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Yto Barrada: Mois je suis la langue et vous êtes les dents 

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Sofia Nunes

A artista franco-marroquina Yto Barrada é uma exímia coletora e contadora de histórias. Nem as histórias articuladas pelos seus trabalhos obedecem a uma ordenação racionalizada dos assuntos, no que respeita às temáticas ou às épocas, nem se encaixam nas categorias de factos verídicos ou ficcionais. De estrutura compósita, baralham episódios, tempos e registos, confundem o que é biográfico com o social, assumem o inverosímil como plausível e mesclam referências geográfico-culturais, criando um mosaico de planos distintos onde a questão da identidade cultural, aliada a uma perspetiva feminista, se vão implicando com elevada agudeza, sensibilidade e humor.

Assim volta a acontecer na segunda exposição individual da artista em Portugal, organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, com curadoria de Rita Fabiana. Mois je suis la langue et vous êtes les dents [Eu sou a língua e vós os dentes] é o título da mostra e uma expressão que Yto Barrada encontrou nos cadernos de apontamentos da etnóloga francesa Thérèse Rivière, irmã do museólogo Georges-Henri Rivière, enquanto procurava junto dos arquivos do Musée du quai Branly, Paris, brinquedos e jogos trazidos do Norte de África para França durante o período colonial. A expressão fora anotada por Rivière entre 1934-1936 durante o trabalho de campo que desenvolveu sobre a etnia berbere Chaouias, nas montanhas do Aurès, Argélia, então colónia francesa. E embora enigmática, condensava no seu jogo de palavras as marcas de poder (quem detém a “língua”, a ordem) e resistência (quem utiliza os “dentes”, ou seja, a força para inverter a posição de subordinado) visíveis no interior das estruturas familiares daquela comunidade ou nas relações entre colonizado e colonizador.

São estas mesmas tensões, onde os pares ocidental/magrebino, individual/coletivo, família/país, mulher/homem se debatem, que Yto Barrada procura explorar em toda a exposição para ir desconstruindo, com a sua habitual fluidez, determinadas hierarquias e estereótipos. Fundamental aqui são também as várias apropriações e sobreposições de memórias, figuras e contextos que a artista convoca, a par de vai-e-vens entre culturas e entre linguagens abstratas e linguagens tangíveis às vivências quotidianas. Não será por acaso, portanto, que a exposição começa com uma série de fotogramas com papéis de bombons comidos por Barrada, Untitled (Bonbon series), 2015-17, onde a artista pisca o olho às colagens de pratas de bombons que a artista portuguesa Lourdes Castro realizou em 1965.

Dos treze trabalhos expostos, Hand-Me-Downs, 2011 é o mais antigo. Neste vídeo, apresentado num monitor, acedemos às condições de vida e hábitos culturais em Marrocos nos anos de 1940 e de 1960 através de registos familiares distintos. Barrada conta-nos em voz-off 15 histórias na primeira pessoa, substituindo-se ao pai, à mãe ou aos avós. Ouvimo-las como memórias abstratas, pois que as imagens exibidas, filmadas por colonos franceses, representam as suas famílias e o seu olhar sobre os marroquinos. Ambos os registos, textual e visual, apesar de dissonantes e representando pontos de vista antagónicos, vão criando dialéticas curiosas entre si até sugerirem afetações mútuas resultantes de uma história colonial comum. A incorporação de trechos de músicas jazz não é aqui displicente.

E se estas afetações recaem sobre episódios de desigualdade e violência, acabam também por revelar situações de grande humor que desfazem continuamente a dicotomia entre civilizado/não civilizado.

