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Desejos Compulsivos: A Extração do Lítio e as Montanhas Rebeldes 

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Maria Kruglyak

 

Apresentando-se em oposição à compulsiva quimera capitalista da expansão eterna, Desejos Compulsivos — A Extração do Lítio e as Montanhas Rebeldes promove um conjunto de alianças interseccionais e interdisciplinares para enfrentar a atual emergência climática. Patente na Galeria Municipal do Porto, a exposição, com curadoria de Marina Otero Verzier, parte da resistência coletiva global à exploração do lítio e da contestação em torno da utilização paliativa deste elemento para revelar um equilíbrio feliz entre obras investigativas, documentais e comunitárias. A conjugação entre a abordagem crítica da exposição — fundada na já longa investigação que a curadora tem vindo a desenvolver sobre o lítio, em Atacama, no Chile, entre outros locais — e a oportuna data de abertura converte as diferentes visões da arte internacional sobre a transição para a energia verde numa voz ativa de resistência coletiva e numa ação de apoio às manifestações que têm ocorrido recentemente contra a construção de seis novas minas de lítio no Norte de Portugal.

Tanto o contexto nortenho como a sua posição no atual debate sobre o lítio fazem desta exposição uma ocasião extraordinariamente importante. Hoje em dia, as minas em proposta de construção criariam "zonas de sacrifício ambiental", como são designadas, no sentido de permitir a extração do lítio, um componente essencial para as baterias de veículos elétricos e outras soluções "verdes", naquilo que é um elemento central da transição da Europa para a produção de energia verde.[1] Também há implicações geopolíticas, no entanto, já que se estima que as reservas de lítio portuguesas figurem entre as maiores do continente — assim providenciando um solução intraeuropeia para suplantar a atual dependência ocidental do lítio chinês para as baterias de carros elétricos.[2] No entanto, a extração do lítio também requer grandes quantidades de água e energia, polui os cursos de água, produz lixo tóxico e destrói os ecossistemas e a biodiversidade daquele que já é um território vulnerável do ponto de vista ecológico.

A futura estrela da exploração do lítio em Portugal está a ser planificada pela empresa britânica Savannah Lithium, com a sua gigantesca mina a céu aberto em Covas do Barroso. Impulsionada não apenas pela urgência da Savannah na entrega do seu Relatório de Impacto Ambiental semanas antes da abertura de Desejos Compulsivos, mas também pelas recentes manifestações contra a construção da mina, esta exposição sublinha o seu contexto temporal e local através da canção de protesto "Brigada da Foice", interpretada pelo grupo ativista Unidos em Defesa de Covas do Barroso, que se ouve em todo o primeiro piso da mostra. A música provém de uma instalação de vídeo em três partes que inclui Brigada da Foice (2023), com realização de Paulo Carneiro; o filme animado Montanha Invertida (2023), produzido especificamente para a exposição pelo Grupo de Investigação Territorial, que revela a destruição ecológica e social decorrente da extração do lítio; e o documentário Não às Minas — Barroso, um Povo em Resistência (2021–2022), do coletivo Medios Libres con la Gira Zapatista.

O triângulo, a tripartição e, por isso, a terceira via crítica são símbolos recorrentes na exposição. Podem ser encontrados logo à entrada do espaço expositivo, onde se introduzem três formas de ver o lítio com três pódios de vidro sobre os quais se exibem, respetivamente, uma pequena bateria de ião de lítio, um cristal de espodumena rica em lítio, e um comprimido de carbonato de lítio da PLENUR, receitado como estabilizador de humor. Estes três objetos representam a interpretação curatorial do desejo compulsivo da sociedade pelo lítio enquanto força motriz para a transição verde; enquanto elemento cuja exploração está à mercê da vontade humana; e enquanto ferramenta de otimização do estado de espírito e de gestão de populações.

