7 / 20

Igor Jesus: Studio Visit

4.jpg
José Marmeleira

Em busca da energia do invisível, através do som e da imagem.

Num ano que continua intenso para Igor Jesus, conversámos com o artista sobre as suas motivações, processos, métodos e interesses. Uma viagem por exposições, obras recentes e futuras, permitiu-nos escrever um perfil e um universo. Entre a captação de energias e a experiência de sons e imagens, o invisível e o visível. Com a liberdade especulativa da arte. 

Encontrámo-nos no atelier de Igor Jesus, em Odivelas, e a manhã já vai longa quando o artista liga o computador para nos mostrar imagens. Algumas de trabalhos recentes, outras do que podem vir a ser obras novas. Os últimos meses têm sido intensos para o artista nascido em 1989, na cidade de Lisboa. Entre Setembro e Abril realizou duas exposições e continua a preparar, incansável e entusiasmado, novos projectos. Mas é precisamente assim, com intensidade, que a sua obra se tem feito. Ou talvez seja mais correcto falar de uma energia renovada a cada obra, a cada projecto. 

Da escultura para a imagem em movimento, da imagem em movimento para o som, Igor Jesus tem construído um corpo de obras diante das quais o visitante se interroga permanentemente. O que vê? O que escuta? O que produzem aquelas imagens e aqueles sons? De onde vêm? A estas perguntas junta-se outra que colocámos ao artista: É pertinente falar de uma lógica, de uma continuidade no trabalho? “Diria que sim”, responde, antes de oferecer o exemplo do vídeo O Meu Pai Morreu no Ano em que eu Nasci (2015). “Nesse trabalho, onde um médium procura estabelecer contacto com o meu pai, exprimia a possibilidade de algo sem corpo físico articular ou dominar um corpo físico. A partir daí passou a ser quase uma questão permanente no trabalho. Como conseguimos materializar o invisível e desse modo afetar a matéria física?.

 

 

Igor Jesus, Clavier à Lumières. Vistas de exposição, instalação Water Hole. Rialto6, Lisboa. Fotografia: Vasco Stocker de Vilhena. Cortesia do Artista e Rialto6. 

 

Foi também esse problema que o artista procurou resolver em termos artísticos na exposição Clavier à Lumiéres na Rialto6, com as instalações Poem of Fire e Water Hole. Numa e noutra, Igor Jesus procurou dar visibilidade a determinadas energias recorrendo a um uso peculiar, oblíquo do conhecimento técnico e científico: estudou a actividade electromagnética — um fenómeno que não vemos na natureza, à excepção do espectro visível que vai dos 740 a 380 nm — e utilizou a frequência dos pulsares solares. É pertinente, por isso, falar de uma curiosidade especulativa pelos limites criativos do conhecimento técnico ou científico, mas não apenas.

Fascinam-me algumas histórias e fenómenos. Considero-as gatilhos para desenvolver um sistema. Cada peça pretende ser um sistema de tradução e amplificação, uma tentativa de corrigir a cegueira parcial com que nascemos”.

Sobre esta condição, Igor Jesus lembra-se de um exemplo cinematográfico: “Em Film before Film (1986) de Werner Nekes, este narra, a partir da sua colecção de objectos pré-cinematograficos, a história do nascimento do cinema e como isso só foi possível a partir da consciencialização de que temos um olho preguiçoso. No filme, fica claro o poder que se pode extrair de uma imagem pela inversão do seu estado ou pela adição de energia”

É desse poder que aludiam as duas instalações na exposição realizada na Rialto6: “Procurámos traduzir a atividade celeste e concebemos uma peça para a cada astro, o sol e a lua. A questão era, de que forma poderíamos manifestar essa actividade com o mínimo de variação possível e utilizar essa energia para filtrar e evidenciar outros fenómenos, como a atividade magnética da terra? Em Water Hole, a actividade eletromagnética libertada por um ciclo lunar foi usada para polarizar uma imagem, à excepção de todos os pixéis pretos, que foram tidos como a ausência de matéria. Já em Poem of Fire, os pulsares solares foram usados para revitalizar uma imagem que o pintor Jean Delville produziu para ir de encontro à visão do cataclismo que o compositor Alexander Scriabin estava a tentar desencadear antes de morrer”.

