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Anuário 19, retrato da arte na cidade antes de um surto

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Gabriela Vaz-Pinheiro

 

Olhar uma exposição que atravessou o recente período de confinamento é impossível sem repensar a nossa própria presença no mundo, a forma como trabalhamos e como seguiremos relacionando-nos com as obras de arte e com a produção cultural no geral. É como um reencontro com um velho amigo que, embora mais grisalho, reconhecemos e, de repente, valorizamos ainda mais, fazendo jus àquela máxima de que a potencialidade da perda acorda o sentido e a vontade da pertença. É impossível, por isso, nestas reflexões, não falar sobre este reencontro e apontar algumas inquietações sobre o futuro ao percorrer uma exposição que, precisamente, nos apresenta e faz olhar para um passado recente.

Anuário é um projecto que analisa a produção artística da cidade através de vários olhares. A ideia é verdadeiramente excelente: fazer um levantamento continuado ao longo de cada ano, chamando um grupo variado de “opinion makers”, por forma a, naquilo a que os curadores responsáveis, Guilherme Blanc e João Ribas, designam como um ‘processo de curadoria participado’, gerar um panorama sobre a produção artística em espaços de acesso público na cidade apresentado no início do ano seguinte ao da sua produção. E a cidade só sai a ganhar!

Esta é a sua segunda edição e foi preparada por Catarina Miranda, Eduarda Neves, Filipe Marques, Samuel Silva e Simão Bolívar, a quem felicito naquela que, tendo sido fruto da escolha dos curadores principais, é a segunda função curatorial deste projecto. E este é um dos aspectos mais interessantes do Anuário, já que os cruzamentos curatoriais são desdobrados, não só no grupo que fica responsável pelas escolhas finais do que virá a ser exposto, mas também pelos processos curatoriais que geraram as exposições ao longo do ano de 2019 e que se encontram nas referências deixadas nas legendas, formando um palimpsesto de escolhas e orientações estéticas a que seguramente vale a pena prestar atenção.

Procurei em tempos reformular a ideia de déjà vu num formato que permitisse, talvez, explicar de que forma as imagens retornam, frequentemente orfãs, depois de lançadas no mundo. Chamei-lhe vue de nouveau (intencionalmente mantendo o francês) postulando uma ideia de compromisso ao futuro por oposição à ideia patente no conceito de déjà vu em que o passado morre de novo. Em vue de nouveau, como proponho, a memória contém uma formulação que se projecta para um futuro em potência, isto é gera um arquivo em que os significados são refeitos (ou seja, não gera simplesmente um espectro em que algo aparece desgastado como na sensação de déjà vu).

Vi a exposição antes do confinamento. Regressei na sua reabertura. A sensação de voltar a ver com um renovado sentido, ou seja com o tal compromisso ao futuro de que aqui falo, impôs-se pelas duas vezes.

Vemos algumas das obras que já tinhamos visto reposicionadas junto de outras que não conhecíamos, vemos um passado que, em potência, forma um arquivo dinâmico que se abre para o futuro. Toda a arte, toda a exposição, é uma recontextualização. Neste caso, como afirmam os curadores num “formato não linear”, em jeito de “arquivo nómada sem princípio nem fim”.

Não posso deixar de referir o espaço onde o Anuário acontece este ano, o Palácio das Artes no Largo de S. Domingos, no Porto, um palácio imponente, com uma presença e layout em que a linearidade das salas frustra claramente aquele sentido não linear que parece ter sido importante para os curadores. Escolha menos feliz de um espaço onde a exposição não cabe, com obras que se invadem mutuamente em algumas das salas. Um enorme contraste com o Anuário 18 que beneficiou das condições da Galeria Municipal montando um display arrojado e criativo.

Excepção feita, talvez, à escadaria que funcionou como auditório e palco de improviso para as performances da abertura por Guilherme de Sousa & Pedro Azevedo, dupla jovem que cruza várias áreas artísticas e que re-espacializou parte de Vernissage antes apresentada na Mala Voadora; e para uma re-encenação do espectáculo Pérola is Burning, que marca, no Anuário, a presença da actuação em contexto paralelo ao expositivo institucional como extensão até outros lugares de afirmação identitária e artística. Havia outras performances agendadas para Março e Abril, por, entre outros, António Poppe e Flávio Rodrigues, que se encontram adiadas para um outro momento ou à espera de um outro formato. Saúdo veementemente a presença da performance, e mais ainda nas diversas expressões com que aparece no Anuário, e deixo no ar uma das inquietações que apontei no início deste texto: que faremos agora com o espaço que nos separa de um/a performer, como poderemos deixar de ouvir a sua respiração tão perto quanto possível? A expressão ‘ao vivo’ de repente assalta-nos com uma emergência cuja esperança não queremos (não podemos) adiar.

Ainda no espaço de entrada encontramos os vídeos de Jonathan Uliel Saldanha, dos quais o projectado, na luz do dia, oferece dificuldades de visionamento, numa espécie de contradição sobre a visibilidade contemporânea (vislumbra-se um olho que não se consegue ver), enquanto no monitor uma viagem alucinante nos faz questionar o nosso azimute. Encontramos ainda o Palavódromo de Paulo Ansiães Monteiro (PAM) e o Totem e a destruição iminente #2 de Susana Chiocca, que, como mais à frente virá a fazer Mauro Ventura ou Mauro Cerqueira, piscam o olho à materialidade de uma espécie de arte povera contaminada por outros discursos, descontextualizações e assemblages. Ainda na entrada, de Pedro Tudela acompanha-nos o som, ou a sua espessura tornada escultura, em linha com a produção a que este artista já nos habituou. Nuno Ramalho apresenta na primeira sala uma obra de uma desmaterialização desconcertante, e mordaz sentido de humor, afortunadamente isolada.

