Conversa entre Tomaz Hipólito e Nuno Crespo
Nuno Crespo: Esta nova exposição reúne trabalhos de diferentes tempos em que se nota a tua preocupação com a arquitectura e com o espaço enquanto matéria de trabalho artístico. Desde quando a arquitectura é uma espécie de texto que usas no desenvolvimento dos teus projectos?
Tomaz Hipólito: Na base do meu trabalho encontramos, de uma forma ou de outra, o espaço como ponto de partida da existência e a experiência que o revela.
A arquitectura, embora presente desde muito cedo, aparece de forma mais sistematizada quando tive a oportunidade de realizar um trabalho exaustivo de pesquisa, repérage e acção concreta sobre um conjunto de cerca de 30 edifícios em Nova Iorque. O extenso corpo de trabalho, em fotografia, vídeo, performance e desenho, resultou numa exposição na Emily Harvey Foundation NY ( 2011 rebuild_00) que lançou a semente para muitas séries relacionadas com a arquitectura. Ainda mais importante foi a ideia de Mapear o Gesto de forma a criar um novo território, "Intervalo", colocado e/ou identificado entre a subjectividade e a experiência que ocorre a partir daí.
NC: Que queres dizer com essa ideia de mapear o gesto?
TH: Estabelecendo relações entre os elementos sobre os quais actuo, classificando-as, de forma a permitir a sua inscrição no meu “Intervalo”.
NC: O que queres dizer com intervalo?
TH: Tudo é subjectivo, a realidade apenas se revela com a experiência que no limite pode ser a presença ou a contemplação. Muda o tempo, o interveniente ou a experiência e tudo se altera. Quando actuo sobre um espaço, estou sempre a acrescentar algo ao mesmo. O espaço em si não se altera na sua essência, mas passa a fazer parte de um património mais abrangente. O “Intervalo” será a concentração de todo esse legado de experiências. Existe numa realidade paralela que por vezes se cruza com outra experiência.
NC: A cidade de NY é muito determinante no desenvolvimento destes teus projectos. Como é que foste lá parar?
TH: Em 2010 conheci a Nathalie Anglès (fundadora e directora da Residency Unlimited NY) numa exposição colectiva na Emily Harvey Foundation NY, organizada entre um grupo de artistas no qual eu estava inserido. Depois de uma apresentação mais profunda do meu trabalho, à Nathalie Anglès e ao Sebastien Sanz de Santa Maria, fui convidado para fazer uma residência de 6 meses em NY.
NC: Quando falas da arquitectura, interessam-te as formas criadas pelos arquitectos ou é a ocupação de espaço que te interessa? Tu que não és arquitecto, nem tens formação em artes, de que ponto de vista encaras tanto as formas arquitetónicas, como os trabalhos artísticos que lidam com o espaço?
TH: Embora tenha estudado arquitectura em Lisboa, nunca cheguei a terminar o curso nem trabalhar em nenhum atelier e/ou projecto. Mas foi o curso que me ligou ao tema da arquitectura de uma forma mais consciente e em simultâneo que me afastou da profissão de arquitecto. O meu Pai era arquitecto e urbanista. O desenho e a arquitectura sempre estiveram presentes na minha vida.
É a experiência que resulta da “ocupação” do espaço que me interessa. De preferência a minha. Tenho uma atracção física pelos espaços, gosto de os sentir, de os tocar, de os dissecar e de presenciar a sua transformação e/ou a influência que estes aportam às minhas sugestões.
NC: Como é que escolhes os lugares com que trabalhas? Falas em atracção física, mas deve haver elementos que são um importante motor para te aproximares deles.
TH: Por um lado a intuição e por outro a necessidade de nova experiência ou de experiência nova sobre o mesmo lugar.
NC: Consegues distinguir entre a forma como um artista ocupa o espaço e a maneira como um arquitecto o faz?
TH: O artista levanta questões e o arquitecto resolve questões. Embora formalizado de forma diferente, o ponto de encontro está no objecto artístico.
NC: A pergunta anterior desenvolve-se nesta outra: de que forma é que a maneira como os artistas lêem, transformam e actuam no espaço da arquitectura, transforma o modo como os arquitectos entendem a sua própria tarefa?
TH: A produção artística (artes visuais, cinema, dança, música ...), a cultura lato senso fará sempre parte do imaginário de qualquer criador, também do arquitecto.
A não-função da obra do artista permite trabalhar sem limites, explorando a “coisa nova” com uma liberdade difícil de igualar por um arquitecto.
Torna-se bidirecional quando a obra arquitectónica serve de ponto de partida para o trabalho do artista.
NC: Este fascínio e interesse dos artistas pelo campo da arquitectura enquanto campo de trabalho artístico deve-se a que razão? Consegues perceber?
TH: O abrigo, um gruta ou mesmo uma sombra, vem dos primeiros tempos da nossa existência e de alguma forma é indissociável da nossa sobrevivência, logo da nossa existência... É uma questão existencial.
