19 / 21

Tatiana Macedo: Esgotaram-se os Nomes para as Tempestades  

Untitled_04_09_4.3.jpg
Sara Castelo Branco

Num filme coreografado em quatro ecrãs simultâneos dispostos numa envolvência propensa a centrar a posição do espectador, a exposição Esgotaram-se os Nomes para as Tempestades (2018) conforma-se numa espécie de composição rítmica que se espacializa imageticamente, num espaço dinâmico entre imagens, sons e silêncios, que se estende como uma musicalidade de circularidade concêntrica: na cadência de um ritmo dentro de outro ritmo, no interior de um outro ritmo, mas com um centro de referência comum. Numa pulsação circular e hipnótica, que desdobrada a tempo e a contra-tempo reflecte sobre as contingências da memória, do porvir e das relações entre a corporeidade e a arquitectura – isto é, sobre o corpo do espaço e o espaço do corpo –, Tatiana Macedo (Lisboa, 1981) concretiza uma obra onde não só a soma das partes gera o todo, como o todo é também reflectido na ambivalência de cada uma das partes.

Esta concomitância rítmica de imagens cíclicas, revezadas ou justapostas que forma esta exposição patente na Culturgest (Porto), numa curadoria de Delfim Sardo, revela-se numa instalação fílmica que tem como cenário a conhecida Confeitaria Cunha, no Porto, onde a artista filmou um diálogo enigmático entre um personagem e si mesmo enquanto outro – interpretado pelo actor Nuno Lopes –, alternando-o com um inventário ambíguo de nomes reais de tempestades. Trabalhando sobre os espaços arquitectónicos e a relação do corpo com esses lugares, Tatiana Macedo utiliza assim a distinta arquitectura da Cunha como lugar de fluxo de memórias
 num tempo condensado e suspenso, marcado pela consciência problematizada de um futuro iminentemente malogrado.

A espacialização das imagens de Esgotaram-se os Nomes para as Tempestades pela sala de exposições parece alinhar-se intrinsecamente nas relações de intensidade rítmica da montagem, onde, de acordo com a artista, o seu processo de criação desenrola-se progressivamente sobre uma “musicalidade que atravessa a imagem na forma como a vê e ‘ouve’, real e metaforicamente”, onde a cor, as texturas ou os volumes adquirem um sentido quase auditivo. No entanto, este ritmo compassado entre o todo e as partes é igualmente afectado por uma espécie de disritmia em relação à experiência física da instalação dos ecrãs, que resulta numa irregularidade do ritmo normal de visão do espectador. A instalação das imagens no espaço tende a circundar os visitantes, havendo uma relação imersiva, onde nunca se consegue ver todas as imagens ao mesmo tempo, ou seja, ter uma experiência total e controlada de visão. A instalação das imagens implica, assim, um revirar constante dos corpos, um movimento de tensão onde o espectador nunca consegue ver o todo simultaneamente – obedecendo, talvez, a essa mesma condição inerente da montagem advinda da adição e da subtracção: uma imagem que é feita de várias imagens, ao mesmo tempo, que é formada do luto e da substituição delas.

Neste sentido, esta disposição das imagens no espaço implica um encontro com o corpo do espectador por via da circulação, isto é, um espaço efectuado pelo espectador que integra a sua visão numa espacialidade que é aberta, inconclusa, desnivelada.

A partir deste movimento, os corpos concebem aqui uma espécie de corporeidade que se permeia com a extensão espacial das imagens. A indefinição do lugar onde o corpo termina e o espaço começa é evidente em Esgotaram-se os Nomes para as Tempestades, onde o espaço arquitectónico tem também uma corporeidade própria, potencializada pela presença do actor Nuno Lopes, que vagueia num espaço quase esvaziado de outros Homens – surgindo intercalado com a presença fragmentada da rotina dos gestos dos empregados da confeitaria ou de uma mão misteriosa que deixa tombar um limão –, e que recostado sobre o sofá ou sentado ao balcão, move as mãos sobre a mesa, fuma um cigarro ou mexe nos óculos, ou, então corre em travelling e fita-nos directamente alumiado sobre luzes primárias. Seja então na corporeidade dos Homens ou das coisas, nesta exposição todos esses corpos são depositários de vestígios e de inscrições, detonadores de acções e memórias – seja na pele das mãos do actor, ou, na pele das cadeiras forradas a cicatrizes. Desta forma, é possível convocar o questionamento sobre os corpos de Donna Haraway: “Por que os nossos corpos deveriam terminar na pele? Ou por que, além dos seres humanos, deveríamos considerar também como corpos, quando muito, apenas outros seres também encapsulados pela pele?" [1] Se é a partir do corpo que o Homem se relaciona com a arquitectura, mais do que estar no mundo, o corpo pertence à trama e à densidade das próprias coisas do mundo.

