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Vasco Araújo: La Morte del Desiderio

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Alexandre Melo

Clássico Contemporâneo

Posso começar por dizer que a exposição de Vasco Araújo, La Morte del Desiderio, na Galeria Francisco Fino, é surpreendente mas, pensando bem, também poderia considerar que é uma exposição de consagração. Retomando o que escrevi num outro (con)texto diria que não há contradição, porque o artista une a capacidade de invenção e renovação da imaginação formal a uma exemplar coerência e consistência de propósitos. Os temas são os que sempre foram os temas de Vasco Araújo e que também - e essa não é a menor das suas virtudes - são os (únicos?) temas de sempre: o amor, o poder, a morte.

Os  processos de pensamento e princípios metodológicos são os que nos habituámos a encontrar no trabalho do autor, mas a concretização formal das obras, e o modo da sua disposição no espaço da galeria, são surpreendentes e mobilizam a nossa melhor atenção; requer-se uma visita atenta e demorada que será devidamente compensada. Decisivos, nesta exposição, os modos de utilizar o som e a reinvenção das formas de convivência entre texto e imagem, entre teatro e filme, entre visão, leitura e escuta.

A exposição La Morte del Desiderio – ainda mais se vista em conjunto com a exposição na Fundação Carmona e Costa ou com a sua atual participação na Bienal do Mercosul (Porto Alegre, Brasil ) – confirma o lugar destacado de Vasco Araújo entre os autores mais clássicos e mais profundamente contemporâneos da complexa paisagem transdisciplinar da arte do século XXI.  

Cenário

Comecemos pelo espaço. Como é que se diz agora... no teatro? Cenografia, décor, design do espaço, conceito espacial? Se bem me lembro, dantes dizia-se cenários, tal como se dizia personagens e intérpretes. Optemos, então, por cenário.

No teatro, podem usar-se vários cenários, consoante os actos, as acções e as  habilidades técnicas do palco. Os elementos do público, regra geral, estão imóveis e sentados, mas no palco as "coisas" vão mudando. Existe a expectativa de que o público permaneça no seu lugar durante o período de tempo previsto, até ao final. Se pensarmos no cinema, o que muda não são as "coisas" mas as imagens. No entanto, a situação do público é semelhante.

Numa exposição só há um cenário – a própria exposição, tal qual a vemos - que resulta das opções de montagem das obras pelo artista em função do efeito de instalação que pretenda obter. Para um artista com consciência plena dos seus recursos e saberes, o objetivo que guia as opções e o seu pretendido efeito é o comando ou, pelo menos, a indução dos movimentos físicos – percurso e ritmo – e das oscilações da atenção – visual, sonora, mental – dos visitantes que aqui fazem de público. Ou seja, o cenário não muda e quem se mexe é o visitante. E não está à partida assegurada a duração da sua permanência nem é previsível a modalidade de atenção (o regime de disponibilidade intelectual e emocional ) que cada um vai mobilizar. 

Nesta exposição, como em muitas outras desde o início da sua carreira – recordemos Sabine/Brunilde, 2003, Prémio Jovem Artista EDP – SNBA, Lisboa - Vasco Araújo revela-se um mestre da encenação cenográfica do espaço de exposição, tirando aqui o melhor partido das caraterísticas da galeria, designadamente a sua profundidade de campo.

O trabalho que domina o espaço e manifesta o mais forte apelo à atenção do visitante é a grande tela Capriccio, 2018 (600x450cm), colocada em diagonal no centro da primeira sala. Esta obra organiza toda a exposição e redistribui à sua volta os movimentos e a atenção dos visitantes.

Antes de mais, ela chama a atenção para o som que vem da sala do fundo, oriundo de uma peça cuja visão ela mesma impede. Há que contornar a grande tela e ir à procura da origem do som de vozes e tiros cujo diálogo nos fornece o mais imperioso (mas não sei se o mais decisivo)  guião da exposição, discutindo a ideia da necessidade de um inimigo como condição para nos definirmos a nós próprios, como penhor da segurança da nossa identidade  – O Inimigo, 2018 (Instalação) (Diálogo entre uma metralhadora e uma estátua).

