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Rocambole: Flora Rebollo, Thiago Barbalho e Yuli Yamagata

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Sara De Chiara

Uma célebre série de trabalhos em bordado de Alighiero Boetti, iniciada nos anos 80, contém uma grande variedade de pequenas imagens, motivos figurativos e silhuetas multicolores reunidas sobre a superfície da tela. Dispostas como se fossem peças de um puzzle, as figuras estão agrupadas em todas as orientações possíveis, com os contornos de cada uma encaixados nos contornos das figuras que lhes estão próximas, de modo a não haver qualquer espaço vazio. O princípio de não haver um princípio de selecção é a base desta série que, com o título Tutto (Tudo), reúne a maior quantidade possível de imagens, pequenos ícones de origens diversas: objectos simples, jornais, livros infantis e enciclopédias. A natureza fragmentária dos elementos, espalhados sobre a tela sem respeitar os limites impostos pelas margens, sugere que os trabalhos são secções cortadas de um todo maior, porções de um espectro infinitamente mais alargado de coisas. Produzida por artesãos afegãos que seguiram as instruções do artista, a série também redefine o papel do autor, aqui aberto a uma nova dimensão colectiva.

Julgo ter visto pelo canto do olho, enquanto descia as escadas da Kunsthalle Lissabon, uma referência a estes trabalhos de Boetti, dada a proliferação intensa de imagens e as cores vibrantes, um sentido lúdico, de abertura e inclusão, em vez de exclusão, uma dinâmica de diálogo e colaboração que atravessa a exposição. Rocambole é o segundo episódio de uma exposição colectiva apresentada pela primeira vez no verão de 2018 no Pivô, em São Paulo. Flora Rebollo, Thiago Barbalho e Yuli Yamagata conheceram-se em 2017 durante o programa de residências de pesquisa no Pivô, como Fernanda Brenner explica no texto que apresenta a exposição, e o projecto está profundamente enraizado nesta experiência de diálogo, uma interacção entre os artistas que “desvendou uma série de laços formais e conceptuais entre as suas práticas”. Produzidos num estúdio partilhado, os trabalhos dos três artistas brasileiros ecoam uns nos outros e parecem ter origem num processo criativo semelhante.

O Rocambole evocado no título da exposição refere-se ao elemento gráfico em forma de espiral, recorrente na prática dos artistas, e ao seu consequente movimento duplo, centrípeto e centrífugo, que se prolonga da interioridade do artista para os trabalhos, que ao mesmo tempo activa dinamicamente o espaço e compõe um todo harmonioso.

Rocambole (2019) é também o título do grande desenho feito com vários materiais por Flora Rebollo que serve de pano de fundo do espaço expositivo e marca o seu ritmo. A composição consiste numa série de molduras pintadas, divididas em espaços rectangulares decorados, que formam um percurso à volta do qual os jogadores movem as peças no tabuleiro do jogo do Ganso. Estas secções quadrangulares convergem para o centro onde, num fundo cinzento e irregular, um conjunto de elementos soltos e abstractos flutuam: pequenos fogos-de-artifício de cores, formas biomórficas, linhas e sombras suaves, arabescos e microorganismos, de entre os quais surgem alguns mostradores de relógio.

Com formação em escultura, Rebollo passou a dedicar-se ao desenho por ser um meio de expressão mais directo e intuitivo, no qual não existe qualquer espaço entre pensamento e acção e em que as formas não são premeditadas mas, antes, florescem no exacto momento em que são desenhadas. É uma forma de fazer que faz lembrar as práticas automáticas surrealistas, uma tentativa de registar a totalidade do fluxo, conduzido pela espontaneidade aleatória do pensamento e da imediatez do gesto. Todo o desenho lembra o tabuleiro de um jogo cujas regras os espectadores não conhecem.

