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Ricardo Jacinto: Filão

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Isabel Nogueira

É sempre o som. Podíamos iniciar por aqui uma reflexão sobre o trabalho de Ricardo Jacinto (n. 1975). E este som apresenta-se, a nosso ver, como um consistente filão da sua pesquisa. Filão é, de resto, o título desta exposição individual na Galeria Bruno Múrias. Ricardo Jacinto torna o som plástico, envolvente e produtivo de memória e de registo, muitas vezes, e novamente agora, utilizando o violoncelo como mediador.

A peça central desta exposição — Filão (Medusa), 2018-2019 — foi inicialmente elaborada em 2007, como resultado da experiência vivida nas Minas da Panasqueira, no Fundão. É uma peça poderosa, evocativa de um território situado entre a arquitectura e a escultura. A obra encontra-se disposta em triângulo e ocupa a quase totalidade do espaço. Cada parte constitutiva deste triângulo possui uma fenda, como se de um filão de minério efectivamente se tratasse. Este filão poderá também referir-se à condução do som, assim como à circulação do olhar e do ouvido do espectador ou, por hipótese, à fenda, ao intervalo, ao abismo. Ao silêncio. O som é também silêncio, pausa, vácuo, nada. E segue-se o som efectivo, aliás, só assim faz sentido, numa alternância de expectativa com acontecimento. A impactante peça possui um sistema electroacústico multicanal de captação e de difusão do som, que o artista concebeu para violoncelo.

Medusa é o subtítulo desta peça central. Medusa, ser mortal, era uma entidade ctónica, quer dizer, oriunda do mundo subterrâneo. Diz a mitologia que quem para ela olhasse directamente se transformava em pedra. E novamente esta ideia de terra, de memória e de revelação subjectiva de uma qualquer vivência. Neste caso, possivelmente também evocativa das Minas da Panasqueira. A cabeça da Medusa, decapitada por Perseu, serviria para afugentar o mal. A música também pode ter esta função, inclusivamente, também de catarse. A sonoridade como porta para uma outra dimensão, para outra atmosfera.     

No centro da composição surge um clássico retroprojector — Splinter (Parque), 2014 —, que devolve à parede uma imagem enigmática, uma espécie, também ela, de uma filão ou de uma fenda alargada, indefinível. Os dispositivos sonoros fazem o som ecoar, voltar, aumentar, diminuir, desaparecer. E tudo volta ao início, numa sensação hipnótica, orgânica e poética, que envolve o espectador e que com ele se relaciona, remetendo para outras dimensões, metáforas, vivências. Há uma qualquer topografia de sonoridade e de memória que vai tomando consistência, corpo, dimensão, espessura.

O som encontra-se por todo o universo, como se sabe. Seja na forma musical, seja nos sons dos animais, do trânsito, da chuva tropical, de um clube nocturno, de uma conversa, de um insecto. A sua permanência é tal que, tantas vezes, nem damos por ele. Mas ele está lá. Inclusivamente, em registos não audíveis pelo ser humano. De facto, muitas vezes, o que surpreende não é o som, mas precisamente a sua aparente inexistência. E a arquitectura do som na sua relação com o espectador e o seu desenvolvimento no espaço são aspectos do trabalho exploratório de Ricardo Jacinto, cumprindo uma profícua articulação das artes plásticas com a sonoridade e com a dimensão espacial, onde tudo acontece. E esta articulação confere uma singularidade ao trabalho em questão.

A ligação das artes plásticas à vertente sonora, eventualmente musical, foi uma das possibilidades que a vanguarda histórica, nomeadamente o futurismo, estabeleceu de modo assertivo e problematizante. Pensemos nas experiências sonoras de Luigi Russolo e do seus instrumentos experimentais conhecidos como “intonarumori”. Como o próprio afirmaria (L'Arte dei Rumori, 1913): “A variedade de ruídos é infinita”. E efectivamente este entendimento exploratório avançaria pelo século XX, de modo notório nas experiências da neovanguarda e, por exemplo, do movimento Fluxus. A arte assume-se como experiência artística total, sem delimitação de territórios e de suportes.

O trabalho de Ricardo Jacinto move-se por uma matriz sonora, mas também corpórea, tridimensional e visual. A espacialização do som, o modo como ele ocupa um lugar e uma atmosfera, o modo como se relaciona com esse lugar, nomeadamente ao nível da fragmentação e da sua relação com o espectador, são questões centrais. Por outro lado, esta matriz vivencial e de memória apresenta-se constante. Pensemos — e agora não apenas nesta exposição — em outras peças, concretamente, em fragmentos de violoncelo partido. O estilhaço, a acção, a história de uma qualquer relação objectual, mesmo que metafórica ou simbólica, como consequência que se prolonga no presente. Na verdade, à semelhança do que sucede com o som. O som aconteceu antes de acontecer. A onda sonora tem, como se sabe, o seu tempo de propagação. Num certo sentido, o som é sempre passado, colocando a sua recepção efectivamente num outro tempo distinto do tempo de emissão. Já aconteceu o que estamos a escutar, criando-se uma espécie de limbo, de hiato, de suspensão. E esta flutuação devolve-nos ao início. É sempre o som.  

Ricardo Jacinto

Galeria Bruno Múrias

Isabel Nogueira (n. 1974). Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte (Universidade de Lisboa) e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne). Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014); "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015); "Théorie de l’art au XXe siècle" (Éditions L’Harmattan, 2013); "Modernidade avulso: escritos sobre arte” (Edições a Ronda da Noite, 2014). É membro da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte).

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Ricardo Jacinto. Filão. Vistas da exposição Galeria Bruno Múrias. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Galeria Bruno Múrias. 

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