 

Igor Jesus refere-se a um projecto final do compositor russo que sintetizaria as artes e devia ser apresentado nos sopés dos Himalaias. Próximo do conceito de Gesamtkunstwerk, tal projecto era conduzido por uma ambição desmedida: transcender espiritualmente a humanidade, provocando a destruição do velho mundo para o nascimento de um novo. A arte ofereceria uma redenção transformadora, ainda que destrutiva, do mundo humano. Histórias e narrativas, projectos e ideias irrealizáveis ou que ficaram por realizar são fontes da energia de um trabalho que, todavia, não se esgota nas histórias. Ainda sobre a exposição na Rialto6, acrescenta o artista:

A exposição é um sistema de reacções em cadeia e transformações energéticas que delega aos dispositivos de produção de imagem e som a crença na possibilidade de revelar e traduzir para a nossa escala perceptiva a ideia de uma natureza dinâmica e em constante transformação.

 

Como se o som fosse uma peça de barro.

 

Coisas ocultas que se tornam visíveis ou experienciáveis, que se manifestam diante do espectador, deixando-o não raras vezes irrequieto e intrigado. Será fundamental para esta experiência conhecer o fundamento das obras? As histórias que as desencadearam? Saber tudo? “Diria que não”, replica Igor Jesus.

Embora exista quase sempre um processo complexo, que serve sobretudo para me permitir articular várias ideias numa única peça, a preocupação principal é que as peças tenham uma dimensão fenomenológica capaz de estabelecer relação a partir da sua própria natureza e se autonomizem face a todo o universo de referências. Claro que o espectador pode aprofundar a relação proposta se tiver curiosidade. Existem sempre pistas nas peças que permitem o aprofundamento do diálogo. Talvez no futuro consiga uma desmaterialização completa do trabalho. Gosto da ideia de poder destilá-lo até sobrar apenas uma substância gasosa.

 

Igor Jesus proporciona, portanto, a cada espectador uma experiência visível do invisível, manipulando, moldando e libertando energias. As instalações Poem of Fire e Water Hole foram disso exemplares, como também a instalação Banho Maria que dá o nome à exposição apresentada no Porto, na Escola de Artes da Universidade Católica Portuguesa com curadoria de Nuno Crespo. Sobre esse último trabalho revele-se que foi inspirado em The human soul — Its movements, its lights and the iconography of the fluidic invisible (1896), livro de Hippolyte Baraduc (1850-1909). Vale a pena determo-nos em ambos: no livro e na obra de Igor Jesus.

Hippolyte Baraduc, médico francês, tentou desenvolver um processo fotográfico sem câmara para demonstrar a existência de uma energia cósmica que regeria a matéria, uma energia invisível, fluídica. Contudo, em vez de usar lentes e a luz solar, optou por produzir as suas imagens através do contacto direto dos corpos com uma placa química, a fim de reduzir ao máximo a latência. Foram com essas imagens que Jesus trabalhou.

A minha ideia, era construir um alambique capaz de destilar imagens. Na peça vemos várias imagens a serem sequenciadas em queda, e sentimos a diluição dos pixéis durante essa viagem. É como se os pixéis tivessem peso, e a fricção provocada pelo deslizamento no ecrã, produzisse a quantidade necessária de energia para que ocorre-se uma transmutação”, revela. “Projectei as imagens dos fluídos captados por Hippolyte Baraduc no ecrã para que pudessem ter uma influência sobre a matéria, neste caso o som”.

Se ao contrário do médico, o artista não procurou traduzir o invisível no visível, mas o visível no audível, o processo tem semelhanças, dado que se trata também de tornar manifestas e perceptíveis energias.

Para isso, construí um sistema que, adaptado aos sintetizadores, e por meio de programação, absorve a luz e reage as propriedades de cada imagem”, explica. “O que me interessava era poder encontrar uma correspondência física entre a energia que teve a capacidade de sensibilizar os papéis de Baraduc e o som. E o que ouvimos é a frequência de uma tigela tibetana, manipulada e moldada a partir das imagens que compõem o livro, possibilitando a construção de um autómato musical generativo a partir da manipulação de uma única frequência de som”.