Enquanto percorremos a sequência de salas, identificamos artistas em diferentes momentos de carreira, com percursos recentes, em momento médio ou estabilizados, como são exemplo Francisco Tropa ou João Baeta, o primeiro destes integrando um conjunto que representa uma dimensão escultórica juntamente com Vera Mota, o último ao lado de outros artistas que debatem o corpo em diferentes formatos, do vídeo à própria matéria biológica, como Daniel Moreira & Rita Castro Neves e Carla Castiajo.

A parte material de Vernissage de Guilherme de Sousa & Pedro Azevedo interrompe-nos o percurso. A sua homenagem a Richard Serra (é incontornável: a limalha de ferro) e outros que, no final dos anos 60, abriram o campo escultórico a uma espacialidade expandida, fica, julgo, fendida na separação da performance como tive a oportunidade de assistir na apresentação na Mala Voadora, mas a sua dimensão experiencial mantém-se e é capciosa. A sala seguinte coloca-nos entre a negritude de Fabrízio Matos, e o esforço colectivo pela visibilidade em Dan Halter, forma poética da impossibilidade do olhar, no primeiro, forma política de dar a ver enquanto ouvimos, em jeito de grito assertivo de esperança e liberdade, repetido até à exaustão, o hit de dança Everybody´s free, no segundo. Mas há também experiências ópticas, Tomás Abreu e Carlos Mensil, que brincam com o engano dos nossos sentidos. A sala mais frustrante pela absoluta falta de espaço, expõe as obras de Emídio Agra, um conjunto de gestos mínimos que reorganizam o quotidiano; Patrícia Geraldes, uma obra cuja serialidade táctil merecia muito mais espaço; e duas obras de Carlos Arteiro, resultado de uma exploração material em residência, cuja colocação prejudica o merecido visionamento.

Surpreendente a instalação de pendor forênsico pelo colectivo Comité Expedicionário de Desorientação, como reflexão sobre os destinos da cidade, que convive com os desenhos instalados de Celeste Cerqueira, e o vídeo de Tiago Afonso Punk’s not Dread que, pelas vivências retratadas e o espaço inicial de apresentação, o Centro Comercial de Cedofeita, traz um dinamismo não institucional. O duo ACCA — André Covas e Carmo Azevedo instalam, no espaço do cofre, a sala inicialmente apresentada no Open Studio Campanice, assim, também eles, trazendo um espaço não institucional ao Anuário. A peça é divertida, reflecte sobre a manipulação a que nos deixamos sujeitar, mas expõe também as ilusões e limitações da chamada arte interactiva. Na última sala, à denúncia da obscuridade dos media por Ângelo Ferreira de Sousa, junta-se a reutilização dos materiais mundanos pela mão de João Pedro Trindade e o gesto warburgiano de Marco Pires, como se fossem diferentes catálogos referenciais de um mesmo mundo. E depois, em jeito de representação da pintura e do desenho, João Gabriel Pereira, pela primeira, com uma obra muito bem escolhida, e Mariana Barrote, pelo segundo, aludindo à descorporização do gesto de desenhar.

Deixo uma última inquietação: com vários meses sem renovação da actividade expositiva, como vai ser o anuário 20?

Como conseguiremos representar a experiência de suspensão, as exposições que, no Porto como no mundo, ficaram fechadas sem espectadores? Que terá acontecido nesses espaços sem gente durante o confinamento como se as obras pudessem ter encetado diálogos secretos à maneira de Toy Stories, reconfigurando os seus significados talvez com humor e descomprometimento ao abrigo do olhar e do julgamento dos humanos?!

Mas não terminarei este texto com uma fábula ligeira, a minha verdadeira inquietação prende-se com aquilo a que se costuma chamar a ‘fidelização de públicos’. Como irão as pessoas voltar às exposições, em particular aquelas que sentem menor facilidade de acesso e que a cidade estava tão activamente a procurar, e tão francamente a conseguir, captar? Voltar a celebrar a abertura de uma exposição com a adesão e entusiasmo com que o Anuário 19 abriu, não pode ficar como um desejo irrealizável. Os números deixaram de poder ser um indicador de sucesso (seguramente para procedimentos concursais) porque, até ver, vai ser preciso doseá-los. A experiência colectiva da arte, tão crucial para gerar um sentido de partilha e fazer avançar o que fazemos, tem que ser reformulada, e não será online, nem em diferido, deverá ser num espaço social consistente que não podemos nunca deixar que se perca, e isto muito para além do espaço físico que ocupamos. Que o espaço que emane deste texto possa para isso também contribuir. Até ao Anuário 20!

 

Anuário 19

 

Gabriela Vaz-Pinheiro é formada em Escultura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Possui o Mestrado Europeu em Cenografia pelo Central St. Martins College e Utrecht School of the Arts; o Mestrado em Teoria e Prática da Arte Pública e Design pelo Chelsea College of Art & Design eo Doutoramento por projecto pelo Chelsea College. Leccionou na Central St. Martins College of Art & Design, em Londres, entre 1998 e 2006. Responsável pelo Programa de Arte e Arquitectura para Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura. É atualmente Directora do Mestrado em Arte e Design para o Espaço Público e Professora Auxiliar desde 2006 na FBAUP. É Membro Integrado do i2ads, Instituto de Investigação em Arte Design e Sociedade. 

 

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Anuário19. Vistas da exposição no Palácio das Artes, Porto. Fotos: Dinis Santos / Galeria Municipal do Porto. Cortesia de Galeria Municipal do Porto. 

 

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