O caminho definido no desenho materializa-se no próprio espaço na instalação de Yuli Yamagata. A prática da artista é caracterizada pela uso de tecidos impressos que habitualmente são o ponto de partida, não apenas material mas também iconográfico, dos seus trabalhos: o tecido é cortado, acolchoado e cosido de modo a devolver a natureza tridimensional às imagens e padrões que neles estão impressos, transformando a fina superfície num volume. A utilização da licra, tecido frequentemente utilizado na roupa desportiva, realça a suavidade redonda das formas e confere aos trabalhos uma tensão interna, uma alusão ao movimento através da projecção de alguns elementos escultóricos no espaço, reconfigurando a sua relação com o espaço envolvente. Na instalação Untitled (2019), licra branca e de cores primárias é cosida para criar composições abstractas e depois esticada em molduras quadradas espalhadas pelo chão para formar uma estranha topografia, como se fossem peças de um puzzle que pode ser novamente montado ou até caixas de um jogo de tabuleiro. Alguns elementos, também em tecido, são cosidos a estas peças dispostas pelo chão conferindo-lhes plasticidade, elementos que simulam uma paisagem com pontes e colinas e que ao mesmo tempo definem um universo de formas orgânicas e biomórficas, evocadas pelas grandes gotas vermelhas (Drops, 2019) penduradas do tecto que funcionam como contraponto à composição no chão.

Thiago Barbalho estudou filosofia e desenvolveu trabalho sobretudo na escrita antes de se dedicar às artes visuais, identificando na prática do desenho uma forma de ultrapassar os limites da linguagem escrita. Longe de ser um modo de percepção racional do mundo, o desenho estimula o artista a assumir uma atitude perceptiva em relação à realidade e torna-se um instrumento para uma análise interior. Sem título (2019) é um desenho sobre papel que contém um conjunto de pequenas imagens criadas a partir de uma grande variedade de técnicas — da tinta em spray à grafite e marcador, tinta de óleo a lápis de cor — para exprimir um vasto leque de coisas, registar o gesto imediato e primitivo, bem como retratar a plenitude de um universo cheio de imagens, tal como o mundo em que vivemos, indo da natureza aos domínios urbano e tecnológico. A superfície abstracta esconde um universo repleto de figuras que só aparecem quando as vemos de perto.

Rocambole é uma oportunidade única para apreciar o trabalho de três jovens artistas brasileiros e ter uma amostra em Lisboa do que o Pivô anda a fazer do outro lado do oceano, graças a João Mourão e Luís Silva que, para o décimo aniversário da Kunsthalle Lissabon, decidiram acolher um programa de exposições convidando quatro parceiros internacionais a ocupar o espaço e toda a infraestrutura.

Pivô

Kunsthalle Lissabon

Sara De Chiara é crítica de arte e curadora. Doutoranda em História da Arte Contemporânea na Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade La Sapienza di Roma. Colaborou com a publicação do novo catálogo raisonné do artista Umberto Boccioni (2017). Escreve com regularidade para catálogos e revistas de arte contemporânea. Trabalhou como assistente editorial na redacção da revista científica "Storia dell'arte" (2012-2013) e durante vários anos trabalhou na DEPART Foundation onde organizou projetos e exposições na American Academy in Rome e no MACRO Museum, ambos em Roma (2012-2015).  

 

Tradução do inglês por Gonçalo Gama Pinto

 

Rocambole: Flora Rebollo, Thiago Barbalho and Yuli Yamagata

Pivô at Kunsthalle Lissabon

A famous series of embroidered works by Alighiero Boetti, started in the 80s, features a myriad of small images, of figurative motifs, multicoloured siluhettes aggregated on the surface of the canvas.  Arranged in a jigsaw pattern, the figurines are combined in all the possible orientations, the contours of each one match those nearby, so that no empty space is left. The principle of not having a selection principle is the basis of the series which, titled Tutto (Everything), gathers together the largest possible quantity of images, small icons from different sources: simple objects, newspapers as well as children’s books and encyclopedias. The fragmentary nature of the elements, spread all over the canvas without respecting the limits imposed by its edges, suggests the works are sections cropped from a wider totality, portions of an infinitely larger spectrum of things. Produced by Afghan artisans following the artist’s intructions, the series also redesign the role of the author, open to a new collective dimension.

