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Entrevista a Mark Coetzee

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Vanessa Rato

Basta olhar para o que os museus fizeram ao longo da história e corrigir esse erro

Quem o diz é a "Tate Modern de África" – o Zeitz MOCAA – que propõe a representação da arte contemporânea do continente e da sua diáspora. Estão em causa 54 países e uma diáspora global de centenas de milhões. Mark Coetzee, o director e curador principal, diz que talvez sejam precisos 50 anos para se chegar a perceber a verdadeira missão deste museu.

Em 2008, o curador sul-africano Mark Coetzee começou a trabalhar com o então CEO da Puma, Jochen Zeitz, na constituição de uma colecção de arte exclusivamente dedicada a artistas contemporâneos africanos ou de origem africana. Dez anos volvidos, no fim de Setembro último, a colecção transformou-se no muito aguardado Zeitz MOCAA, inaugurado na Cidade do Cabo, o museu que ocupa agora os nove andares de um antigo silo para armazenagem de cereais com vista para o Atlântico no porto de mar da Cidade do Cabo, na África do Sul. São 100 as galerias expositivas e um hotel de luxo de apenas 28 quartos num projecto de arquitectura de 29 milhões de libras assinado pelo britânico Thomas Heatherwick. Com programas específicos para a fotografia, as artes performativas, a imagem em movimento, a moda, um centro educativo e outro de formação para curadores, é o maior e mais importante projecto museológico dedicado à arte contemporânea em todo o continente africano. Coetzee, hoje com 53 anos, é o director executivo e curador principal. Tem na equipa a angolana Paula Nascimento, como curadora-adjunta para publicações e trabalhos sobre papel.  

Quando e como nasceu este projecto?

Começou há cerca de 10 anos. Na altura, trabalhava num museu [da Rubell Familly Collection] em Miami, nos Estados Unidos, e a marca Puma patrocinou uma exposição que organizei intitulada 30 Americanos. Foi, à época, a mais abrangente mostra alguma vez realizada sobre artistas afro-americanos e a Puma quis apoiá-la como parte da sua missão e programa de responsabilidade social. O Jochen Zeitz era na altura CEO da Puma [entretanto, co-fundou com Richard Branson a B Team e criou a Zeitz Foundation, que apoia soluções sustentáveis para conservação ambiental, comunidade, cultura e comércio].

Ficámos a conhecer-nos e, um dia, fomos comer uma pizza. Enquanto comiamos essa pizza, começámos a pensar no que poderíamos fazer juntos que tivesse impacto, uma contribuição significativa no mundo. Eu expliquei-lhe que era sul-africano e que gostaria muito de fazer qualquer coisa em casa – não necessariamente no meu país, mas, pelo menos, no meu continente. O Jochen fez-me então saber ser um apaixonado por África. Na altura, já estava viver no Quénia [onde a Zeitz Foundation tem sede e onde criou também o eco-lux-lodge Segera Retreat]. Foi nessa conversa muito informal que surgiu a ideia de começar a coligir uma colecção de arte africana, com o objectivo de virmos depois a encontrar um espaço onde criar um museu para a acolher. Foi a isso que nos dedicamos ao longo dos últimos dez anos.

E como acabou por surgir a actual localização do museu?

Ao mesmo tempo, sem que soubéssemos, o arquitecto britânico Thomas Heatherwick estava a trabalhar no Waterfront [a conhecida zona portuária] da Cidade do Cabo. Estava a trabalhar na conversão de um antigo silo, um monumento nacional muito importante para a história da África do Sul e um dos raros exemplos iniciais de arquitectura industrial ainda preservados no país. Infelizmente, na África do Sul, a maior parte deste tipo de arquitectura não é considerada bela, pelo que não é preservada. Mas este silo foi e havia quem estivesse a pensar se deveria ser um museu e de que tipo. Um museu marítimo? De design? Aconteceu decidirem que deveria ser um museu de arte. E assim foi. Estava a atravessar África à procura de um espaço e os responsáveis pelo Waterfront acabaram por me contactar. Quando [Jochen Zeitz e eu] vimos o espaço, pareceu-nos um encontro perfeito. E foi assim que, em três anos, após termos anunciado as nossas intenções, conseguimos abrir um museu. Nós tínhamos a colecção, o Waterfront tinha o edifício e ofereceu fundos para a instalação. E toda a gente se juntou num objectivo comum.

