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Entrevista a Bárbara Wagner e Benjamin de Burca 

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Isabella Lenzi

Ginga e combate

Estás vendo coisas, primeira individual da dupla Bárbara Wagner (1980, Brasília) e Benjamin de Burca (1975, Munique) num espaço institucional português, foi inaugurada em meados de janeiro. Um mês antes do previsto, a exposição em cartaz na Galeria da Boavista de Lisboa teve que ser fechada, como tantas outras em todo o mundo, numa tentativa de conter a pandemia do COVID-19. Entre os dias 6 e 12 de abril, Estás vendo coisas (2016) estará disponível para visualização online numa ação promovida pelos artistas com as Galerias Municipais de Lisboa.

Parceiros de trabalho há sete anos, a dupla tem uma produção que transita de maneira fluida por distintos universos. Seus vídeos e fotografias fundem códigos das artes visuais e do cinema com a estética dos meios de comunicação de massa, das redes sociais e do Youtube.

Bárbara nasceu no planalto central do Brasil, na capital do país. Benjamin, na Baviera. O intercâmbio de experiências, a escuta e o fazer compartilhado são fundamentais na sua prática. Suas obras diluem os limites entre ficção e realidade e são, desde o princípio, concebidas em colaboração com seus “protagonistas”: indivíduos e grupos que encontram na dança, na música e em outras expressões artísticas, culturais e religiosas veículos de construção de identidade e afirmação, além de saídas para sua própria existência. Documentário, fantasia e imaginação se misturam para suspender e escancarar julgamentos e preconceitos. A partir de manifestações contemporâneas da indústria do consumo e da cultura pop, a dupla põe em evidência e desafia convenções de bom e mau gosto e apresenta a arte e a cultura como plataformas e ferramentas de integração social, auto-representação, luta e resistência.

No térreo da Galeria da Boavista Wagner & De Burca apresentam RISE (2018), obra rodada numa nova extensão do metrô de Toronto, Canadá, que conecta o centro com a periferia da cidade. Com forma de musical, o vídeo mergulha no contexto social e cultural de um grupo de jovens poetas e músicos canadenses de primeira e segunda geração, grande parte deles descendentes de imigrantes africanos e caribenhos. Desenvolvido em colaboração com seus protagonistas, RISE constrói um autorretrato deste grupo, ao mesmo tempo que interroga questões de pertencimento, liberdade, identidade e o poder das palavras. A sigla que dá título à obra, “Reaching Intelligent Souls Everywhere” [Alcançando almas inteligentes em todos os lugares], é o nome de um movimento criado pelo poeta canadense Randell Adjei. Formado por fatias historicamente marginalizadas da população da cidade, desde 2012 o movimento promove encontros em torno da prática do spoken-word [palavra falada] e do conceito de edutainment —misto de educação e entretenimento. Poesia e música são usadas para partilha de experiências pessoais. Seis anos após sua fundação, a iniciativa transformou-se numa plataforma expandida de arte, de interrogação coletiva e de resistência.

Estás vendo coisas, obra em vídeo que dá título à mostra, retrata o universo da música Brega do Recife —uma fusão de Hip Hop, Techno e Reggaeton—  a indústria de videoclipes que move e o desejo de sucesso que gera numa série de pessoas. No Brasil, o termo “brega”, ao mesmo tempo que é utilizado informalmente para definir de maneira pejorativa distintas formas de música popular de massa produzidas no país desde os anos 1970, também designa uma cena cultural e de resistência na periferia da capital de Pernambuco. As imagens de Bárbara e Benjamin testemunham a capacidade desta manifestação musical de extrapolar limites socioeconômicos e de habitar a paisagem sonora de uma cidade povoada por desigualdades e diferenças. 

Swinguerra (2019), videoinstalação com a qual a dupla representou o Brasil na última Bienal de Veneza, foi apresentada em Lisboa numa sessão especial, em versão mono-canal, no Cinema São Jorge. A obra acompanha a rotina de ensaios de diferentes grupos que dançam ao ritmo da Swingueira, do Brega Funk e do Batidão do Maloka, fenômenos populares na periferia do Recife, cujas origens remontam às tradições culturais do país, mas que operam num circuito fora do mainstream. Diante da câmera, os jovens dançarinos —muitos deles negros e transgênero— constroem performances de si mesmos, revelam o conhecimento que carregam em seus corpos e se autoafirmam numa mescla de ginga e de combate.