I think I glimpsed out of the corner of my eye, while descending Kunsthalle Lissabon’s staircase, a reference to these works by Boetti, for the intense proliferation of images and chromatic vibrancy, a sense playfulness, of openness and inclusion instead of exclusion, a dynamic of dialogue and collaboration that permeate the exhibition. Rocambole is the second episode of a group show presented for the first time in the summer 2018 at Pivô in São Paulo. Flora Rebollo, Thiago Barbalho and Yuli Yamagata have met in 2017 during the art residency programme Pivô research, as Fernanda Brenner explains in the text that introduces the exhibition, and the project is deeply rooted in this experience of dialogue, an interaction between them that “unveiled a series of formal and conceptual links between their practices”. Produced in a shared atelier, the works of the three Brazilian artists resonate with each other, they seem to originate from a similar creative process.

The Rocambole evoked in the exhibition title refers to the spiral, a graphic element recurring in the artists’ practice, and its consequent double movement, centripetal and centrifugal, that from the artist’s interiority extends to the works, which dynamicize the space, and return to compose a harmonious whole.

Rocambole  (2019) is also the title of the large mixed media drawing by Flora Rebollo, that serves as a backdrop of the exhibition space and set its rhythm. The composition consists in a series of painted frames, divided into rectangular, decorated spaces, as to form the track around which players move pieces on the board of the game of Goose. These squared bands converge towards the centre in which, on a grey uneven background, a group of loose, abstract elements float: small fireworks of colours, biomorphic shapes, soft lines and shadows, arabesque and microorganisms, among which some clock faces appear.

Trained as a sculptor, Rebollo turned to drawing as a more direct and intuitve mean of expression, in which there is no gap between thought and action, in which forms are not premeditated but blossom at the very moment in which they are drawn. It is a making process that recalls surrealist automatic practices, an attempt at recording the totality of the flow, guided by the random spontaneity of thought and immediacy of the gesture. The whole drawing resembles a game board of which viewers do not know the rules.

The track outlined in the drawing materialises in the actual space in the floor installation by Yuli Yamagata. The artist’s practice is characterized by the use of printed fabric, which usually constitutes the starting point, not only material but also iconographic, of her works: the fabric is cut, padded and sewn in order to restore the three-dimensional nature to the images or patterns that are printed on it, transforming the thin surface into a volume. The use of lycra fabric, typical of sportswear, emphasises the round softness of the shapes, and provide the works with an inner tension, an allusion to movement through the protrusion of some sculptural elements in the space, reconfiguring their relationship with the surrounding environment. In the installation Untitled (2019), lycra of primary colors and white is sewn to form abstract compositions and stretched on square frames, scattered on the floor to form a strange topography, like pieces of a puzzle that can be reassembled, or even boxes of a board game. Some elements, in fabric too, are sewn onto these pieces laid out on the ground and give them plasticity, elements that simulate a landscape with bridges and hills and at the same time they outline a universe of organic, biomorphic forms, recalled by the large red drops (Drops, 2019) hanging from the ceiling, acting as a counterpoint to the floor composition.

Thiago Barbalho studied philosophy and comes from the experience of writing before devoting himself to visual arts, identifying in the practice of drawing a way of overcoming the limits of written lnguage. Far from a rational understanding of the world, the drawing encourages the artist to assume a perceptive attitude towards reality, and becomes a tool for an inner investigation. Sem título (2019) is a drawing on paper containing a plethora of small images made with a great variety of techniques — from spray paint to graphite and marker, oil paint and coloured pencil — to express a wide range of things, to record the immediate and primitive gesture, as well as depict the plenitude of a universe full of images, as is the world we live in, ranging from nature to urban and technologic realms. The abstract surface hides a teeming universe of figures which appear to a close vision.

Rocambole is a unique opportunity to appreciate the work of three Brazilian young artists and get a taste in Lisbon of what Pivô is doing on the other side of the ocean, thanks to João Murão and Luís Silva who, for the tenth anniversary of Kunsthalle Lissabon, decided to host a programme of exhibitions inviting four international partners to take over the space, as well as the whole infrastructure.

 

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Rocambole. Pivô na Kunsthalle Lissabon. Vistas gerais da exposição. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia de Kunsthalle Lissabon. 

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