Então a África do Sul não foi um imperativo, nem sequer uma ideia a priori.   

De todo. A Cidade do Cabo nem sequer estava na nossa shortlist de possíveis cidades. Tinhamos visto espaços em Bamako [no Mali], em Nairóbi [no Quénia], Joanesburgo [a 1.300 quilómetros da Cidade do Cabo]…

Como localização para um grande museu panafricano, é uma decisão que vem com um peso e bagagem próprias, tendo em conta a história de repressão e segregação racial da África do Sul.

Sim, mas foi uma decisão muito prática: o Waterfront é, neste momento, a zona mais visitada por turistas em toda a África. Significava que teríamos um público imediato, o que ajuda. Foi fortuito, mas uma situação muito vantajosa aquela que nos foi proposta. Claro que pensámos se não deveria ser noutro sítio, já que a África do Sul acaba por receber e ter tudo. Mas funcionava bem para o museu. A Cidade do Cabo é uma entrada para o continente. É, obviamente, a grande entrada na África do Sul, com todos os navios de cruzeiro que ali atracam e, apesar de não ser a maior cidade do país, tem uma cultura histórica muito importante. Considerámos outro locais, mas tivemos sempre em conta as condições infratestruturais: poluição, pó, transportes, redes que não se desenvolveriam… Muitos destinos aparentemente ideais seriam possíveis para jovens das comunidades locais visitarem, mas para mais ninguém, devido à falta de transportes. E nós não queríamos um museu que fosse apenas para pessoas ricas – queríamos que fosse acessível a todos. Foi nesse sentido que trabalhámos em estreita colaboração com as autoridades da Cidade do Cabo para reorientar linhas de autocarros, táxis, operadores de turismo. De forma a que todos possam começar ou acabar no museu. Não tem a mesma escala, claro, mas foi um pouco o que se fez quando inaugurou a EuroDisney [em Marne-la-Vallée, a 32 quilómetros do centro de Paris].

Preocupámo-nos mesmo muito com a quantidade e o preço dos transportes disponíveis, de forma a que toda a gente pudesse chegar até nós. Mesmo com dias de entrada livre, tinhamos de ter a certeza de que toda a gente conseguia chegar até à nossa porta. O Waterfront podia oferecer essas condições e um o leque abrangente de visitantes, tanto ricos como pobres.

Passaram-se quatro meses desde a inauguração. Como têm sido os resultados no terreno? Quão desejoso estava o público africano de acesso a um museu espelhando a arte do seu continente?

É uma loucura: todos os dias há filas infindáveis de gente a querer entrar, às vezes dá três voltas ao edifício, milhares de pessoas à espera ao sol, sem arredar pé, para entrar. Mas, antes de podermos sequer ter em consideração este público, houve muitas questões a ponderar. Por exemplo, o valor das entradas. Em África, qualquer quantia de dinheiro, não importa quão pequena, implicaria que muitas pessoas não poderiam vir. Então, lançámos um programa chamado “Entrada para todos” em que angariámos fundos para assegurar que podemos deixar entrar gratuitamente pelo menos metade do nosso público. Visitantes com menos de 18 anos têm sempre entrada gratuita, reformados têm bilhetes especiais, temos dias livres. E era necessário também assegurar que as diversas comunidades às quais queríamos chegar se sentiriam representadas no interior do museu. Os públicos querem sempre ver-se a si mesmos, a sua cultura, as suas narrativas, a sua história e histórias.

O que é que essa vontade de representatividade implicou no que diz respeito à colecção e ao tipo de obras adquiridas e artistas representados?

Implicou cautela. Nomeadamente, impedir uma visão eurocêntrica, evitando um enfoque na arte colonial ou do período colonial em África. Só na África do Sul temos 11 línguas oficiais – tivemos de garantir que cada uma dessas diferentes culturas tem oportunidade de se mostrar. Acho que, no continente, como todo, há 54 Estados independentes – temos de ser capazes de mostrar também isso. É uma responsabilidade enorme mas que temos de aceitar. No passado, a maioria dos nossos museus representavam apenas as nações que consideravam fundadoras: Grã-Bretanha, França, Alemanha e Holanda. E não se viam representações de negros. Agora, olhamos para as estatísticas e tentamos representar o país de um ponto de vista racial, de género – homem, mulher –, de orientação [sexual]… Para ter a certeza de que todas essas vozes são ouvidas. Pelo caminho, conseguimos falar para muitos públicos. Porque não há um só público nos museus. Há um público tradicional, que é muito limitado. Depois, há uma vasta multiplicidade de gente.