Numa conversa com Benjamin falámos sobre a mostra na Galeria da Boavista, em Lisboa, e sobre a prática da dupla.

Isabella Lenzi (IL): Além de discutir concepções de alta e baixa cultura e de colocar em xeque a ideia de bom ou mau gosto vocês introduzem uma série de outros questionamentos, ligados a temas como gênero, classe e indústria cultural. 

Benjamin de Burca (BB): A música, como forma, é uma ótima lente para discutir as questões sociopolíticas de hoje. Dificilmente não nos conhecemos e reconhecemos ao escutar uma música porque as formas musicais carregam questões de classe, gosto, raça, gênero. Mas é o cinema que pode dar a elas uma forma visual. A imagem e o som unidos têm a capacidade e o poder de exibir e cristalizar as questões a serem levadas em consideração e os argumentos e posições a serem adotados.

IL: Suas obras, apesar de tocarem nessas questões mais universais, são bastante calcadas em contextos específicos. Vocês percebem reações muito distintas nos diferentes países /locais que apresentaram seus trabalhos? Sobre a exposição em Lisboa. Qual foi o critério utilizado na seleção das obras?

BB: Nossos filmes trabalham contra a ideia de fronteiras e é curioso ver como a reação às nossas obras em cada país é definida pelo clima cultural e político local. O contexto pode afetar a maneira como o trabalho é lido e ao mesmo tempo pode revelar características da onde ele é mostrado.

Estava curioso para ver como esses filmes seriam recebidos em Portugal. Sempre achei interessante que, por conta da distância cultural, questões que podem ser óbvias para um brasileiro —em particular ao assistir a Estás vendo coisas— tornam-se sutis se o espectador é um alemão ou um suíço. Quando apresentamos o filme na Berlinale e no Fotomuseum Winterthur notei que o público considerou a obra comemorativa, cheia de cores e dança, enquanto que no Brasil ela tem uma leitura melancólica e levanta discussões relacionadas à divisão de classe e ao empoderamento social.

Devido às restrições do espaço, em Lisboa optamos por apresentar apenas dois trabalhos e exibir Swinguerra, que é uma instalação complexa, em um sala de cinema. Nunca havíamos mostrado RISE e Estás vendo coisas juntos e nos interessava exibir dois filmes que tratam de expressões “pop” como modos de expressão artística: do Hip-Hop e do Brega. Estás vendo coisas ressoa no público da cidade não apenas por ser um filme em língua portuguesa. É uma obra reconhecível porque sem dúvida deve haver equivalentes a esta expressão musical no contexto português. Já o Hip-hop ecoa na maioria dos países porque sua ascensão foi mais universal.

 

 

IL: Vocês questionam a noção de “dar voz” às minorias e a grupos marginalizados e desenvolvem os trabalhos em colaboração e em diálogo com as pessoas que neles aparecem. Como se dá o processo de aproximação a esses “protagonistas”? Qual costuma ser a reação quando vocês explicam o que fazem?

BB: Como podemos dar voz a pessoas que têm mais de 100.000 seguidores no Instagram ou que se apresentam regularmente em palcos diante de milhares de pessoas? O que fazemos é colaborar na construção de formas de representação. Não damos voz uma vez que os artistas com quem trabalhamos já têm fortes redes a partir das quais criam e dispersam sua imagem, suas ideias, sua criatividade e seu senso de individualidade. A grande maioria deles lançam online seus próprios vídeos de música ou dança e se apresentam em diversas plataformas e palcos locais. O que oferecemos é uma outra plataforma de exposição, distinta daquelas que eles já conhecem e têm acesso.

Nossos filmes estão sujeitos às condições específicas daqueles com quem trabalhamos. Há uma grande diferença no cotidiano e no padrão de vida dos cantores evangélicos de Terremoto Santo (2017) [outra obra da dupla], e dos dançarinos de Swinguerra. Naturalmente precisamos nos adaptar às condições e aos hábitos para aproximarmos de seus interesses e rotinas.