Já na vídeo projeção Tree Identification for Begginers, 2017 somos transportados para o período pós-colonial e novos conflitos se desenham. Estamos em 1966 e a mãe de Yto Barrada, uma jovem estudante marroquina, de consciência revolucionária e feminista, viaja para os EUA integrada na “Crossroads Africa Operation”, uma iniciativa de intercâmbio cultural patrocinada pelo estado americano. Confrontada com o caráter propagandístico do programa e o racismo galopante nos EUA, a mãe rompe com as regras do programa e visita o interior do país. A história é narrada a várias vozes, representando os organizadores da iniciativa, os participantes (a mãe surge através da voz de Barrada), e alguns ativistas ligados ao Pan-africanismo e ao Black Power. Enquanto escutamos os testemunhos, assistimos a uma animação stop motion de um jogo educativo Montessori com peças geométricas coloridas. O jogo de encaixe e desencaixe no tabuleiro a que cada peça é submetida enfatiza, por sua vez, não sem ironia, os confrontos políticos vividos na altura, bem como as forças que se vão estabelecendo entre a subjetividade crítica e a vivacidade da mãe e a ordem dos discursos institucionais do Estado.

Por sua vez, as peças Untitled (After Stella), 2018, apropriam-se da série de pinturas Marrocos de Frank Stella, concebidas nesse período dos anos de 1960, criando novas deslocações, desta vez exercidas sobre as narrativas do modernismo. As célebres composições abstratas do artista norte-americano, constituídas por bandas coloridas que reescrevem a forma quadrangular da tela, são aqui reconstruídas em tecido tingido com uma solução preparada por Barrada à base de corantes feita a partir de plantas, especiarias e minerais. Não só a tradição pictórica modernista é treslida por uma técnica tradicional vernacular, como a posição do artista masculino ocidental é preenchida pela figura da mulher artista marroquina.      

Duas peças dedicadas a Thérèse Rivière merecem ainda a nossa atenção, consolidando esta referência no interior da exposição. Jeu de construction Thérèse (Thérèse Unit Blocks), de 2018, consiste numa instalação escultórica composta por unidades tridimensionais geométricas pintadas de branco. A analogia ao minimalismo surge no imediato, sobretudo quando a memória de Stella está presente. Porém, os volumes ganham um sentido lúdico que nos faz interpretá-los de volta como fragmentos arquitetónicos, cujas formas nos lembram os esquissos documentados na peça de slides projetada na parede da frente.

Nesta peça, Untitled (Unruly Objects. Thérèse Rivière Mission, musée du quai Branly), de 2016, Barrada fotografa os desenhos de traço simples de Rivière, alusivos às habitações da população do Aurès, bem como o seu caderno de anotações e os muitos objetos que esta levou para França, pertencentes ao quotidiano dos Chaouias. O ato de expropriação de um património alheio é aqui reapropriado pela câmara de Barrada sem dogmatismos e desfazendo lugares fixos uma vez mais. Se os slides dão visibilidade a um nome feminino da etnologia moderna que nunca chegou a ser devidamente reconhecido, bem como à sensibilidade e atenção crítica das suas técnicas de estudo, por outro lado, imiscuem objetos de cultura material berbere na sala de arte. Afinal para Yto Barrada nem a arte, nem os processos de construção cultural ou identitários se jogam à margem de contágios e bifurcações.       

Yto Barrada

Museu Calouste Gulbenkian

Sofia Nunes. Crítica de arte e doutoranda em História da Arte/Teoria da Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - UNL e na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Exerceu assistência de curadoria e produção de exposições no Museu do Chiado – MNAC, Ellipse Foundation e Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém (2000 a 2007). Foi professora convidada no Mestrado de Arte Contemporânea da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2009 a 2011). Escreve com regularidade para publicações de arte contemporânea e académicas.

 

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Untitled (After Stella, Asilah, I), 2018
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Untitled (After Stella, Tangier I), 2018
Yto Barrada_ Moi je suis la langue et vous êtes les dents

Yto Barrada. Mois je suis la langue et vous êtes les dents. Vistas da exposição Museu Calouste Gulbenkian. Fotos: © Catarina Gomes Ferreira. Cortesia do Museu Calouste Gulbenkian. 

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