Esta exposição, desenvolvida na esfera de uma tendência artística contemporânea com pendor ecopolítico que se encontra em expansão, posiciona-se como parte de um movimento futurista radical que pretende criticar a mentalidade colonialista ocidental subjacente às "falsas" soluções ambientais verdes do capitalismo. Através das diversas instalações investigativas, dos vídeos, das performances e das pinturas de variados artistas, ecologistas, psicólogos, investigadores e comunidades locais e internacionais, Desejos Compulsivos segue a abordagem de T. J. Demos da "ecologia enquanto interseccionalidade": um processo que procura suplantar "os enquadramentos redutivos da ecologia tal como se encontram nas variadas articulações do capitalismo verde, da racionalidade tecnocientífica e da história da arte ambiental".[3]

Não obstante, a exposição difere de outras mostras de pendor ecopolítico por se escusar da produção de futuros especulativos. Otero, pelo contrário, chama a nossa atenção para um conjunto de práticas comunitárias e de histórias de resistência que inspiram um sentimento de esperança. Entre as muitas peças pedagógicas e inspiradoras desta apresentação, são exemplos instalações multimédia do coletivo Medios Libres como o documentário Não às Minas, que se baseia no histórico ativista do grupo para falar sobre a destruição que o lítio poderá trazer à localidade de Covas de Barroso; e The Ends of the World (2020) de Godofredo Pereira e Lithium Triangle Research Studio, no qual o agricultor, biólogo e líder indígena Rolando Humire fala do seu triunfante ativismo contra a destruição ecológica de Atacama, no Chile, por via da exploração do lítio.. Claro está, também a exposição se constrói sobre uma base comunitária, tendo o seu prólogo decorrido durante o mês de maio de 2022 sob a forma de um seminário intitulado "Desejos compulsivos: a extração de lítio, o crescimento ilimitado e a auto-otimização", no contexto do qual, à semelhança da mostra, se convidaram oradores internacionais e locais para, em conjunto com o público, participarem em práticas colaborativas a fim de contrariar os efeitos extraccionistas.

Desejos Compulsivos dá a entender que as sementes das soluções para a crise climática já se encontram nas comunidades alternativas locais, tradicionais ou indígenas. Em vez de inventar novas abordagens ou de se comprazer com uma crítica intelectualista, a exposição procura construir alianças e pontos de troca de conhecimento entre comunidades alternativas locais e tradicionais de diferentes países, abraçando diferentes convicções políticas, espécies e até montanhas — que, como sugere a microbióloga Cristina Dorador na peça multimédia The Ends of the World, podem lutar contra a exploração penetrativa.

A intensa introdução da exposição, fundada numa tendência de factualidade, é seguida por um conjunto de obras realizadas por artistas internacionalmente reconhecidos com base em práticas investigativas e comunitárias. Neste núcleo, encontramos documentação fotográfica do projeto Aerocene Pacha, desenvolvido por Tomás Saraceno e pela fundação Aerocene em Salinas Grandes, que inclui um balão de ar quente propulsionado somente pelo sol e pelo ar, sem depender de combustíveis fósseis, baterias, painéis solares ou elementos provenientes de exploração mineira. Na série de acrílicos The Observers’ Plateaus (2023), Orlando Vieira Francisco apresenta trabalhos quase simplistas de cores primárias que representam montanhas espalmadas — meras camadas de matéria pronta a ser explorada, tal como o extrativista as verá. Noutro registo, a instalação Pannotia (Lithium) (2023), de Carlos Irijalba, inclui uma escultura com fragmentos partidos de brocas anteriormente usadas para a extração do lítio, suscitando um sentido inquietante de violação, penetração e destruição.

Impressionam sobretudo as peças Derechos Minerales: Volcán de Agras (2023) e Gravera (2021), de Lara Almarcegui. A primeira documenta a obtenção por parte da artista da exclusividade dos direitos de extração de minério, com um certificado e um conjunto de desenhos técnicos do subsolo da montanha onde aquelas jazidas se encontram. Ao mesmo tempo que chama a atenção para questões de propriedade, Derechos Minerales também realça a possibilidade de se obterem direitos de extração antes de os conglomerados da indústria mineira ecocolonialista o fazerem. Gravera, por outro lado, é uma obra menos recente na qual a artista interrompe, durante um dia inteiro, os trabalhos de exploração de uma pedreira em La Plana del Corb, em Espanha, para dar as boas-vindas a um conjunto de visitantes — uma prática a que, diz Otero, Almarcegui deu continuidade, paralisando a ação para desacelerar o processo de extração e observar a destruição na sua inquietude. Estas intervenções (ou ecovenções, usando a expressão de Amy Lipton e Sue Spaid[4]) configuram a evolução contemporânea da arte ambiental, numa tentativa de recuperar as paisagens em causa ao dificultar ativamente a sua destruição. Na verdade, Desejos Compulsivos, no seu todo, acaba por gerar uma intervenção ativa contra o desastre ambiental local que as minas de lítio trarão, acrescendo outras implicações globalizadas devido à destruição do ecossistema.

