originalidade própria, são o alicerce no qual o seu trabalho conceptual vigora com força crítica e reflexiva pela ligação de realidades que, a princípio, não teriam pontos de contacto. É nesta tentativa de ligação e conjugação, como, de resto, é visível na obra que agora apresenta, que o artista procura compreender a essência que subjaz a todas as coisas - é assim que procura um sentido para o mundo e, mais do que tudo, um sentido para a nossa presença nele. Ele pensa a existência, a sua condição essencial e genérica, mesmo parecendo contemplar a descrença nessa generalidade ou a incerteza de uma razão que a justifique. Ainda assim, procura-a, ou sobre ela problematiza uma compreensão.

E essa procura por um carácter gera, por uma universalidade contida, melhor dito - por algo de comum a tudo e a todos - chega-nos com maior imediatez através de um tendencial sentido de abstracção oposto à estrutura de madeira pintada na evocação de Mondrian e da sua pintura. Utilizando uma paleta de cores em tudo semelhante à utilizada pelo artista holandês, Hernández resgata a forte componente simbólica e volitiva presente no neoplasticismo enquanto movimento artístico, ou mesmo doutrina proto-religiosa, que pretendeu atingir a pureza das coisas, o original, a beleza universal pelo olhar o mundo como coisa-em-si - uma tentativa de reconciliar o corpo e o espírito, o plano material e as forças e fluxos imateriais que formam o universo.

Mas este plano matérico e abstracto - a grelha geométrica de madeira colorida onde a figura jaz composta e recomposta novamente na sua dispersão - é sublinhado, ainda, pela própria plasticidade da figura e pela estilização da sua forma, depurada que está aos seus contornos mais elementares. O material metálico que nesta pureza formal a faz aproximar-se aos ícones de culto religioso presentes na arte arcaica dos povos indígenas da américa central acentua uma qualquer procura pelo primitivo (no seu sentido de origem) introduzindo também uma noção perceptiva de abstracção quase metafísica. E guardemos esta última palavra pois, de forma semelhante, o surgimento desta figura humanóide simplificada - desde já, uma presença constante no trabalho de Rodrigo Hernández - leva-nos para o universo das pinturas metafísicas de Giorgio de Chirico ou Carlo Carrá, trazendo uma aproximação aos seus manequins nelas tantas vezes representados, latentes num estado de amorfismo com maior ou menor intensificação.

Este proto-humano simboliza-nos. E simboliza-nos aqui na generalidade do ser, na generalidade do ser-se. Somos em contextos. Em contextos diferentes mas que confluem num mesmo - em nós próprios. Somos o nosso próprio contexto, aquele que é interno, e que se adequa perante os exteriores.

E o desenho que acompanha a instalação, onde Hernández apresenta as várias etimologias da palavra plasma, reforça este estado de multiplicidade enformado num só corpo - plasma como pessoa, plasma como molde, plasma como fluxo, plasma como ligação.

Somos a ligação dos vários que nos compõem. Somos em contextos, reforço, em diálogos múltiplos e sucessivos - tantos como aqueles que esta obra irá tomando ao longo do seu tempo de exposição pela reorganização sistemática das placas de metal. Mas tomando várias formas, moldando-se em diferentes composições, nunca deixará de se cingir ao espaço físico da grelha que a ordena. Os vários volvem ao um. Os vários são um. Plasma.

 

David Silva Revés

Licenciado em Jornalismo pela Escola Superior de Comunicação de Lisboa. Frequentou os cursos de Estética, História da Arte Contemporânea e Neovanguardas. Finalizou o mestrado de Estudos Artísticos, vertente Crítica e Teoria da Arte, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto. Trabalha entre Lisboa e Porto.

o autor escreve de acordo com a antiga ortografia

 

Rodrigo Hernández

Galeria Madragoa

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Rodrigo Hernández. Plasma,Vistas da exposição Galeria Madragoa. Cortesia do artista e Madragoa

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Rodrigo Hernández. Plasma,Vistas da exposição Galeria Madragoa. Cortesia do artista e Madragoa

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Rodrigo Hernández. Plasma,Vistas da exposição Galeria Madragoa. Cortesia do artista e Madragoa

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Rodrigo Hernández. Plasma,Vistas da exposição Galeria Madragoa. Cortesia do artista e Madragoa

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Rodrigo Hernández. Plasma,Vistas da exposição Galeria Madragoa. Cortesia do artista e Madragoa

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