 

Untitled_03_10_4.3 copy
Untitled_03_13_4.3
Untitled_03_17_10_4.3
Untitled_03_18_02_4.3
Untitled_14

 

Partindo desta reflexão sobre os corpos, Esgotaram-se os Nomes para as Tempestades apoia-se numa duplicidade que é tão construída de propriedades físicas como de qualidades imateriais. Lopes assoma numa dimensão que sendo intermédia (se atendermos, por exemplo, ao próprio diálogo-monólogo que acompanha o filme) e, por isso, fantasmática, está entre a forma real e a coisa imaginada e quimérica, abrindo uma desordem no real, um espaço de descontinuidade culminado numa existência da inexistência – algo que é tanto da carne como do espírito, do aqui e do ali, do agora e do antes. Neste sentido, a artista pediu que o actor resgatasse a memória para o seu corpo, criando um corpo-memória que se manifesta por entre lágrimas ou truques de ilusionismo. Desta forma, a memória aqui projecta-se sobre a própria aptidão do cinema, cuja qualidade mnemónica se abre incessante e melancolicamente entre esquecimento activo e passivo (algo perceptível nos próprios fundamentos da montagem fílmica). Por outro lado, nesta exposição a memória é, igualmente, desempenhada a partir da própria espacialidade dos seus ecrãs, onde muitas vezes a presença de imagens semelhantes entre si, e a discreta transição entre elas, joga com as próprias contingências e perturbações da memória: a repetição cíclica de imagens idênticas ou diferentes oscila entre ilusão e realidade, entre a similaridade na oposição, ou, a diferença na similitude.

Estes exercícios de repetição e semelhança revelam-se numa das características mais fortes do filme, relacionada com o aparecimento simultâneo de uma mesma acção em tempos diferentes divididos pelos quatro ecrãs. Tal como a condição fantasmática do sujeito e das formas que atravessam estas imagens, também a dimensão processiva destas várias acções em diferentes estádios parecem trabalhar, como afirma Delfim Sardo, uma “visão retrospectiva, ou reveladora de uma prospecção falhada, de uma antevisão de futuro que se espalha em direcção ao passado recente e ao futuro próximo" [2]. Por outro lado, a própria arquitectura da Confeitaria Cunha convoca um contexto modernista que, aquando do aparecimento destes snack-bares, se encontrava na vanguarda, mas hoje remete para uma nostalgia do modernismo, convocando assim “espaços ‘fora do tempo’”.

Partindo desta condição de uma temporalidade desfasada, desencontrada e inatingível, Esgotaram-se os Nomes para as Tempestades parece novamente aportar-se nas circunstâncias da imagem em movimento, que se desenrola em conexões espácio-temporais particulares, numa trans-temporalidade onde o acontecimento só se presentifica quando já é ausente, passado. A presença, portanto, nunca é completa, é um espaço de choque, uma dobra entre passado, presente e futuro. Se para Agamben, o tempo é marcado por um duplo anacronismo: o do passado que é projectado para o presente, e o do presente que é uma constante construção do passado – a imagem fílmica possui, intrinsecamente, esta complexa relação com a temporalidade que, segundo Edgar Morin, detém a habilidade de inverter o tempo: o passado, o futuro e o presente encontram-se em osmose (tal como aliás sucede no espírito humano), e “simultaneamente estão presentes e se confundem o passado-recordação, o futuro imaginário e o momento vivido... Esta duração bergsoniana, esta vivência indefinível, é o cinema." [3] 

Desta forma, é possível inscrever a instalação de Tatiana Macedo dentro do exemplo evocado por Morin para descrever os filmes japoneses que convocam o passado sem transições usando sobreposições, como se o passado e o presente fossem uma mesma essência – se os cineastas o faziam usando a montagem temporal, aqui a artista fá-lo utilizando uma montagem espacial.

Para Deleuze, o cinema apreende um passado e um futuro que coexistem na imagem do presente: “não há presente que não seja obcecado por um passado e por um futuro, por um passado que não se reduz a um antigo presente, por um futuro que não consiste num presente por vir." [4] A imagem é indissociável de um antes e de um depois, oscilando “num passado e num futuro de que o presente já não é senão um limite extremo, nunca dado." [5] Esta temporalidade inscrita também na memória é similarmente visível neste filme pelas imagens pormenorizadas do desgaste e das marcas do tempo sobre o espaço da Cunha, como as cicatrizes na pele das cadeiras da confeitaria – alegóricas quer da passagem do tempo, como da passagem das pessoas, reforçando essa ideia de uma ausência-presença que habita o filme. Esta dimensão elíptica, circular e suspensa funde-se no carácter distópico e futurista deste filme, que é submetido a uma certa afasia, onde o esgotamento que denomina a exposição, parece surgir como referência dupla ao cansaço e a uma inquietação de teor ecológico. Tal como as cicatrizes nos bancos da confeitaria advindas de um uso vestigial e cíclico do espaço, também a nomeação das tempestades surge aqui numa forma ambiguamente circular. Se os nomes humanos das tempestades são usados cientificamente para evitar a imprecisão e facilitar a divulgação de alertas, aqui ao se revezarem numa narrativa que os vai ambiguizando nos comentários fragmentados de uma presumível memória, produzem o efeito contrário ao evocarem hipoteticamente a memória de pessoas que por ali passaram, transformando a nomeação em algo tão pessoal como abstracto.