NC: Esta exposição reúne um conjunto de trabalhos teus com datas muito diferentes a que deste o nome, bastante enigmático, de Diorama. Podes explicar como é que esse dispositivo óptico se relaciona com as tuas obras?
TH: Não se trata de um nome, mas Diorama é o mote da exposição. Este conjunto de trabalhos deve ser entendido como uma espécie de Diorama porque permite explorar a especificidade deste lugar através da sua história, arquitectura e funções (museológicas, laboratoriais, de investigação, etc.) muito marcantes.
NC: Há muitos sentidos que os dioramas podem ter. Podem dizer respeito a um modelo tridimensional que representa uma cena histórica ou natural e muito popular nos museus do séc. XIX ou, mais recentemente, tornou-se no nome de um dispositivo óptico em miniatura para ver a paisagem. Nos dois casos trata-se de um modo de representação naturalista e muito realista. De que modo é que estes sistemas de representação te interessam?
TH: O “diorama”que me interessa é aquele que representa o real de forma mais alargada. Quando vemos num “diorama” uma leoa a atacar uma gazela, temos uma leitura que vai para além da cadeia alimentar e que também inclui a fauna/flora, habitat e/ou ecossistema … Tudo isto nos é apresentado apenas num “frame”.
NC: Um frame?
TH: Sim, porque no “diorama” em que estou a pensar, muito comum em museus como este, está em causa uma determinada acção: uma espécie de filme. Nesta exposição não me interessou trabalhar essa ideia de continuidade, mas fixar-me num momento.
NC: Portanto, queres fixar momentos da experiência deste museu?
TH: Sim, é isso mesmo. Por isso é que a exposição não se chama diorama, mas sim 2017 diorama_01 para manter inequívoca a referência ao espaço de tempo em que estas obras se desenvolveram.
NC: Não se trata de usar o museu como simples espaço expositivo e receptivo, uma espécie de White Cube anónimo, mas usá-lo como elemento de criação.
TH: Não é só isso. Eu uso o espaço não só como elemento de trabalho, mas devolvo as obras ao lugar que lhes deu origem: uma obra que representa o espaço onde a própria obra é exibida. Neste sentido, o Museu funciona como um “diorama” do visitante.
NC: Podes explicar como é que isso acontece nas diferentes obras?
TH: Na obra apresentada na entrada o visitante depara-se com uma performance previamente realizada por mim e projectada no mesmo local. O visitante não poderá relacionar-se com aquele espaço como ele tivesse vazio, pois este está “ocupado”.
NC: Ocupado por ele mesmo?
TH: Sim. Ligeiramente diferente, mas continuando a mesma ideia da entrada, no Anfiteatro o visitante depara-se com um grupo de intérpretes que realizam uma performance, também anteriormente realizada
por mim naquele espaço, impossibilitando o visitante de “ocupar” o Anfiteatro. Nestes dois casos, o visitante está dentro no Museu diante de um “diorama”, mas na experiência em que a cena e o espaço se apresentam no “diorama museu”.
NC: E nas outras salas?
TH: A instalação e a exposição de fotografia e desenho, que se apresentam nos laboratórios que dão para o claustro, funcionam como um trompe-l'oeil das obras site-specific da entrada e do Anfiteatro e fazem a ligação para um conhecimento mais alargado da minha obra.
NC: Referes que te interessa uma dimensão alargada da representação do real. De que forma esse é um assunto dos teus trabalhos? Porque à primeira vista as tuas inquietações parecem estar muito ligadas às questões de exploração do espaço, da sua ocupação, construção e vivência.
TH: A representação do real não no sentido formal, tal como cumpre a função e se apresenta um “diorama”, mas nas diferentes camadas que representam um todo, no significado de cada uma, e em particular na sua influência recíproca. Contaminação, inscrição, sobreposição, complementaridade, entre outros, podem ser exercícios que me interessa explorar dentro das minhas séries de trabalhos.
NC: Ainda não falamos da performance e do lugar que ela ocupa nos teus trabalhos. As performances precedem os teus trabalhos em fotografia, desenho ou as instalações?
TH: Não existe uma ordem no meu processo de trabalho, no início nem sequer sei com que medium se formaliza cada um dos projectos em que estou a trabalhar. Algumas das questões levantadas no processo de trabalho sugerem que, por exemplo, o desenho possa dar melhor resposta. Sendo que esse desenho poderá revelar-se numa performance, que por sua vez poderá terminar numa instalação e/ou numa fotografia.
Um traço comum, é de que nada é pré-definido (fechado), mas sim de que a um passo pode suceder outro (aberto). Talvez por isso volto recorrentemente às minhas séries anteriores, ao longo do tempo.
Excerto de conversa a ser integralmente publicada em livro. Cortesia do artista e Nuno Crespo.
Museu Nacional de História Natural e da Ciência