 

Mencione-se que numa peça mais antiga esta questão é mais imediata. Trata-se de POV, 2015. No vídeo vemos uma coluna em queda livre a mais de 5000 pés de altitude até ao momento em que colide com o chão.

O que me interessava era a capacidade de poder usar a gravidade como fonte energética para alimentar os dispositivos e poder gerar voz e imagem a partir dessa energia. À semelhança do primeiro travelling do cinema, quando os irmãos Lumière se esqueceram de uma máquina a gravar dentro de um barco, permitindo ao mar registar a sua energia, por mediação do barco, no resto de película que estava dentro da câmara. Essa energia foi responsável por destabilizar a paisagem para onde a câmara estava a olhar e atribuir-lhe qualidades ondulatórias. Noutros trabalhos, também mais antigos, como Solário, 2017, tentei liquidificar a imagem a partir de uma dessincronização de frequências. Entre a energia libertada pelo objecto que estava a ser filmado, um solário, e a frequência do shutter da máquina de filmar. O que vemos é uma superfície azul bruxuleante, energética e aquosa”. 

Modelar a imagem em movimento.

Nos últimos dois anos, o interesse de Igor Jesus por projectos irrealizáveis de inventores, cientistas ou artistas tem surgido em obras, como as já aqui mencionadas. No caso de Poem of Fire, por exemplo, o encontro deu-se com o compositor e pianista russo Alexander Scriabin (1871-1915) que também explorou as relações entre as imagens e os sons. Em breve, conta-nos no âmbito de um novo trabalho, será com o livro The Splash of a Drop do físico Arthur Mason Worthington; este académico inglês procurou sincronizar o cair de uma gota de leite com um flash numa sala escura. Para cristalizar em imagens todos os momentos do fenómeno, produziu uma série de gravuras que Igor Jesus utilizará.

Fico fascinado sobretudo pela ambição daquela proposta e a convicção de Worthington de que iria encontrar uma resposta para alguns enigmas do universo a partir do comportamento  do respingar de uma gota de leite. A noção da formação de um fractal, que possa ser uma chave, mas que está fora dos limites perceptíveis do olho humano. A potência desse acontecimento tem muito que haver com o que eu procuro no meu trabalho”.

 

Igor Jesus, Clavier à Lumières. Vista de exposição, instalação Poem of Fire. Rialto6, Lisboa. Fotografia: Vasco Stocker de Vilhena. Cortesia do Artista e Rialto6. 

 

Também nos trabalhos mais recentes, o som tem aparecido de forma recorrente, inventado, traduzido, transfigurado. “A minha formação foi em escultura, mas são os projectos que ditam o medium de cada trabalho. Neste momento, interessa-me a possibilidade de vocalizar imagens e com isso a criação de uma protolinguagem que permita a expansão do campo linguístico das imagens. Nos últimos dois anos, tenho trabalhado no aperfeiçoamento de um dispositivo, uma espécie de prótese, que possa servir como aparelho vocal para imagens”.

A juntar-se ao som tem estado a programação e a utilização de algoritmos, meios cada vez mais determinantes nos processos e nos resultados das peças. Encontramo-los desde 2017, na peça Voga, nos prémios Novos Artistas, Fundação EDP, onde a voz da actriz Claudia Cardinale, projectada a partir de um mecanismo analógico de natureza antropomórfica controlado por um algoritmo — nunca ouvida no cinema até ao filme O Leopardo (1963) de Luchino Visconti por não a considerarem suficientemente adequada — controla todos os mecanismos e determina a acção diariamente, impondo o ritmo e duração a uma enigmática performance, realizada , em ciclos, por dois remadores que se encontram a manejar máquinas de remo em cima de dois plintos.