 


 

O carácter das obras apresentadas — trabalhos que acontecem no mundo real da arte e do ativismo e não no espaço da galeria — cria uma dificuldade que é habitual no âmbito da arte ecopolítica contemporânea: a impossibilidade de conter, explicar e criar um impacto emocional nos espectadores através da documentação de ações site-specific. Esta contrariedade é em parte superada pelo enorme lago tóxico sintético de Jonathan Uliel Saldanha, intitulado Psych Op Pump (2023), que transforma o espaço expositivo numa montanha invertida, funcionando como uma ponte de entendimento para visualizar a extração do lítio.

Assim, fundando-se na documentação dos efeitos geológicos, ecológicos e sociais da extração do lítio e da resistência coletiva a esta realidade, a exposição continua no segundo piso com uma abordagem mais filosófica e psicológica. À entrada deste núcleo, deparamo-nos com duas filas de varas dispostas em formação militante — e, novamente, em forma de triângulo. À esquerda, encontram-se cartazes de uma tonalidade amarelo-vivo; cada um apresenta uma ilustração de uma espécie animal cuja extinção se deveu a crimes coloniais, bem como a palavra "camarada" numa língua que não se repete entre pósteres. A peça, intitulada Comrades in Extinction (2021), é um momento de reivindicação dos artistas Jonas Staal e Radha D'Souza, que exigem um entendimento coletiva e uma construção de alianças entre espécies.

Do lado oposto, apresentam-se máscaras tradicionais das regiões de Trás-os-Montes, e mais especificamente Bragança, esculpidas por Amável Antão e Isidro Rodrigues, entre outros. A proveniência das máscaras circunscreve-se a uma região mineira altamente contestada; e os objetos são usados durante os períodos de festa para invocar demónios e figuras animalistas, assim contendo uma aliança de essências humanas e não humanas. Nas palavras de Otero, "Como a sua degradação ecológica e social é apresentada como um mal menor, as comunidades de Covas do Barroso convidam os demónios a integrar o domínio público através do carnaval. […] Se as minas produzem o colapso social, a performatividade política do carnaval, em conjunto com estas expressões artísticas, fraturam a ordem social e criam contramundos."[5] A utilização ativista que se lhes dá, no entanto, não é vista com bons olhos pela comunicação social, que insiste em descrever estas ancestrais tradições comunitárias de espiritualidade como práticas animalistas de comunidades que não são capazes de compreender a explosão de empregabilidade que a indústria mineira poderá trazer.

A formação dos camaradas deste conjunto de criaturas extintas e demónios da montanha é contrabalançada pela reflexão sobre o sentimento de obsessão que The Grid (2018–2019) ostenta na parede lateral. Esta série, criada pela psicóloga Natalia de la Rubia durante um período de convalescença mental, apresenta pequenas aguarelas quadradas que vão ficando progressivamente maiores e mais livres. Na parte final da exposição, encontramos também Mad is Beautiful, de Susana Caló, da qual faz parte uma cortina carimbada com diversas páginas de zines editadas por grupos de apoio de saúde mental e bipolaridade que lutam por novas mentalidades que ultrapassem o reducionismo do lítio enquanto paliativo, sobretudo receitado para o tratamento de episódios maníacos.

A exposição termina com um arquivo sobre o termalismo em Portugal, evidenciando a longa história das águas medicinais, ricas em lítio, de fontes das regiões de Trás-os-Montes e do Alto Douro. Encontram-se também vários vídeos e pinturas espalhados pelos dois pisos da mostra: os vídeos contam histórias de resistência triunfante; e as pinturas apresentam desenhos simples, mas impactantes, de simbolismos relacionados com o lítio e com as minas, assim propondo uma interligação entre os humanos e o folclore — bem como uma reiteração temática do movimento zapatista, como se vê na peça Aujord’hui est un fauve, demain verra son bond (2023), de Ranguy Pitavy, produzida especificamente para a exposição.