A- "Ou melhor, se tu rejeitas o homem que está à tua frente, como é que eu hei-de acreditar no homem que talvez esteja em ti?"

B – "Continuo sem entender... trataratrtatatratatattatatatata!!!" (Longo)

Silêncio

Este tipo de encenação de um diálogo já se encontrava em trabalhos como O Morto, 2010, entre uma caixa de ponto e uma estátua de um índio, ou em La Chute Vers, 2014, conversa entre dois holofotes representando a Europa e um relâmpago.

É preciso voltar atrás e ouvir mais, com outro ritmo e outro tipo de atenção.

Ouvir a voz que para cada um de nós, a sós, fala no fim de um fio que escorre dos lábios cerrados de uma máscara mortuária. Fala, a sós, para cada um de nós, só. Tempo morto, 2018.

"Amor com amor se paga"

"Muitos bons desejos se enterram"

Agora é necessário voltar a contornar a tela e ler do outro lado, ainda com mais tempo e atenção, as páginas / cadernos em que imagens de postais de bustos de estátuas Romanas do Museu Capitolino de Roma convivem com imagens de páginas de textos de um caderno de notas. Notebook – La Morte del Desiderio, 2018.

Lemos linhas de palavras das vozes de Al Berto, de Kaváfis, do artista e, talvez, das nossas memórias, do que deles lemos ou ouvimos; e do que lhes acrescentámos. Da encenação cenográfica do espaço passamos à evocação literária das vozes.

Vozes

Poucos artistas contemporâneos saberão trabalhar com a voz e as vozes de modo tão conseguido quanto Vasco Araújo. A enumeração dos exemplos obrigar-nos-ia a percorrer quase toda a sua obra.

Poderíamos começar pelo uso da sua própria voz (de cantor de ópera) em obras como Duettino, 2001; Some enchanted evening, 2002/2008.

Há outros exemplos de vozes, familiares para muitos dos visitantes, que já nos habituámos a encontrar ao longo de percurso de Vasco Araújo: Paula Sá Nogueira, Pedro Penim, Leonaldo de Almeida, Lúcia Sigalho; André e. Teodósio, entre outros.

A seguir importaria referir as obras centradas no trabalho específico que à voz é dedicado no quadro específico do mundo da ópera: Recital, 2002; Far de Donna, 2005; La Schiava, 2015.

Aquilo que aqui mais importa destacar é que, para lá da ópera e dos grãos das vozes, enquanto tema específico, a importância fulcral na obra de Araújo da multiplicação e desdobramento das vozes como forma concreta – efetiva e eficaz – de descentramento da noção tradicional de sujeito, unidimensional, homogéneo, fechado e autocentrado (fundamento de todos os regimes identitários normativos e repressivos) e de desautorização de todas as veleidades de legitimação e sistematização de códigos de oposição binários (fundamento de todas as formas de exclusão, dominação e opressão).

Revejam-se Eco, 2008;  Augusta, 2008; Mulheres d’Apolo, 2010.

Nem eu, nem ele, nem ela, nem outro, nem nós, nem eu-eu, nem eu-ele, nem eu-ela, nem ele-ela, nem ele-ele, nem ela-ela, nem trá-lará-lá-lá ... nem eu-outro, nem outro-eu, nem nós-outros, nem outros-nós. Nem nada.

Eu ouço vozes. Nós ouvimos vozes.

Silêncio. Vai-se ler um texto.

 

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Textos

Os textos não falam. Não são pessoas nem têm problemas de cariz psicológico. Os textos lêem-se: só que é preciso lê-los.

Notebook – La Morte del Desiderio, 2018, é um admirável trabalho de intertextualidade. Quer-me parecer que se o voltar a ler vou ter a sensação de encontrar qualquer coisa que fui eu que escrevi, ou disse, ou pensei. São palavras.

 

“ – A austera representação, o estilo dos cabelos atribuem a este retrato uma certa nobreza, mas ao mesmo tempo alguma rigidez.