"A construção de algoritmos permite-me gerar acontecimentos, e atribuir novas propriedades e estados às imagens, mas acima de tudo dá-me a capacidade de trabalhar cada pixel individualmente de forma cirúrgica. Por exemplo, numa peça, que estou a trabalhar e que ainda não está fechada, estou a atribuir carga magnética aos pixéis de acordo com a quantidade de cinzento que o compõem. Isso só é possível pela utilização de um algoritmo que permite aos físicos, criar modelos computacionais para análise do comportamento do movimento e a atracção das partículas a partir do seu campo gravitacional. Depois de definir a carga magnética de cada pixel, a sua estabilidade vai ser afectada pela criação de polos magnéticos que irão ser gerados no ecrã a partir de eletricidade e bobines alimentadas por som”.  

Mais especificamente, o uso da programação enquanto instrumento veio alterar o significado da própria imagem em movimento no interior de cada trabalho: “Essencialmente permite-me modular a imagem e produzir reações não editáveis. A possibilidade de transmutar uma gota de leite em uma bola de borracha passou a ser possível”.

O visível e o invisível.

Igor Jesus está a aprender programação, para compreender o que é um algoritmo ou de que forma se podem estudar fenómenos físicos a partir do poder computacional, mas o gosto das vanguardas modernistas pela máquina e a técnica não é um sentimento que partilhe. Não é um tecnófilo, o passado interessa-lhe enquanto arquivo e história. “Estou sempre muito ligado à história da arte, da produção artística, da produção musical, nos últimos dois anos em especial à música electrónica”. É à relação entre o visível e o invisível que esse racionalizar responde, sem ser guiado pela utilidade ou pela necessidade de produzir resultados, conclusões ou axiomas. O que desperta e motiva Igor Jesus é o gosto por uma especulação que não se satisfaz e que, em cada descoberta, leitura e impressão, se reanima.

Essa relação entre o visível é ou tem sido a génese. Se há consciência de que temos uma cegueira parcial, que somos parcialmente cegos, como podemos amplificar e manifestar em termos visuais e óticos esses acontecimentos? E atribuir-lhes uma dimensão estética ou energética que possa marcar o espectador? Lembro-me do filme Arnulf Rainer do Peter Kubelka e como a energia daqueles flashes podem reprogramar o espectador. Aliás, há uma história sobre o próprio Kubelka que evidencia e torna claro, que existe uma potência energética com essa capacidade reprogramadora. Na infância, bastou-lhe o contacto com um anúncio a um pudim para conseguir escrever o código do que viria a ser o seu ADN artístico”. 

 

Conta Igor Jesus que o primeiro contacto do realizador e artista austríaco com o cinema foi determinante para o trabalho que viria a fazer: “Na pousada da vila onde vivia, houve a primeira projecção de um filme. O Kubelka chega atrasado e só consegue lugar atrás da multidão que enchia a totalidade da sala. Não conseguiu ver nada, apenas sentir a tensão da sala. Lá conseguiu furar a multidão e chegar perto do ecrã, onde viu várias pessoas a fazer um pudim e legendas em estrangeiro. Só anos mais tarde é que percebeu que o que tinha visto era um anúncio a um pudim de baunilha da marca Dr. Oetker. Percebemos como esta experiência foi moldadora do que viria a ser o ADN do seu trabalho e que traduz na perfeição o tipo de cinema que tentou explorar, um cinema de essência, um cinema de evento, hipnotizado pelo seu próprio formato e não pelo conteúdo de um determinado filme. A ideia de reprogramar um espectador é aliciante”.

 

 

 

Igor Jesus

 

Rialto6

 

Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa

 

 

 

 

 

 

Outros artigos sobre o artista:

 

— Alexandre Estrela: A Third Reason e Igor Jesus: Clavier à Lumières 

— Perfil de Artista: Igor Jesus

 

 


 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

RODRIGORODRIGUES2022-3
RODRIGORODRIGUES2022-13

Igor Jesus, Banho Maria. Vistas de exposição. Escola de Artes da Universidade Católica Portuguesa com a curadoria de Nuno Crespo, Porto. Fotografia: Rodrigo Rodrigues. Cortesia do Artista e da Escola de Artes da Universidade Católica. 

 

Voltar ao topo