Nestas referências afetivas à região, e nestes símbolos e histórias marcantes da exploração mineira, Desejos Compulsivos apresenta uma questão crítica: como é que se pode sacrificar uma área ambiental por outra? E não se deverá a um conjunto de desigualdades económicas, sociais e raciais o facto de certas áreas serem protegidas enquanto outras são sacrificadas? Para citar T. J. Demos: "Como poderá uma viragem cultural provocar, energizar e orientar uma nova organização política, relacionando ações de militância e insurreição com a construção de coligações e com a reivindicação de um sistema eleitoral doravante incorrupto?"[6] Ao debruçar-se sobre a própria existência e a aliança entre humanos e não-humanos, Desejos Compulsivos consegue abordar estas questões de desigualdade sem transbordar de uma arte investigativa e interdisciplinar para o campo da política.

E aqui está o poder e a importância crítica da exposição para o debate localizado sobre a extração do lítio e para o debate alargado em torno do desenvolvimento de soluções ecologicamente viáveis para a atual emergência climática. Como escreve Marco Tedesco num artigo da Climate School da Columbia University, "A nossa dependência do lítio faz lembrar a que vivemos com o petróleo e o carvão, e que transformou a nossa sociedade no passado."[7] E Desejos Compulsivos fala precisamente desta incompatibilidade na qual se funda uma suposta transição verde, argumentando que a natureza compulsiva do extrativismo não difere em ponto algum da violência colonial, subjugante e psiquiátrica que se testemunha noutros segmentos da nossa sociedade: o passado, o presente e o futuro.

Também neste sentido, indica-se no recém-publicado relatório das Nações Unidas sobre direitos humanos e ambiente que "as zonas de sacrifício são completamente incompatíveis com o direito humano a um ambiente saudável e ecologicamente equilibrado", como se consagra na Constituição Portuguesa.[8] O paradoxo das zonas de sacrifício e da destruição ambiental é profundamente evidenciado em Desejos Compulsivos com a reiteração de uma imagética penetrativa, que configura o pano de fundo emotivo da exposição através das brocas da peça de Irijalba, e com as imagens documentais e ilustrações de minas a céu aberto nas quais os cumes das montanhas se substituem literalmente por lagos acídicos, como é o caso da instalação de Saldanha. Se for este o resultado da exploração mineira "verde" e de um sacrífico necessário, então tem de haver uma melhor solução em termos tecnológicos; ou, melhor falando, é preciso que se produza uma mudança na forma como se entende o mundo. Talvez devamos seguir o exemplo de Otero e construir pontes, alianças e redes de ação comunitária; às tantas, é lá que se vão encontrar as soluções para a atual emergência climática.

 

Galeria Municipal do Porto

 

Maria Kruglyak é pesquisadora, crítica e escritora especializada em arte e cultura contemporânea. É editora-chefe e fundadora de Culturala, uma revista de arte e teoria cultural em rede que experimenta uma linguagem direta e accessível para a arte contemporânea. É mestre em História da Arte pela SOAS, Universidade de Londres, onde se focou na arte contemporânea do Leste e Sudeste Asiático. Completou um estágio curatorial e editorial no MAAT em 2022 e atualmente trabalha como redatora freelancer de arte.

 

Tradução do EN por Diogo Montenegro

 




Desejos Compulsivos: A Extração do Lítio e as Montanhas Rebeldes. Vistas gerais da exposição na Galeria Municipal do Porto. Fotos: Dinis Santos. Cortesia de Galeria Municipal do Porto. 

 


Notas:

[1] Aline Flor, "Da Avenida da Liberdade às minas de lítio em Boticas, os alertas da ONU a Portugal", Público (26 de março de 2023).

[2] Jack Lifton, "China Controls the Lithium Market and All the West Can Do (For Now) is Watch", investor intel: the stock source (27 de março de 2023).

[3] T. J. Demos, "Introduction", Beyond the World’s End: Arts of Living at the Crossing (Duke University Press, 2020), p. 11.

[4] Sue Spaid, Ecovention: Current Art to Transform Ecologies (Contemporary Arts Center, 2002).

[5] Marina Otero Verzier, "Compulsive Desires: On lithium mining and rebellious mountains", folha de sala (Galeria Municipal do Porto, 2023).

[6] T. J. Demos, "The Great Transition", World’s End, p. 171.

[7] Marco Tedesco, "The Paradox of Lithium", State of the Planet: News from the Columbia Climate School (18 de janeiro de 2023).

[8] Aline Flor, "Da Avenida da Liberdade às minas de lítio em Boticas, os alertas da ONU a Portugal", Público (26 de março de 2023).

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