Acessibilidade e conteúdos: às vezes, os museus esquecem-se que se os seus conteúdos não forem apelativos as pessoas não querem entrar. Basta olhar para o que os museus fizeram ao longo da história, para a forma como não abriram diálogo com a maioria, e corrigir esse erro. Não podemos falar uma única língua com toda a gente.

Em Londres, o The Guardian descreveu o Zeitz com “a Tate Modern de África”. Esta definição é um programa museológico em si, no sentido em que a Tate não se limita a apresentar exposições, em certo sentido, tem sido um dos grandes agentes da definição do que é a contemporaneidade na arte. Cabe ao Zeitz definir o que é a contemporaneidade na arte africana? Isto tendo em conta que não existe propriamente uma rede de museus homólogos pelo continente...

Essa rede está a começar. Abriu agora, por exemplo, o museu de arte contemporânea de Marraquexe [Al Maaden]… Acho que no futuro próximo vamos ver essa rede emergir. Mas, é verdade, em África é mais difícil. Como medimos o impacto que vamos ter sobre a realidade? Vamos definir o mercado? Vamos decidir o que tem sucesso comercial ou não? Na minha opinião, os curadores do museu devem trabalhar fora desse tipo de parâmetros. Têm de trabalhar em proximidade com os artistas em que acreditam, não pensar em mais nada. Como instituição, acho que devemos seguir os diálogos abertos pelos próprios artistas. São eles que nos vão pôr em contacto directo com as mais importantes discussões do nosso tempo. Nós, museu, não podemos tornar-nos deterministas. Por exemplo, não devemos substituir uma ideia sobre o que é a arte africana tradicional por outra sobre o que é a arte africana contemporânea. A arte contemporânea africana não é um monolito – é muito diversa, e o nosso ponto de vista tem de seguir essa diversidade.

O que é isso quer dizer em termos práticos, em termos do que são as vossas responsabilidades como instituição?

Bom, a Tate, o Gugenheim e o MoMA dão respostas monoteístas. Dizem: é isto o contemporâneo. Penso que o papel do Zeitz é fazer exactamente o oposto. Nós estamos num país com uma longa história feita de monoculturas em que uma minoria dominava uma maioria.

Como instituição, devemos afirmar-nos enquanto plataforma para vozes múltiplas, vozes contraditórias, vozes caóticas. Não podemos ter uma visão institucional sobre o que deve ser nada – nem o contemporâneo nem o ancestral.

Temos, sim, de encorajar conversas e debates sobre isso e nunca ficar com uma ideia fixa. Temos de conseguir ser mais abertos e maleáveis. Já é suficiente virmos de um passado ditatorial.

Um passado em que os próprios critérios sobre o que era ou não arte africana foram definidos por uma força externa dominante. Ajudar a reescrever essa realidade é uma preocupação?

Não sei se alguma vez será reescrita. Poderá ser reinterpretada e desafiada. Uma das missões do museu é dizer que há uma história que foi e continua a ser escrita segundo uma série de agendas internacionais e que pessoas em África – artistas, curadores, pensadores – são partes interessadas nesse processo, querem ser ouvidas e precisam de tomar posse sobre a sua própria história.

Por outro lado, uma grande parte de África acontece na diáspora. A comunidade africana pelo mundo está também na agenda do museu?

Coleccionamos artistas quer radicados em África quer na diáspora, mas somos uma instituição jovem – vai ser preciso algum tempo até a nossa colecção se definir. Neste momento, temos uma representação forte de artistas africanos do contexto anglo-saxónico e muitos artistas afro-americanos. Precisamos de investir em artistas afro-caribenhos e afro-brasileiros. Não somos fortes nessas áreas nem em termos de colecção nem de conhecimento curatorial. Mas temos plena consciência da influência africana globalmente. Por exemplo, sabemos que no último census brasileiro mais de metade da população do país declarou ser de ascendência africana. Não quer dizer que toda a diápora africana global ainda tenha uma ligação directa a África, mas tem culturalmente. Na forma como as pessoas comem, como dançam, como constroem narrativas. Portanto, estamos a falar de um universo tão abragente que, provavelmente, o museu precisará dos próximos 50 anos para tentar chegar a perceber.