Esgotaram-se os Nomes para as Tempestades manifesta-se ainda pela memória do cinema, na medida em que, tal como afirma Sardo, é entoado por uma certa cinematografia da década de 1980. Numa ambiência que remete ao cinema de Wong Kar-Wai, Wim Wenders ou Léos Carax, é neste último que se topa a influência mais acentuada da artista, que parece solicitar e reconstruir uma cena especifica do filme Má Raça (Mauvais Sang, 1986), colocando Lopes a referenciar o travelling da vibrante e desgravitada corrida do protagonista do filme de Carax ao som de Modern Love de David Bowie, cena essa que sintetiza a certa altura a própria primitividade do cinema pelas experiências cronofotográficas de decomposição do movimento. Se os planos dos gestos do filme da artista convocam quase inevitavelmente (mesmo que talvez de forma involuntária) as mãos bressonianas, podemos afirmar que os momentos mais disruptivos em relação às rotinas criadas pelas imagens filmadas no interior da Cunha, dizem respeito precisamente a alusões cinematográficas, não apenas pela convocação da corrida de Carax, mas identicamente pela presença das quatro cores primárias, usadas igualmente pelo realizador francês, também ele numa descendência de Godard.

Partindo da identidade das estruturas arquitectónicas, Esgotaram-se os Nomes para as Tempestades teve como um dos seus pontos de partida a arquitectura do snack-bar, expressa aqui nas particularidades da Confeitaria Cunha, espaço desenhado na década de 1970 por Victor Palla e Joaquim Bento D’Almeida. Esta ideia de modernidade enquadrada especificamente no contexto histórico-social português fez a artista trabalhar sobre uma das características destes espaços, que apresentavam frequentemente um balcão em forma de serpente ou zig-zag, onde qualquer pessoa se podia sentar sozinha ao lado de um estranho. Neste sentido, estes balcões foram apelidados de “máquinas de sedução”, na medida em que permitiam que os clientes se vissem simultaneamente uns aos outros, mas também agilizar o serviço através de um contacto mais próximo com o empregado. Esta forma serpenteada dos balcões de snack-bar da década de 1970 inscreve-se nessa relação entre o tempo e o contra-tempo, já referida no início do texto, e que encontra espaço maior pela presença de Nuno Lopes que, intrinsecamente enquanto actor, também assume estas duas pulsões a dentro e a fora de tempo, isto é, a circunstância de paralelismo rítmico da cena e da contra-cena, expressa na modulação do monólogo-diálogo entre a personagem e ele-mesmo.

Por outro lado, este ritmo do discurso e dos gestos do filme estendem a acção e o tempo pela repetição, onde a artista afirma se ter inspirado nas experimentações musicais do loop analógico de músicos como Robert Fripp. Esgotaram-se os Nomes para as Tempestades parece desafiar assim a linearidade através da circularidade e do loop, convocando, por um lado, essa inquietação da incerteza frente ao possível esgotamento de um futuro, mas, por outro, talvez uma espécie de reflexão conscienciosa sobre o porvir deixada em aberto por estas imagens em crise, pois “repetir é esquecer o esquecimento." [6]

Sara Castelo Branco

Doutoranda em Ciências da Comunicação/Arts et Sciences de L’Art na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - UNL e na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Mestre em Estudos Artísticos – Teoria e Crítica da Arte pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP) e licenciada em Ciências da Comunicação e da Cultura (ULP). Na área da crítica e da investigação sobre as áreas do cinema e da arte contemporânea, tem colaborado regularmente com textos para revistas, catálogos e outras publicações de âmbito académico e artístico.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

 

Tatiana Macedo

Culturgest

 

01_MG_6338
02_MG_5957
05_MG_6119
06_MG_6376
07_MG_6381
09_MG_5985
10_MG_6141
11_MG_6395
12_MG_6155
13_MG_6389
15_MG_6040
16_MG_6021

Imagens: Tatiana Macedo. Esgotaram-se os Nomes para as Tempestades. Vistas da instalação na Culturgest do Porto. Cortesia da artista.

Notas:

[1] Donna Haraway, Cyborg Manifesto (1985), citada em “Corpos que Pesam: Sobre os Limites Discursivos do “Sexo”” de Judith Butler.

[2] Folha-de-sala da exposição: texto de Delfim Sardo.

[3] MORIN, Edgar. O Cinema ou o Homem Imaginário. Lisboa: Grande Plano, 1997, p. 61.


[4] DELEUZE, Gilles. Conversações 1972-1990. Lisboa: Fim de Século Edições, 2003, p. 58.


[5] Idem, p. 58-59.

[6] Nome do vídeo-poema da artista e teórica Katia Maciel.

Voltar ao topo