A olhar para ele, agora que se sentou na mesa do lado

conhece cada movimento que faz  – e debaixo da roupa,

nus os membros amados volto a ver. “

“O aspecto cuidadoso da representação evoca a figura de um estudioso ou de um filósofo.

Nunca mais voltou a encontrá-los  – como eles se perderam tão depressa…

os olhos românticos, o rosto

pálido…

Nunca mais voltou a encontrá-los  – possuídos apenas por acaso,

com tanta ligeireza abandonados,

logo a seguir com muita ânsia desejados.

os olhos românticos, o rosto pálido,

e aqueles lábios; nunca mais voltei a encontrá-los.

Sem fazer nada, os homens aprendem a fazer mal.“

 

A relação com as imagens multiplica as possibilidades. Personagens e intérpretes: quem fala de quem, com quem?

Voltamos ao trabalho inicial: Capriccio, 2018, a grande tela na diagonal da sala grande. Eu li o texto. Não tenho pressa.

Este é um texto de tipo dramatúrgico (como é habitual no notável e sempre surpreendente trabalho de José Maria Vieira Mendes), à partida vocacionado para o teatro, e será muito interessante observar o modo como uma encenação teatral conseguirá, ou não, lidar com os desafios colocados pelas suas vertiginosas ruturas da continuidade narrativa e de qualquer tipo de unidade espaciotemporal.

Também poderia ser lido como um texto para os diálogos de um filme, mas ter-se-á chegado à conclusão que, para reter apenas o essencial, não era preciso fazer o filme.

Ficaria potencialmente melhor assim, como texto projetado sobre uma tela representando um capriccio, destinado a satisfazer o desejo de preservar a memória de algo que jamais se poderia ter possuído.

Falamos de potenciais diálogos, de um potencial guião, de um potencial filme. É uma questão de maximização transdisciplinar do potencial de um texto: o potencial. A passagem aos actos compete aos visitantes.

Mas então qual é o sentido do texto? É um metasentido.

Quando uso a expressão metasentido repito sempre a graçola que consiste em perguntar: mas mete aonde?

Tenho por hábito não responder a esta pergunta parva mas, neste caso, creio que está muito bem metido.

O quê? O sentido.

Citação

Deixei para o fim uma obra que não acredito que, a alguém, possa parecer menos importante ou decisiva: Entre o tempo e o desengano, 2018.

São três caixas de madeira pintadas, abertas, com folhas com textos impressos.

Podemos levar para casa estas três folhas cor de rosa, escritas, como se fossem manuscritos um pouco amarfanhados.

São uma prova de amor. Obrigado.

 

Alexandre Melo

Nascido em Lisboa, é um crítico de arte, curador, ensaista e professor. Licenciado em Economia, doutorado em Sociologia e professor de Sociologia da Arte e Cultura Contemporânea no ISCTE. Escreve, desde a década de 80, para as principais publicações portuguesas, entre elas o Jornal de Letras, o semanário Expresso ou o Público, e internacionais, como o El País, e é também colaborador regular de revistas internacionais de arte contemporânea como a Flash Art, Artforum e Parkett. Foi autor do programa de rádio "Os Dias da Arte". Comissário da representação portuguesa na Bienal de Veneza 1997, com Julião Sarmento e na Bienal de São Paulo 2004, com Rui Chafes e Vera Mantero. Curador das colecções do Banco Privado (em depósito no Museu de Serralves) e da Ellipse Foundation. Colaborador na escrita do argumento de "O Fantasma" de João Pedro Rodrigues. Co-realizador de "Fratelli" de Gabriel Abrantes. Argumentista e autor dos textos dos documentários "Colecção Geração 25 de Abril". Foi Assessor Cultural do Primeiro Ministro de Portugal José Sócrates de 2005 até ao final do mandato do mesmo.

 

Vasco Araújo

Galeria Francisco Fino

 

Imagens: Vasco Araújo. Vistas da exposição La Morte del Desiderio, Galeria Francisco Fino, 2018. Fotografias: ©photodocumenta. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.

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