Passamos muito tempo junto com aqueles que, eventualmente, trabalhamos. Durante esse tempo, de maneira natural, criam-se laços e interesses mútuos. Tudo começa a tomar forma quando compartilhamos nossas ideias e a maneira como desejamos desenvolver uma obra específica. Na base dos nossos filmes está a vida e a rotina dessas pessoas naquele exato momento e muitas vezes este “presente” parece saído de um filme de ficção ou de um romance.

IL: Nos seus filmes, onde termina a realidade e começa a ficção? E no desenvolvimento das obras, o que é realidade e o que é ficção?

BB: É como na vida. Os artistas que participam dos nossos trabalhos têm que se reconhecer plenamente nas obras. Estes filmes são retratos, de tal maneira que os limites entre realidade e ficção são definidos pela medida de auto-reconhecimento dessas pessoas tanto em relação às suas personalidades internas quanto externas /privadas e públicas. Esse é o fundamento do retrato. É um espécie de contrato ou pacto entre o retratado e aquele que retrata para construir um retrato físico e psicológico que represente com justiça esse indivíduo ou grupo neste momento determinado, presente.

IL: RISE foi realizado no Canadá, em um contexto distante do Recife, onde tantas vezes trabalharam. Como foi o processo de pesquisa e aproximação a este lugar?

BB: Contextos sociais e culturalmente distantes podem estar ao dobrar a esquina. Você não precisa, necessariamente, ir para outro país para encontrar a diferença, mas ao envolver-se, ao observar, buscar aprender sobre, discutir e, finalmente, ao criar, compartilhamos nossas diferenças e aproximamos nossas semelhanças.

IL: Em outras entrevistas defendem que as suas obras não necessariamente representam o que está a margem. Por vezes —e esse é precisamente um ponto que gostam de ressaltar em seu trabalho—, as manifestações culturais que retratam são centrais em determinados contextos, mas invisíveis para alguns, ou alvo de muito preconceito. Pode comentar essa questão?

BB: Certa vez, após uma exibição difícil, recebida com aplausos altos e vaias igualmente altas, disse à plateia dividida: o cinema permite revelar nossos preconceitos a nós mesmos. O cinema como meio é um espaço de negociação de classe e gosto e, às vezes, pode ser um espelho que nos mostra precisamente esses preconceitos. Acredito que nossos filmes podem ter esse efeito no público. As pessoas se “veem” neles e nem sempre é uma imagem agradável de contemplar.

 

Bárbara Wagner & Benjamin de Burca

Galeria da Boavista

Isabella Lenzi. São Paulo, Brasil 1986. Curadora independente, editora e pesquisadora. Dirigiu por sete anos (2013-2019) o espaço cultural do Consulado Geral de Portugal em São Paulo / Camões I.P., no qual consolidou um local de debate e experimentação para artistas emergentes e históricos portugueses e brasileiros. Também integrou o núcleo de programação da Associação Cultural Videobrasil (2013-2015). Antes disso, trabalhou com exposições na Galeria Vermelho, em São Paulo (2012-2013), e, foi assistente de curadoria de Agnaldo Farias na XI Bienal de Cuenca, no Equador (2011-2012). Desde 2016 vive entre o Brasil e a Europa. Atuou como pesquisadora e assistente de curadoria na Whitechapel Gallery, em Londres (2017). Mais recentemente, colaborou em projetos realizados no Nouveau Musée National de Mónaco (2018); no PAC - Padiglione d’Arte Contemporanea de Milão (2018). Atualmente é coordenadora de exposições na Fundación MAPFRE de Madrid e acaba de ser selecionada num concurso público para trabalhar com uma bolsa de investigação no Departamento de Colecciones del Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía – MNCARS, Madrid.

 

Este texto foi escrito em português do Brasil. 

 

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Bárbara Wagner & Benjamin de Burca. Estás Vendo Coisas. Vistas gerais da exposição na Galeria da Boavista. Galerias Municipais de Lisboa. Fotos: Guillaume Vieira. Cortesia dos artistas e Galerias Municipais de Lisboa / EGEAC.

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