E qual será a relação do museu com a chamada “arte africana tradicional”?

O Zeitz é um museu de arte contemporânea, um museu do século XXI – como o MAXXI, em Roma. Somos um museu do nosso tempo. Há vários museus públicos em África cujas colecções vêm do século XIX e chegam às décadas de 1980, 1990. Nesse momento, os financiamentos públicos esgotaram-se, secaram. São boas colecções – até certa altura. As corporações foram também muito activas até há 10, 15 anos. Mas, com as grandes mudanças na forma como as empresas funcionam e hoje trabalham, deixou de haver espaço – as empresas deixaram de ter grandes edifícios. Toda a gente trabalha num computador a partir de casa, num café ou num cowork do outro lado do mundo. Toda a cultura dos negócios mudou. E essas empresas deixaram de comprar arte. Deixaram de ter onde a mostrar ou armazenar. Face a este cenário, o que considerámos foi a forma como podíamos dar continuidade à conversa onde ela se tinha interrompido. E era o século XXI.

Muitos coleccionadores têm medo do que é demasiado novo ou demasiado jovem. Mas é precisamente aí que estão as novas formas de pensar, de falar. Portanto, do século XXI. Vamos sempre contextualizar, provavelmente mostrando alguns trabalhos históricos no início das nossas exposições – não vamos esquecer o passado. Mas somos um país que passou muito tempo até hoje a tentar recalibrar-se. Por exemplo, recalibrar-se de forma a que a riqueza deixe de estar concentrada nas mãos de uma minoria branca e fora do alcance de uma vasta maioria negra. Tem sido um longo processo de negociação – e que os museus também têm tido de fazer. Nesse processo, temos sido forçados a olhar muito para trás. Qual é o nosso passado? A nossa história? Acho que os jovens querem agora seguir em frente. Querem mensagens de optimismo, querem saber que estão activamente envolvidos e que a suas vozes são ouvidas. Sentimos que podemos fazer o trabalho de base neste momento da história.

E têm olhado para as realidades da chamada “África lusófona”?

Sim. Na verdade, [em 2013] quando o Edson Chagas ganhou o Leão de Ouro em Veneza comprámos todo o pavilhão [de Angola] – está aqui, no museu.

Acho que até dada altura houve uma certa resistência a esse olhar mútuo entre a África anglófona, a África francófona e o mundo lusófono, mas acho que está ultrapassado. O Zeitz tem uma responsabilidade enorme ao representar um continente inteiro e as suas influências. É preciso tempo. Vamos ter de esperar e ver como este corpo se desenvolve. O próprio museu, cada curador da equipa e cada uma das exposições vão ajudar-nos a criar uma perspectiva do que consideramos ser “a arte africana”. Por exemplo, a [curadora angola] Paula Nascimento [que faz parte da equipa do museu] vai trazer-nos conhecimento que ainda não temos sobre esse “mundo lusófono”. Depois, vamos ficar a saber também se os próprios artistas querem ser vistos como vindo de uma “herança lusófona” ou apenas como artistas africanos.

Vanessa Rato

Nasceu em Luanda em 1975. Vive em Lisboa desde 1993. É doutoranda em História da Arte Contemporânea na Universidade Nova de Lisboa e mestra em Ciências da Comunicação pela mesma universidade. Entre 1998 e 2016 foi jornalista no Público, onde se especializou em arte contemporânea e políticas culturais e onde foi editora da secção de Cultura e do suplemento P2. Em 2016 foi bolseira da Fundação Rockefeller e da Associação para a Cooperação entre os Povos com projectos no domínio do pós-colonialismo e desenvolvimento em África. Em 2017 foi uma das autoras do livro “Urban Crisis in Africa: Realities, Challenges and Responses”, da Universidade de Ibadan, Nigéria.

 

Zeitz MOCAA - Museum of Contemporary Art Africa

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Vistas exteriores e interiores do Zeitz MOCAA. Cidade do Cabo. África do Sul. © Fotografias: Iwan Baan. Cortesia do Zeitz MOCCA.

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