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Nuno Nunes-Ferreira: dois anos e meio

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Maria Beatriz Marquilhas

 

Invenções há, que se transformam ou acabam; as mesmas instituições morrem; o relógio é definitivo e perpétuo. O derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há-de ter um relógio na algibeira, para saber a hora exacta em que morre.

Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas

O tempo tem uma condição dupla: é um agregado de unidades infinitamente divisíveis e, simultaneamente, um continuum indivisível de experiências. No texto (Sensitive) Consciousness and Time: Against the Transhumanist Utopia [1], Franco “Bifo” Berardi distingue inteligência e consciência (counsciousness) na seguinte passagem: "inteligência é a capacidade de compreender um agregado como combinação de unidades discretas (i.e. a capacidade para calcular uma extensão temporal em termos de unidades discretas de tempo convencional). Por outro lado, a consciência enquanto sensibilidade é a capacidade de experienciar a qualidade contínua da matéria e da temporalidade". Perante a incomensurabilidade do tempo enquanto fluxo contínuo que não pode ser reduzido a informação, a razão humana recorre a uma complexa, milenar e tendencialmente universal rede de contagem, segmentação e medição desse continuum temporal. Segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, estações, anos, décadas... o glossário é extenso e o seu propósito é o de converter uma unidade contínua em unidades discretas, passíveis de serem isoladas e contabilizadas. Sabemos, no entanto, que a natureza do tempo é a de constantemente escapar ao seu aprisionamento, que é hermético e que nos responde sempre que "tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem."

dois anos e meio é simultaneamente o título e o tempo de investigação e produção da exposição que Nuno Nunes-Ferreira apresenta na galeria Balcony, até 20 de Maio, com curadoria de Luísa Santos. Com trabalhos compostos por milhares de recortes de jornais, revistas e publicidade, dois anos e meio é um trabalho em expansão.

Num movimento de descentralização, o espectador é enviado para uma torrente de ocorrências de menor ou maior relevância, marcos, datas festivas e anúncios publicitários, nos quais abundam as alusões a diversas temporalidades.

Começamos com as quatro estações: Primavera, Verão, Outono e Inverno, quatro grandes telas cobertas por recortes de jornais, que foram recolhidos e colados entre 2016 e 2019. Quatro rectângulos formam grelhas intrincadas de palavras, agrupadas pelo tipo de letra e pela origem: primeira página do jornal, páginas centrais, páginas de desporto e restantes páginas, respectivamente. Numa saturação visual que se aproxima da abstracção, estas colagens apontam para um excesso de informação que cria uma cacofonia ensurdecedora em que o sentido de qualquer mensagem se perde. Em Tennis match, um vídeo apresenta 365 fragmentos de vídeos disponíveis na internet de pessoas a abrir garrafas de champanhe com espadas, uma técnica com o nome de sabrage. O que se destaca é o som estrondoso, que associamos a momentos de celebração, aqui marcado pelo ritmo sequencial de um relógio.

Uma ano divide-se em 12 meses, uma semana em 7 dias e um dia em 24 horas: é deste modo que estão organizados os três arquivos que o artista apresenta no piso subterrâneo da galeria. Trata-se de dezenas de dossiers, organizados sequencialmente, no interior dos quais encontramos, dissecados, os dias, minutos e horas que os compõem, assinalados com recortes de jornais, revistas e publicidade. Tudo acontece dentro do tempo. Esta geometria de mapeamento temporal localiza-nos como a quadrícula organiza o espaço de uma folha em branco — dentro de cada mica, é uma folha de papel quadriculado que serve de fundo para cada um dos recortes. Também em chegar aos cem, um dossier compila notícias que se referem a cada um dos anos que compõem um heterogéneo centenário. Nestes arquivos, o exercício de folhear torna-se um gesto metafórico da transitoriedade do tempo, que aqui pode ser revertido, dilatado, acelerado ou atrasado. No Arquivo IX, uma televisão apresenta ainda um frame com uma imagem de um relógio que marca o tempo real do dia em que se está a observar a obra, numa referência ao icónico The Clock de Christian Marclay. A sequência de imagens corresponde ao único vínculo em sincronia com um tempo real, não manipulável pelo visitante, presente na exposição.

A velocidade vertiginosa da passagem do tempo em que hoje vivemos resulta numa divisão cada vez mais segmentada do fluxo temporal. Nos universos noticioso e publicitário, cada segundo é fecundo em acontecimentos de toda a ordem, incentivos ao consumo e imagens que fixam e arquivam cada instante que passa. Segundo Henri Bergson, "a duração é, essencialmente, o prolongamento de algo que já não existe em algo que existe." [2] dois anos e meio prolonga a duração que lhe cede o título, disseca-a até às suas fracções mais infinitesimais, torna-a espacial, material, sob permanente consulta. Nuno Nunes-Ferreira fala-nos de tempo através de um dispositivo estático e reversível, logo, atemporal. (E poder-se-á falar do tempo sem incorrer na sua suspensão?) Um tempo que nos é apresentado como o paradoxo da flecha imóvel de Zenão [3], aqui ilustrado numa atmosfera asséptica e burocratizada. O artista devolve-nos as imagens da flecha em repouso, em cada segundo do seu voo galopante.

Nuno Nunes-Ferreira

Balcony Contemporary Art Gallery  

Maria Beatriz Marquilhas. Licenciada e mestre em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo-se especializado em Comunicação e Artes com uma dissertação sobre o conceito na experiência artística. Contribui regularmente com artigos e ensaios para revistas. Vive e trabalha em Lisboa.

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Nuno Nunes-Ferreira. dois anos e meio. Vistas da exposição. Balcony Contemporary Art Gallery. Fotos. António Jorge Silva. Cortesia do artista e Balcony Contemporary Art Gallery.

 

Notas:

[1] E-flux Journal #98: February 2019

[2] Henri Bergson, Durée et Simultaneité (Presse Universitaire de France, Paris, 1922), 48.

[3] Zenão de Eleia (cerca de 490/485 a.C.430 a.C.) foi um filósofo pré-socrático da escola eleática. O paradoxo da flecha imóvel afirma que "uma flecha em voo está a qualquer instante em repouso. Ora, se um objecto está em repouso quando ocupa um espaço igual às suas próprias dimensões e se a flecha em voo ocupa sempre um espaço igual às suas próprias dimensões, logo a flecha em voo está em repouso."

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